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“Tornar-se negra é uma conquista”: BBB, colorismo e relações raciais no Brasil

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"Demarcar que negros de pele clara não são negros é, sobretudo, uma ferramenta colonial, utilizados pela branquitude para enfraquecer o nosso povo" - Reprodução Twitter de Jéssica Ellen
O projeto do colorismo relembra estratégias de embranquecimento no período pós-colonial e escravista

O debate sobre colorismo novamente veio à tona, através do reality mais falado atualmente nas redes, o BBB, da rede Globo. Na ocasião, um dos participantes, cujo nome é Gilberto - ao relatar que se autoafirmava como negro - outros dois participantes questionaram tal discurso, o chamando de “sujinho” e que se o esfregasse ele poderia ser considerado branco. Episódios como este fazem parte do nosso cotidiano, inclusive, o colorismo é um dos temas mais complexos e confusos para a compreensão da população. Desta forma, para iniciar, é preciso dizer que o debate do colorismo está para além da estética, estando relacionado também à construção do racismo e das desigualdades raciais no Brasil.

O conceito

Tudo indica que, academicamente, o conceito de colorismo surgiu em 1982, usado pela escritora Alice Walker, no seu livro “If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?”. Também denominado de pigmentocracia (quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão ela sofre), o colorismo se refere ao tipo de discriminação pelos traços físicos do indivíduo, especialmente, a cor da pele. Ou seja, os negros de pele clara, em relação aos negros de pela escura, teriam uma certa “aceitação” maior na sociedade, nas relações, nas oportunidades, entre outros benefícios. Um belo exemplo a ser pensado é na aceitação que mulheres negras não-retintas, esteticamente, recebem nos filmes, nas novelas, nos concursos de beleza - entre outros, em detrimento de mulheres negras retintas, as quais ocupam um lugar mais periférico.

Oracy Nogueira, intelectual brasileiro, fundamentou muito bem esta problematização quando demonstrou dois tipos de exposição do racismo: o racismo de origem e o racismo de marca. O primeiro, tendo como exemplo os EUA; e o segundo, o Brasil. Desta forma, enquanto no território estadunidense os negros seriam discriminados e identificados pela sua ascendência (gota de sangue), no campo brasileiro, tal discriminação e identificação se daria pelos traços fenópticos e de cor. Portanto, também para o autor, a “cor” é formada pelos traços fenótipos (nariz, boca, cabelo, etc), cor da pele e origem socioeconômica. O projeto do colorismo nos relembra as estratégias de embranquecimento no período pós-colonial e escravista no Brasil, marcado pela emergência do “mestiço” e a sua possibilidade de ascensão social, bem como nas diversas identidades criadas para hierarquizar pessoas negras e assim garantir o status quo da branquitude.

Complexidades e discussões

Embora pareça uma discussão simples, falar sobre colorismo é uma questão bastante delicada. Se o colorismo, por um lado, é uma ferramenta de discriminação racial, por outro lado, ele também pode ser ressignificado para o fortalecimento da luta antirracista. É na mesma lógica que Kabengele Munanga nos fala em relação à ideologia da mestiçagem, supondo que hoje ela beneficia o branco, mas, podendo ser alterada ideologicamente para beneficiar o negro. Pois, a compreensão de estruturas racistas hierárquica na sociedade, inclusive, entre pessoas negras, sugere que seja fundamental um diálogo construtivo, em que negros de pele clara reconheçam o seu lugar de “acessos” em relação aos negros retintos. E que, por sua vez, os negros retintos compreendam que, em uma sociedade marcada pelo racismo de marca e colorismo, estão em lugar ainda mais subalterno, mas que isso não retira que os sujeitos negros com pele clara também sofrem racismo, constituindo-se como negros. Precisamos ultrapassar este mal-estar, internamente ao movimento negro, para fortalecer o antirracismo. Não há caminhos para uma nova sociedade que não seja o diálogo inter-intra o movimento negro.

Acredito que muito dos conflitos existentes em relação a quem “é negro ou não é” se refere do ponto de vista do acesso aos direitos, das ações afirmativas. Aqui, gostaria de colocar um adendo, em relação à importância da autodeclaração ser um processo individual e coletivo, não só pela questão das corriqueiras fraudes, mas pela questão de que a nossa identidade não pode ser um processo somente de como eu me vejo, mas, sobretudo como também as pessoas me veem. Não é à toa as comissões de heteroidentificação nos concursos públicos.

Concluo com frase da Lélia Gonzaléz, influenciada pela Simone de Beauvoir, “De preta, mulata, parda, marrom, roxinha, tornar-se negra é uma conquista”, pois nos evidencia, em primeiro lugar, o longo processo, ainda existente, para a afirmação da nossa identidade negra; e, em segundo lugar, a constatação de que demarcar que negros de pele clara não são negros é, sobretudo, uma ferramenta colonial, utilizados pela branquitude para enfraquecer o nosso povo.

A autodeclaração do Gilberto não pode ser questionada simplesmente por ele não ser um negro retinto, uma vez que a negritude também se reflete nos traços e na herança cultural, na qual acrescento também a questão geográfica, levando em conta que vivemos em um território duramente marcado pelo racismo em microdimensões. Portanto, é extremamente importante a abertura de pontes e diálogos para o enfraquecimento do ideário branco e, ao mesmo tempo, o fortalecimento da identidade negra.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Marcelo Ferreira