“Depois que tudo isso passar eu acho que precisamos identificar onde houve negligência intencional, onde houve omissão criminosa, onde houve leniência em função de interesses econômicos que provocaram óbitos que teriam sido evitados, se medidas mais rigorosas tivessem sido tomadas, eu acho que os responsáveis por esta negligência, por esta omissão, por essa leniência precisam ser responsabilizados. Vamos precisar de um tribunal de Nuremberg para avaliar porque são milhares de vidas”. Este foi o desabafo do médico e professor de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor Alcides Miranda, quando Brasil de Fato pediu-lhe uma análise de um ano de pandemia no Rio Grande do Sul e no Brasil.
Miranda está indignado com a situação que coloca o lucro acima das vidas das pessoas e com o descaso da opinião das autoridades sanitárias frente à pandemia de covid-19. Para ele não teria sido necessário chegar à situação de colapso hospitalar que o estado atingiu, neste mês. E mesmo depois da notícia que dois professores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) tinham sido punidos por terem feito críticas a Bolsonaro, ele insistiu em manter pública sua opinião. “Assumo a responsabilidade pelo o que declarei e será publicado, atitudes fascistas surtem efeitos se nós nos intimidamos”, afirmou.
Leia, abaixo, a análise que Alcides Miranda fez da situação, na íntegra:
Constantes flexibilizações
Nós estamos agora, no início de março, completando um ano da emergência dessa crise pandêmica com repercussões globais, mas também localizadas. Particularmente, aqui no rio Grande do Sul, depois de um ano, a gente já pode fazer um balanço de vários aspectos importantes acerca não só da incidência de casos e de mortes, mas de decisões que foram tomadas ou que deixaram de ser tomadas e que decorreram em óbitos evitáveis.
Então, lá no começo, em março do ano passado, vários epidemiologistas, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, constituíram um consenso. O consenso é que a medida necessária, a imunização em massa, a vacinação em massa estava colocada num horizonte de médio prazo. Então se imaginava um prazo de um ano, um ano e meio, para as vacinas estarem disponibilizadas.
Na impossibilidade de se imunizar ou fazer a imunização massiva, se optou por um conjunto de medidas que, de certa maneira, dificultariam a circulação e a transmissibilidade do vírus. Essas medidas eram medidas de convencimento da população para o semiconfinamento voluntário, para evitar a aglomeração, para usar máscara, para fazer higiene das mãos sempre, e medidas necessárias de imposição governamental restringindo a mobilidade, a aglomeração, a circulação. É óbvio que a tomada dessas medidas de imposição dependeriam de um monitoramento adequado de como a pandemia estava evoluindo. Por exemplo, numa fase ascendente intensiva de transmissão, de contágios, portanto de casos e complicações, de necessidades de recursos assistenciais especializados, a imposição deveria ser mais rigorosa. Em fases em que houvesse o decréscimo do contágio, ela poderia ser flexibilizada.
Isso estava muito claro desde o início. No mês de abril houve uma contenção importante que colocou o Brasil num cenário intermediário em termos de transmissibilidade. Mas já no final de abril, por pressão, inclusive de empresários, os governos estaduais começaram a afrouxar essas medidas numa fase em que, inclusive, estava havendo um aumento intensivo de contágios. Isso decorreu a partir de maio, quando o Brasil saiu de um cenário intermediário para um cenário de piora. E naquela ocasião, lá em início de maio, nós projetamos que chegaríamos ao final do ano com 200 mil mortos se não fossem tomadas providências. Inclusive fomos ridicularizados. Disseram que a gente estava sendo alarmista, que estava exagerando na projeção dos dados.
Necropolítica
O que vimos no Brasil inteiro foi um governo federal negligente intencionalmente. Ou seja, é uma negligência intencional, o que configura dolo, configura necropolítica, vontade de deixar morrer, a partir daquele discurso do efeito rebanho em que a própria epidemia geraria uma imunidade quando uma parte da população fosse contagiada, para que a economia não parasse, que a economia continuasse funcionando como sempre funcionou.
Então esse pendor necropolítico é criminoso e eu acho que a postura do governo federal não é só de incompetência. É uma postura de negligencia intencional e omissão criminosa que precisa ser responsabilizada e penalizada, inclusive. Já os governos estaduais, e o caso do Rio Grande do Sul é um caso muito claro, começaram a montar gabinetes de crise lá no início do ano e, nestes gabinetes de crise, ou nestas comissões para a condução da crise, havia a presença da autoridade sanitária, mas havia também a presença da representação do interesse econômico. E, na verdade, na maior parte das vezes a autoridade sanitária ou o seu discurso foi usado como fachada porque a maior parte das decisões de flexibilizações num momento inadequado ocorreram por pressão do empresariado. Numa visão míope, porque a própria economia perdeu com esta visão do empresariado.
Nós temos casos de países onde houve lockdown rigoroso por duas, três semanas, uma contenção importante e a economia voltou a funcionar normalmente. Aqui os empresários optaram não só por uma insensibilidade sistêmica, mas também por um pendor necropolítico de deixar acontecer para que a economia não parasse e seus lucros não cessassem. E eles tiveram voz ativa e foram preponderantes na tomada de decisão aqui no Rio Grande do Sul.
O que vimos no Brasil inteiro foi um governo federal negligente intencionalmente.
Qual foi o resultado disso? Nós entramos junho, julho, agosto, com uma curva ascendente de óbitos que poderiam ter sido evitados seguramente. Em seguida, a partir de setembro, começou a haver uma diminuição da circulação do vírus e, mais uma vez, o afrouxamento, o relaxamento. A população já estava cansada inclusive das medidas, digamos assim, voluntárias de semiconfinamento, de restrições, e começou a haver uma mobilidade maior, uma circulação maior. Isto junto com as festas de final do ano trouxe a situação para uma outra condição difícil e que exigia do governo uma tomada clara de decisão de aumentar o rigor das medidas de contenção de mobilidade, de controle, etc., que são as medidas de imposição governamental.
Colapso do sistema hospitalar
Agora isso decorreu, nas últimas semanas, numa condição que nos levou a um limiar crítico para o colapsamento de serviços de saúde assistenciais. Nós já temos no RS exemplos de colapsamentos localizados em serviços, mas se essas medidas não forem tomadas nós teremos um colapsamento sistêmico. Porque não é só a questão da ocupação dos leitos ou a questão do pessoal que se expôs no veraneio e depois voltou e que aumentou a circulação.
Os dados que dispomos agora deixam muito claro que além do aumento da incidência de casos, algo diferente está acontecendo. E este algo diferente não está localizado só no Rio Grande do Sul, é uma característica em vários estados, que é a inserção de cepas de mutação do vírus que têm uma maior capacidade de transmissão. A variante do Amazonas já foi identificada aqui no estado com transmissão comunitária, a variante inglesa foi identificada agora em Goiás. Este aumento da transmissibilidade, que pode estar acompanhado de um aumento da patogenicidade, a possibilidade de complicação dos casos, vai alterar o perfil.
No ano passado, por exemplo, de cada cem pessoas que tiveram covid-19 confirmada, em torno de seis foram internadas e uma pessoa morreu. Dessas que morreram no ano passado, a maioria tinha comorbidades e uma faixa etária maior do que 60 anos. Isso agora, nas últimas semanas, tem se alterado dramaticamente.
O que está acontecendo nas últimas semanas? Um aumento de casos com complicações em pessoas que não têm comorbidade, em pessoas com menos de 60 anos, e este aumento da magnitude do volume de casos já aconteceu em junho, julho e agosto e, depois, em novembro e dezembro teve um outro pico. A diferença agora com relação aos chamados picos do ano passado é a velocidade. Como esta transmissão está acontecendo muito rapidamente, estas pessoas estão confluindo para os serviços de saúde e estão esgotando, saturando a capacidade desses serviços de saúde de poder darem conta dessas demandas.
Então o colapsamento provavelmente ocorre, ou vai ocorrer se não forem tomadas medidas rigorosas, não só pela magnitude, o volume de casos, porque se ocorresse um aumento de casos de forma gradual os serviços poderiam se adaptar para atender essas demandas. Se esse aumento acontece de uma forma muito intensiva e muito rápida, simplesmente não vai ter vaga. E é o que está acontecendo com relação aos leitos de UTI, com o aumento da proporção da ocupação dos leitos clínicos não UTI, o aumento da proporção de procura nos serviços ambulatoriais. E nós já estamos assistindo aí, não só no RS, mas em muitos lugares do país, situações dramáticas.
E isso, na verdade, não é considerado, não há sensibilidade da representação dos interesses econômicos com relação a isso. Eles não estão preocupados que pessoas estejam morrendo, ou que este número esteja aumentando, que nós estamos chegando à beira de um colapso, eles estão preocupados em não cessar a economia. E aí tem todo um discurso justificativo para que não haja o lockdown, mas é curioso porque a gente não vê o empresariado defendendo, por exemplo, a vacinação para todo o mundo. Se todo o mundo fosse vacinado em tempo hábil, a economia voltaria a funcionar. E houve uma negligencia intencional na preparação da vacinação.
Negacionismo
Ao longo do ano passado, o Brasil não tomou atitudes junto a outros países que estavam demandando quebrar a patente das vacinas e pode produzir os imunizantes de forma muito mais rápida e muito massiva. O Brasil se posicionou contrariamente à quebra de patentes. Em seguida não se planejou e não se preparou. Os governos estaduais tentaram tomar esta iniciativa, mas de forma descoordenada, e aí tivemos como decorrência a exiguidade de oferta de vacinas, enquanto a maior parte dos países estão vacinando rapidamente. E o resultante é uma quantidade enorme de óbitos evitáveis.
Isso precisa ser analisado agora, precisa acontecer uma tomada de decisão de aumentar o rigor na imposição de medidas de contenção a esta transmissibilidade. Isto urge porque se não acontecer nós teremos um quadro realmente dramático nas próximas semanas. E talvez mesmo tomando as decisões agora, a gente tenha complicações. Isso a está acontecendo nesses últimos dias.
Se todo o mundo fosse vacinado em tempo hábil, a economia voltaria a funcionar. E houve uma negligencia intencional na preparação da vacinação.
Tribunal de Nuremberg
Mas depois que tudo isso passar eu acho que precisamos identificar onde houve negligência intencional, onde houve omissão criminosa, onde houve leniência em função de interesses econômicos que provocaram óbitos que teriam sido evitados, se medidas mais rigorosas tivessem sido tomadas, eu acho que os responsáveis por esta negligência, por esta omissão, por essa leniência precisam ser responsabilizados. Vamos precisar de um tribunal de Nuremberg para avaliar porque são milhares de vidas.
Em termos comparativos, se a gente comparar o Brasil com alguns países, como a Índia, que tem uma população bem maior do que a nossa, e condições socioeconômicas também, e desigualdades também muito severas, também tem um governo conservador, inclusive na Índia a taxa de mortalidade é muito menor do que a brasileira. O Brasil hoje é o segundo no número absoluto de óbitos depois dos Estados Unidos e o terceiro em taxa de mortalidade. Embora a nossa taxa de letalidade não seja tão alta porque o SUS está segurando as pontas. Mas isso tem um limite e nos estamos no limiar dessa condição crítica.
Então o balanço é que muitos óbitos, talvez a maior parte das mortes que ocorreram ao longo desse ano poderiam ter sido evitados. Infelizmente não aconteceu isso, não podemos simplesmente transferir a responsabilidade para população, porque se a gente pensar naquela cena do filme de Hollywood de alguém tentando se suicidar do alto de um prédio, quando ocorre uma intervenção dos bombeiros ou da polícia todo mundo fica aliviado. Nós não podemos acusar a população de suicídio coletivo quando há negligência e omissão por parte dos dirigentes governamentais que deveriam assumir a responsabilidades de tomar decisões necessárias para salvaguardar vidas. Acho que isto precisa ser colocado de uma forma muito clara.
O poder econômico, o grande capital, o capital financeiro, os porta-vozes da economia que conseguem inclusive influenciar os pequenos e médios produtores são corresponsáveis desta situação, porque eles não entenderam que o mais importante neste momento era salvaguardar vidas e, ao fazê-lo, também proteger a economia. Preferiram deixar morrer para continuar lucrando e estamos agora acompanhando e tentando interferir nas decorrências.
Infelizmente, nós que trabalhamos com epidemiologia, com a clínica, que temos experiências inclusive em lidar com pandemias, não temos sido preponderantes nesses espaços de tomada de decisão e isso é de se lamentar. É óbvio que não estou reivindicando que a autoridade sanitária tenha a univocidade, todavia a autoridade sanitária compõe estes espaços decisórios, mas infelizmente não tem tido nenhuma preponderância e o custo são óbitos evitáveis.
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Edição: Marcelo Ferreira