O filme "Apocalipse no Morro Santana" é uma produção independente, gravada entre os anos de 2016 e 2018, em um bairro de periferia da Zona Leste da capital gaúcha conhecido como Laranjeiras. A ideia de produzir o filme surgiu a partir de oficinas que um dos realizadores fazia com as crianças do Serviço de Apoio Sócio Educativo (SASE) da região e teve os próprios jovens como protagonistas do filme.
A história do filme narra um mundo apocalíptico, onde uma peste se espalhou pelo mundo, matando todos os adultos e os transformando em zumbis. Apenas as crianças sobreviveram e passaram a lutar pela sobrevivência e também "contra seu próprio envelhecimento, o que leva algumas delas a medidas trágicas". Enquanto uma parte dos personagens adota um "culto das armas", pregando o suicídio e a violência como forma de sobreviver e escapar do envelhecimento que os tornará zumbis, outro grupo aposta na pesquisa e na ciência como encontrar uma cura que salvará a todos.
Na divulgação do filme, a produção atenta para o fato de que, embora tenha sido filmado há três anos, a história contada antecipa temas que nos são atuais: uma crise de saúde global, que acirra conflitos por sobrevivência. Além disso, o tema da violência, do armamento da população e do extermínio da juventude, que já eram debate entre 2016 e 2018. Ainda, a discussão da ciência e da pesquisa como alternativas para problemas sanitários e sociais. Tudo isto está no filme.
"Contando com o elenco de 36 crianças da comunidade do Morro Santana, o filme busca instigar a discussão sobre a violência na periferia, refletir sobre nosso tempo, assim como procura revelar o potencial oculto nas crianças da comunidade e deixar uma mensagem para o mundo em crise que vivemos.”
O trecho acima é parte do texto de apresentação ao lançamento do filme, que está sendo divulgado de forma totalmente online. Devido à pandemia, o filme não pode ser lançado em uma sessão presencial, porém houve o lançamento virtual, com exibição do filme e um debate com parte da equipe.
Compartilhamos, no fim da matéria, esta sessão especial com debate, junto com o filme completo, que está disponível também no canal do Youtube da Araxá Produções.
O Brasil de Fato RS conversou com o roteirista e diretor do filme, Jonas Dornelles, para saber como foi a experiência da produção e sobre os temas debatidos no filme. A entrevista reproduzimos aqui, na íntegra. Confira, logo depois do trailer do filme:
Entrevista com o roteirista e diretor do filme
Brasil de Fato RS - Gostaria que tu te apresentasse e contasse um pouco sobre a tua participação no filme e um pouco da história dele.
Jonas Dornelles - Me chamo Jonas Dornelles e sou formado em Letras para UFRGS. Trabalho como professor na área de Português e Literatura, e atualmente curso o doutorado na PUCRS (na área da Teoria da Literatura). Minha mãe teve, por muitos anos, um grupo de teatro de bonecos, assim como meu pai é músico percussionista, então tive esse imenso privilégio de me criar em meio à arte, o que me trouxe esse desejo desde jovem, de trabalhar com a cultura. Quando era moleque cheguei a trabalhar em alguns trabalhos que meu pai arranjava, seja em oficinas ou shows em que tocava, ou em produtoras que precisavam de um auxiliar mais braçal. Foi numa dessas que comecei a mexer com câmeras e produção audiovisual. Anos depois viria a trabalhar na trilha sonora de uma peça de teatro, do diretor Julio Zanotta, A Guerra Civil de Gumercindo Saraiva, onde aprendi um pouco sobre as maquiagens cenográficas, o que me deixou com ainda mais gosto por produzir algo.
Moro desde moleque na periferia de Porto Alegre, próximo ao Morro Santana. Me criei com o pessoal da Resistência Popular aqui da Zona Leste, onde formei minha consciência política e social. Com eles, dei aulas no cursinho popular e fiz programas na rádio comunitária A Voz do Morro, assim como ajudei na produção de algum material audiovisual que fizemos lá por 2008. A mais memorável foi a realização de um vídeo clipe de um rapper aqui do Morro, o MC Tchatcha. Subimos na quebrada da Laranjeiras e fomos filmando os cenários da comunidade, pra música "Cobra sem Veneno", e o resultado final ficou bem legal.
Pelo final de 2015, conheci o pessoal da biblioteca comunitária Visão Periférica, e quis fazer algum trabalho em conjunto. Foi quando comecei a fazer mediações de leitura ali na Laranjeiras, e comecei a me aproximar um pouco mais das crianças da comunidade. Inicialmente eu pegava as crianças no SASE Laranjeiras e levava até a biblioteca, ajudava com a retirada de livros, devoluções, assim como sempre selecionava algum livro para fazer uma mediação pras crianças. Estava com vontade de pensar algum projeto interdisciplinar, que juntasse outras pessoas, e conheci o Lorenzo Leuck, que já tinha uma caminhada na produção audiovisual, junto com o Gabriel Trevisan. Então veio essa ideia de fazer um curta-metragem, que começou mais ou menos nas férias escolares de verão, em 2016.
Lembro que as vezes eu chegava no SASE e as crianças estavam sempre vendo um filme, e os que elas mais se divertiam eram filmes de terror. Elas já tinham visto várias vezes Annabelle e alguns de zumbi, e eu lembro muito delas me contando a história todas, cheias de spoilers. Foi quando fiz uma mediação sobre um livro infantil que envolvia o tema do desarmamento, e tudo meio que se conectou.
BdFRS - Como é fazer uma produção dessas com jovens? Porque a ideia de usar a produção de um filme para trabalhar com eles? E porque a temática do terror? Fale mais sobre a produção do filme em si.
Jonas - Foi uma espécie de desejo de trabalhar com educação, ao mesmo tempo produzindo um material que pudesse divertir as crianças e resultar num produto legal, que me levou à escrever um roteiro e buscar apoio do pessoal para realizar. Minha intenção era focar na questão do desarmamento, e o tema do apocalipse zumbi parecia servir para esse ponto. Eu me criei ouvindo punk rock, tinha a caminhada do underground, e sempre gostei de "filmes B", produções feitas com baixo custo, já que me criei vendo com os amigos pérolas como "O Monstro Legume do Espaço", da Canibal Filmes do Peter Baiestorf. Assim como cresci vendo Chaves e Chapolin, e mais tarde o Hermes e Renato, que também tinham esse espírito de produção de baixo custo.
Acho que o espírito de uma produção tornaria divertido a atividade com as crianças, assim como teria um resultado para além da atividade pedagógica. Não buscava fazer de fato um filme de terror, mas sim um de "terrir", aquele filme que tenta ser sério mas tem um lado meio tosco que eu acho muito divertido. Nesse processo, assisti alguns filmes com as crianças e trouxe algum material pra situar elas nesse universo “pós-apocaliptico” dos filmes de mortos-vivos.
Fiz algumas oficinas de maquiagem com elas, para criar o clima e fazer elas curtirem a ideia, já fazendo algumas imagens para elas se acostumarem com a câmera. Contamos também com apoio do pessoal do grupo de Teatro Levanta Favela (Allan Martins de Castro), da Natália Monteiro, assim como do Marlon Fidelix, que fizeram algumas oficinas com elas, envolvendo mais o aspecto corporal da atuação. E contamos com muito apoio das educadoras do SASE Laranjeiras (e depois do SASE Madre Teresa), que ajudavam dando uma organizada nas crianças, além de fornecer a alimentação para elas depois das filmagens de cenas.
Eu tinha um roteiro que li cena por cena com as crianças e fui mais ou menos adaptando a partir do que elas traziam, e das condições que tínhamos. A premissa do curta-metragem é de que o mundo foi tomado por uma doença que transformou todos adultos em mortos-vivos, e algumas crianças sobrevivem na periferia de Porto Alegre. Elas conseguem se manter por um tempo organizando grupos que impedem que os zumbis invadam seu bairro, um grupo de soldados que se impõe sobre as outras crianças, realizando uma espécie de ritual no qual os adolescentes que chegam perto da idade adulta devem se suicidar para não se tornarem adultos-zumbis. Enquanto algumas crianças tentam buscar uma cura em meio aos livros, surge um novo problema: algumas crianças também começam a virar zumbis, mesmo sem chegar a idade adulta, algo que não acontecia até então.
Não buscava fazer de fato um filme de terror, mas sim um de "terrir", aquele filme que tenta ser sério mas tem um lado meio tosco que eu acho muito divertido.
Separei as crianças em grupos de personagens, a partir das próprias afinidades que as crianças já tinham, e isso ajudou muito. Tentamos filmar uma cena inteira por dia, para não ter muitos erros de continuidade, por que era difícil explicar para elas que deveriam vir exatamente com a mesma roupa, caso não terminássemos a cena naquele dia. As vezes estourava um pouco o tempo da manhã que a gente tinha disponível com elas, mas dava certo.
Nesse processo contamos muito com o improviso, e não pudemos filmar muitas vezes a mesma cena, pois quem trabalha com educação infantil sabe como é difícil manter as crianças focadas em algo muito tempo, ainda mais dentro de um set de filmagem, algo que elas não têm muita experiência. Tiveram alguns momentos difíceis, contamos com muito jogo de cintura, mas nesse processo aconteceram verdadeiros milagres, como quando um grupo de crianças começou a improvisar um "funk dos caçadores de zumbis" que serviu para uma das cenas, algo totalmente espontâneo delas. Outras vezes foram falas improvisadas por elas, que eram muito melhores que aquelas que a gente tinha pensado inicialmente.
Foram coisas assim que me fizeram ver o imenso potencial que existe nas comunidades de periferia, para produção cultural. Nós tínhamos algumas câmeras e alguns apoiadores para captação de imagens (além do Lorenzo, ajudaram a Bianca Passeto e Nico Ringon), e qualquer mínimo recurso eu tive que tirar do meu bolso. Acho que o total dos custos não passou de R$ 100,00, sendo que a maioria foi para maquiagem e figurino. Fiz as roupas dos guardinhas do curta com tecido TNT, no turno em que não estava trabalhando. Com o muito pouco que nós trouxemos, as crianças fizeram magia, o que me faz pensar no que poderia resultar se nós tivéssemos de fato uma boa estrutura.
Mais ou menos no meio da produção eu passei na seleção de mestrado da UFRGS e meu tempo começou a ficar muito curto para filmar as cenas que ainda faltavam. E logo em seguida o SASE Laranjeiras interrompeu suas atividades, uma verdadeira tragédia e que criou outro grande problema, pois não sabíamos como localizar algumas das crianças que já tinham participado das cenas. Passei alguns meses procurando algumas delas pelas ruas da região, quando tinha tempo, pra conseguir nem que fosse o nome para botar nos créditos, e graças a deus encontrei todas ao final.
Alguns anos depois, em 2018, terminamos as cenas finais no SASE Madre Teresa (“Casinha”), que tinha recebido algumas das crianças do primeiro SASE. Tive que me apresentar e fazer algumas oficinas novamente, para poder situar algumas das crianças que não estavam na primeira parte da produção. Sem esse apoio do SASE Madre Teresa, a gente não teria conseguido concluir as cenas finais do curta. Quando juntamos as cenas finais com as iniciais, ainda tivemos que trabalhar para dar mais coesão pra história, o que acabou acontecendo com uma apresentação “in off”, na qual um narrador explica alguns detalhes que tinham ficado um pouco confusos ao longo das cenas.
Foram coisas assim que me fizeram ver o imenso potencial que existe nas comunidades de periferia, para produção cultural.
Com toda essa aventura terminada, é uma imensa felicidade estar enfim vendo essa produção se concretizando. Com todos os percalços, em muitos momentos achamos que não conseguiríamos terminar. Quase ao final da produção, o material original quase foi perdido, pois o material “bruto” das imagens estava em um HD externo que estragou, nos deixando apenas com uma versão de baixa qualidade, o que estragaria bastante a exibição. Quando já estávamos meio conformados, o Lorenzo encontrou uma versão antiga salva na nuvem, que deu pra adaptar e fazer a versão final com melhor qualidade.
BdFRS - O filme foi gravado até 2018, mas tratou de temas que entraram no foco do mundo todo em 2020, com a pandemia: preocupação com a saúde e ciência, por exemplo. O que tu acha que isso significa?
Jonas - A coisa mais curiosa disso tudo foi que iniciamos a produção em 2016, e apenas concluímos a montagem em 2020, justo no momento em que se apresentou essa tragédia da pandemia em nível global. O roteiro do curta, nesse sentido, foi meio profético, por que nele as crianças buscam a cura para uma doença que assola o mundo. No curta elas também vivem em um contexto de pandemia, e nunca sonhei que pudesse lançar o curta dentro de uma realidade parecida.
Só posso pensar que essas narrativas distópicas que inspiraram o roteiro falam não de um futuro longínquo, mas de nosso próprio mundo. Sabemos que o mundo já passou por outras grandes pestes e doenças, então a pandemia que vivemos infelizmente não é algo novo. E se vivemos num contexto onde o sistema público de saúde é atacado em nome de interesses financeiros, onde a pesquisa científica do país vê seus recursos quase zerados enquanto políticos gastam trilhões de vezes mais com ridículos interesses particulares... não precisa ser muito profético para imaginar que essa combinação pode acabar a uma crise de saúde pública das proporções trágicas que agora vivemos.
BdFRS - E após o lançamento? Qual têm sido a recepção? Existem planos para outros filmes com a comunidade?
Jonas - Planejamos seguir produzindo material audiovisual aqui na comunidade, mas esse plano também está suspenso por hora, devido à pandemia. A maior dificuldade é sempre os recursos, já que contamos apenas com nossos próprio material, que é bastante simples. O que não nos impede de produzir, e de tentar mostrar o potencial inexplorado que há dentro dos jovens de periferia. Fico pensando se houvessem políticas públicas adequadas, o que não poderia estar saindo não só aqui do Morro Santana, como também de outras quebradas do país. Uma atividade cultural que poderia trazer cultura, autoestima e mesmo emprego para um número imenso de pessoas, mas que não parece interessar a elite do país.
Assim, esperamos que o curta-metragem seja um momento de entretenimento dentro desse isolamento social que ainda vivemos. Estamos bastante felizes com os compartilhamentos que a divulgação do filme já teve até aqui, algo que não esperávamos. Se pudermos trazer umas gargalhadas para o pessoal, assim como mostrar o potencial de produções feitas na periferia, acreditamos que nosso objetivo foi mais que atingido. Sonhamos muito com uma exibição pública do curta, com um cinema de rua ali na comunidade da Laranjeiras, mas essa projeção terá de ficar para depois da vacinação.
Confira o filme completo:
Filme com sessão comentada:
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Edição: Marcelo Ferreira