Rio Grande do Sul

Vida das Mulheres

Gabriela Borges: “Cada uma de nós pode fazer microrrevoluções”

Entrevista com realizadora do documentário que traz depoimentos de 17 mulheres de São Lourenço do Sul, interior do RS

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Todos os dias elas vão ter que enfrentar barreiras muito fortes, vão dizer que elas estão loucas, vão questionar a decisão delas" - Divulgação

Quantos autossacrifícios as mulheres fazem ao longo da vida? Quantas conquistas são deixadas de lado para atender às expectativas alheias 'fazendo o que se deve'? Quais os objetivos que foram negligenciados em nome da culpa de não ser uma boa filha, uma boa mãe ou uma boa esposa?

Com intuito de tentar respostas a essas indagações, a jornalista Gabriela Schmalfuss Borges, juntamente com Pedro Henrique Farina Soares, através do coletivo Vozes em Movimento, realizou o documentário “Mulheres (in)visíveis: A opressão e a luta das mulheres do campo de São Lourenço do Sul. Selecionado pela Lei Aldir Blanc de fomento à cultura em edital desenvolvido pela prefeitura municipal de São Lourenço do Sul, o filme retrata a realidade de 13 mulheres desse ambiente rural.  

Ambiente este onde, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), apenas 19% das mulheres são donas de propriedades rurais. Das residentes na área rural, 80% recebem no máximo um salário mínimo por mês, sendo que a renda é 27% menor que a do homem. 

“É muito difícil conseguir ir atrás do que se quer nesse ambiente rural. Existe um sentimento de culpa muito forte, um medo muito grande de ser julgada”, destaca Gabriela ao falar do silenciamento dessas mulheres.

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, a jornalista fala do documentário e do processo de transformação que ele teve sobre as participantes “Há um tempo eu venho me questionando sobre quantos autossacrifícios as mulheres vão fazendo ao longo das suas vidas. Eu comecei a olhar para as mulheres da minha família, e do que elas abdicaram ao longo do tempo”, diz. 

Veja, abaixo, a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Gostaria que tu nos falasse sobre o “Mulheres (in)visíveis: A opressão e a luta das mulheres do campo de São Lourenço do Sul”. Como surgiu a ideia, quem são essas mulheres? 

Gabriela Schmalfuss Borges - A ideia do tema surgiu a partir de uma busca interna minha, e que eu só fui perceber o quanto teve impacto enquanto eu fazia o documentário. Há um tempo eu venho me questionando sobre quantos autossacrifícios as mulheres vão fazendo ao longo das suas vidas. Eu comecei a olhar para as mulheres da minha família, e do que elas abdicaram ao longo do tempo. 

Eu olhei para minha vó e percebi muitos padrões em mim, na minha mãe, na minha irmã, e comecei a pensar quantas conquistas são deixadas de lado para ateder expectativas alheias, fazendo aquilo que dizem que a gente deve fazer. E o quão grande é a culpa que essas mulheres carregam, abrindo mão dos seus objetivos para não deixar de ser uma boa filha, uma boa mãe, uma boa esposa, achando por vezes que o que elas têm é suficiente, que elas não precisam querer aquilo que elas sonham. E essa bola de neve vai afetando a saúde mental de uma forma muito violenta. 

A partir desses questionamentos iniciais eu olhei para o município, em que praticamente metade da população está no campo, e percebi que essas situações se agravam muito quando nós direcionamos às mulheres que moram na zona rural. Mas a ideia de transformar isso em documentário só surgiu com a abertura do edital do projeto da Lei Aldir Blanc pela prefeitura. O projeto foi tocado por mim e pelo Pedro Henrique Farina Soares, a partir da nossa atuação do Coletivo Vozes em movimento. 


"Os ciclos de violência no campo são muito difíceis de quebrar, porque as mulheres já vivem isoladas" / Arquivo Pessoal

BdFRS - Quais os desejos, sonhos, aspirações e o medo dessas mulheres? Quais os ensinamentos que você obteve dessa experiência.

Gabriela - Todas as mulheres, mesmo às vezes não percebendo totalmente o grau de opressão que elas estavam sofrendo, por serem mulheres, por estarem no campo e por às vezes terem outros atravessamentos, como a questão de raça, todas elas têm uma força muito grande. Todas essas mulheres sempre tiveram voz, mas nem sempre foram ouvidas. 

Eu acho que o maior desejo que elas têm é que as pessoas escutem o que elas têm a dizer, e que escutem as escolhas delas, não digam o que elas têm que fazer. Algumas querem sair para ir para a faculdade, outras querem seguir no campo, querem maior divisão das tarefas da casa. 

Tem uma senhora que eu entrevisto no documentário que não considerava o que ela fazia um trabalho, porque aqui os homens dizem que as mulheres só ajudam na lavoura, mesmo elas trabalhando tanto quanto os homens. E tendo todo serviço de casa para fazer. Essa senhora planta agroecológicos, e ela teve contato com alunas da FURG (Universidade Federal do Rio Grande), do curso de agroecologia, e que valorizaram todo esse saber dela, no projeto dentro da propriedade. Então é muito bonito quando ela fala: “Agora eu valorizo o meu trabalho”. Quanto tempo ela demorou e o quanto foi libertador quando ela disse assim, "agora eu valorizo o meu trabalho, não sei os outros, mas eu valorizo"?

É muito difícil conseguir ir atrás do que se quer nesse ambiente rural. Existe um sentimento de culpa muito forte, um medo muito grande de ser julgada. Inclusive a minha avó, ela foi uma das entrevistadas. Então eu tinha uma preocupação muito grande de como conduzir isso de uma maneira que ficasse confortável para ela. Depois que acabou o documentário ela me mandou uma mensagem dizendo que viu, e que agora entendeu que tem que se colocar em primeiro lugar. Ela se aposentou agora, inclusive a gente fala disso no documentário. E nesse áudio que ela mandou depois de assistir, ela diz que só se deu por conta que não tinha se aposentado ainda porque ela sempre abriu mão de pagar o INSS dela para pagar do meu avó. Eu fiquei muito orgulhosa dessa conclusão com a produção. 

Fazendo esse documentário e conversando com elas - ao todo são 17 entrevistadas - eu percebi o quanto as nossas dores nos constituem, e são também ferramentas de mudança. Então mesmo não percebendo a coragem de mulheres ao longo do tempo, mudou a realidade do que a gente tem agora, das gerações de mulheres que vieram depois, cada uma vez um pouquinho. Uma saiu de casa, uma vez faculdade. Tem uma menina que é negra e que passou a usar o cabelo natural, e hoje ela é uma inspiração para as irmãs dela.

Acho que cada uma de nós pode fazer microrrevoluções e são essas microrrevoluções que vão permitir que as próximas mulheres possam sonhar. 

BdFRS- Qual a realidade que tu encontrastes ao falar com essas mulheres?

Gabriela - As mulheres compartilhavam angústias recorrentes, como a dificuldade de ter autonomia financeira, a exaustão em função do trabalho doméstico e da lavoura, a solidão e a depressão, a falta de tempo para atividades de lazer e de estudo. Muito isso por sempre priorizarem os outros, uma busca incessante pela perfeição, pelo dar conta de tudo sorrindo. E uma dificuldade muito grande de seguirem aquilo que elas queriam porque elas se sentiam muito presa aos outros, seja o marido, os pais, sempre com a mulher nesse papel de cuidado.

Então, por vezes, por mais que elas quisessem determinada coisa, tinha uma série de fatores que impediam. Seja o preconceito de que a mulher tem que casar, seguir na lavoura, cuidar dos pais. A dificuldade delas se manterem dentro dessa família, desse ambiente familiar, dessa estrutura ao fazer uma dessas denúncias ou também a dificuldade de se mantere financeiramente sozinha caso ela optasse por sair. 

BdFRS - Nesse universo que explorastes, como o machismo, o patriarcado, se apresenta? Além da questão da visibilidade, que outros sentidos estão presentes ou ausentes? 

Gabriela - O machismo é muito sutil, uma violência simbólica que às vezes é bem difícil de perceber. É uma coisa muito forte cultural, mas que mexe muito porque lida com pertencimento. Então não é só sobre visibilidade, elas podem ser vistas, mas elas só vão conseguir se libertar quando elas mesmas se permitirem isso. 

Todos os dias elas vão ter que enfrentar barreiras muito fortes, vão dizer que elas estão loucas, vão questionar a decisão delas. Então é um processo muito doloroso, que precisa de muita coragem.

BdFRS - A pandemia veio para agravar desigualdades, o aumento de trabalho e a violência sobre o corpo das mulheres. Neste 8 de março, um dos eixos da luta feminista é "Pela Vida das Mulheres". Na tua opinião, como avançar na consciência coletiva da força feminina? Como levar isso para as mulheres do campo?

Gabriela - Os ciclos de violência no campo são muito difíceis de quebrar, porque as mulheres já vivem isoladas, as propriedades são muito longe uma das outras, e é comum que elas não tenham acesso ao dinheiro e não tenham nenhuma rede de apoio. 

Geralmente, nos finais de semana, no domingo, era a única saída da semana e se ia à festas de igreja, mas nem isso elas têm mais agora com a função da pandemia. E o estado também não tem uma rede de produção específica para o campo. Então o que podemos fazer é tentar chegar nessas mulheres, conversar com elas. 

O documentário é uma forma que a gente encontrou de trazer essa discussão para São Lourenço, ir na rádio. Muitas mulheres assistiram e disseram que se deram por conta de determinadas coisas, indicaram para familiares e trouxeram essa discussão para dentro de casa. Então, depois da pandemia, a nossa ideia é fazer exibições do documentário nas comunidades do interior. 

Também acho que uma forma de se combater a violência no interior é criando grupos de mulheres, seja de culinária, de artesanato, enfim. Um espaço seguro em que elas possam conversar com outras mulheres, se sentirem acolhidas nas falas das outras, e perceberem essas violências. 

Também vimos o papel fundamental que a interiorização da universidade teve em São Lourenço. Nós temos o curso de Educação no Campo, no campus da FURG no município, e duas meninas, uma pomerana e uma quilombola, que foram entrevistadas pelo documentário se formaram no curso e hoje elas transformam a realidade delas. A Léia que é pomerana tinha o sonho de fazer intercâmbio, e aí ela foi para Portugal, apesar de todas as dificuldades, preconceitos, e hoje ela está fazendo mestrado na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) em educação. E a Adriana que é quilombola fez um projeto muito bonito a partir da universidade indo em todos os quilombos do município com oficinas que ensinavam as mulheres a fazer bonecas negras, falando sobre identidade, pertencimento. A Adriana foi a primeira pessoa do quilombo em que ela mora a entrar na universidade e hoje ela fica muito orgulhosa de saber que já são 11 pessoas dentro da FURG.  

BdFRS- E por fim gostaria que nos falasse um pouco da tua história, trajetória e do do coletivo Vozes em Movimento.

Gabriela - Sou jornalista, tenho 25 anos e me formei na UFPel em 2017. Sou mestranda em Comunicação pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). Desde 2015 atuo no Vozes em Movimento, que é um coletivo independente de São Lourenço que pauta questões relacionadas à cidadania, educação e direitos humanos. Também promovemos eventos culturais como exibição de filmes, rodas de conversa, saraus temáticos. Também recebemos por duas vezes a mostra de Cinema em Direitos Humanos. 

Em 2018 tivemos um papel muito decisivo para vetar o Projeto de Lei do Escola Sem Partido que tentaram aprovar aqui no município. E agora, além do documentário das mulheres, estamos produzindo outro documentário que é "Memórias do Esquecimento, a efervescência de São Lourenço do Sul nos tempos da ditadura", que fala da época da ditadura aqui no município, e foi aprovado pela Aldir Blanc, pelo Pedro Henrique Farina Soares, que também é integrante do coletivo. A ideia é lançar esse documentário no final de março pelo YouTube e pelo Facebook do Vozes.  

Assista, abaixo, ao documentário completo:


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Edição: Marcelo Ferreira