Rio Grande do Sul

Direito à cidade

“A pandemia nos ensinou que não há o indivíduo fora da coletividade” 

Para o presidente do IAB-RS, Rafael Passos, uma cidade democrática deve atender às diferentes classes sociais

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Porto Alegre foi se tornando uma das cidades mais segregadas do país, em que há um claro recorte de classe, que afasta os mais pobres do centro da cidade, das áreas centrais - Sabrina Ortacio/ IAB - RS

Neste ano, o Estatuto da Cidade completa 20 anos. Criado pela Lei 10.257/2001, tem como base servir ao planejamento das cidades, ordenando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Para isso estabelece, entre outras, a  garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. Assim como a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; e cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social. 

Neste contexto se insere o Plano Diretor, instrumento da política urbana dos municípios cuja elaboração é de responsabilidade de prefeituras, e revisados a cada 10 anos. No caso de Porto Alegre, o Plano atual é de 1999, cuja primeira revisão, aprovada em 2009, foi sancionada em 2010. A atualização da lei deveria ter sido concluída em 2020, contudo, a demora da gestão passada em iniciar o processo de discussão e, posteriormente, a pandemia prejudicaram que fosse levado a cabo. Agora, uma nova atualização, conforme divulgado pela imprensa, terá mais dois anos de debates, ou seja, vai ficar para 2023. 

Para falar sobre a importância do Plano Diretor para a construção de uma cidade democrática, o Brasil de Fato RS conversou com o arquiteto e urbanista Rafael Passos, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil do Rio Grande do Sul (IAB-RS). De acordo Rafael, Porto Alegre tem se colocado cada vez mais entre as capitais mais segregadas do Brasil.

“Precisamos reverter essa lógica. Precisamos discutir um Plano Diretor em que seus instrumentos sejam capazes de levar as suas diretrizes a serem implementadas. Ou seja, a cidade para o pedestre, a cidade que quer preservar seu patrimônio cultural, natural, cidade que quer reduzir essa segregação, que quer ser uma cidade que priorize o transporte público em despeito do transporte individual. Então essa cidade que está lá nas diretrizes e objetivos do próprio plano diretor a gente precisa tirar do papel”, afirma. 
 
Veja abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Qual a importância do Plano Diretor para a democratização da cidade? 

Rafael Passos -  Os Planos Diretores passaram, nas últimas décadas, de meros instrumentos de regulação de uso e ocupação do solo, para, a partir, sobretudo, do Estatuto da Cidade, e antes até pelo nosso próprio plano de 99, no caso de Porto Alegre, olhar a cidade como um todo, olhar para a cidade informal, para a cidade regular e pensar e tratar a cidade como um todo. 

A partir do Estatuto também veio a exigência de um processo participativo, embora ainda muito aquém do que deveria exigir, um avanço do ponto de vista da democratização do debate. E com essa ampliação do escopo do Plano Diretor, a partir do Estatuto da Cidade que diz, por exemplo, plano plurianual e as leis anuais de orçamento, ou seja, no que diz respeito ao investimento na cidade, todos os grandes investimentos da cidade deveriam estar previstos no Plano Diretor. Então o plano plurianual e a lei orçamentária deveriam ter seus investimentos aplicados a partir do que determina, define o Plano Diretor das cidades. 

Contudo vemos que não é bem assim, muitas vezes é ao contrário, obras surgem do nada, e muitas vezes fora do escopo do que propõe o Plano Diretor. Então, com todo esse arcabouço de democratização sobre o debate do plano ao qual as leis de investimento, as leis orçamentárias deveriam estar atreladas, consolida-se uma democratização do próprio debate sobre o orçamento. Deveria ser assim, não é?

Outro aspecto é na redistribuição, no caráter redistributivo dos investimentos da cidade que o Plano Diretor deveria prever como, por exemplo, serviços de saúde, de transporte, de educação. E a relação disso com sua distribuição mais equânime na cidade atendendo a diferentes parcelas, setores e classes econômicas da cidade.    


"Porto Alegre foi se tornando uma das cidades mais segregadas do país, em que há um claro recorte de classe, que afasta os mais pobres do centro da cidade, das áreas centrais" / Luciano Lanes / PMPA

BdFRS - Qual é a efetividade e a importância deste conjunto de normas para o desenvolvimento de uma cidade? 

Rafael - O Plano Diretor engloba todos os aspectos físicos da cidade, e pensa isso, as questões ambientais, do patrimônio cultural, do desenvolvimento econômicos de alguma maneira, a organização das atividades econômicas na cidade, onde pode se construir, onde se pode exercer certa atividade onde não pode. Isso tudo equalizado à questões de demanda, de oferta, ou seja, onde na cidade se pode estimular tais serviços, onde pretende se desestimular ou até mesmo proibir por seus impactos sociais, econômicos, ambientais. 

Em tese, o Plano Diretor deveria, deve, e faz isso, ele regula a forma urbana, o tamanho dos edifícios, onde se pode construir e tal tamanho. Isso deveria ser determinante para que o poder público pudesse definir, por exemplo, onde ele vai investir mais, onde ele vai aplicar maior infraestrutura, onde há infraestrutura já abundante que pode receber mais pessoas, onde o estado e o poder público não pretendem investir e por isso ele reduziria, por exemplo, todo potencial construtivo daquela área, ou para preservação ou por entendimento que ele não quer desenvolvimento, crescimento da cidade naquele sentido. E ele diz "olha faz induzir o crescimento para tal setor da cidade".

Essa relação entre uma indução para outros lugares do desenvolvimento urbano e a restrição, quando bem regulado, bem pensado, bem planejado e bem gerido traria uma eficiência, uma sinergia. Uma relação de todos ao mesmo sentido, com os investimentos públicos e privados no mesmo sentido. 

O que temos hoje é o contrário, temos um plano que tem excelentes diretrizes ambientais, se a gente olhar as próprias ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) que são importantes. Contudo essas diretrizes e princípios presentes no Plano Diretor já desde de 1999, muitas delas muito alinhadas como o que a gente vê na agenda urbana da ONU, isso não se reflete na ponta. 

É bom lembrar o princípio do direito público, o Plano Diretor diz o que se poderia fazer e o que não se poderia, não diz necessariamente o que deve ser feito. Isso, às vezes, deixa o plano diretor muito aberto e se torna um instrumento discricionário nas mãos de certos gestores que dizem: “não eu não vou fazer isso porque não está dentro da minha linha de governo". Então muitas agendas de governo, e sobretudo agendas privadas, passam a se sobrepor sobre o Plano Diretor, e aí ele perde sua eficácia.   

BdFRS - De 10 em 10 anos o Plano Diretor é revisado. Em Porto Alegre, em 2020 deveria ter sido feita uma revisão do mesmo e não aconteceu, devido à demora da gestão anterior de iniciar o processo e também devido à pandemia. Diante disso como tu avalias o atual modelo do Plano Diretor?

Rafael - A cada 10 anos o Estatuto da Cidade exige essa revisão. Nossos planos diretores aqui (Porto Alegre) têm funcionado com revisões mais profundas a cada 20 anos, isso anterior ao estatuto da cidade, já havia essa tradição. A cada 20 anos se revisava fortemente a ponto de chamar um novo plano diretor, isso desde 59. Então temos 59, 79, 99, e se esperava, o governo anterior pretendia fazer uma grande mudança no Plano Diretor, desde que assumiu em 2017. Ele teria 2017, 218, 2019 para trabalhar essa revisão para 2020. Mas começou muito tarde e teve o desmonte da secretaria que já tinha sido de urbanismo. Primeiro foi Fortunati que acabou com a SPM (Secretaria de Planejamento Municipal) e transformou em Secretaria de Urbanismo. E o Marchezan fez uma reforma administrativa em que separou o planejamento do licenciamento, e juntou o planejamento com o meio ambiente e a gente viu que isso em um primeiro momento não deu certo.

O que vem dando certo agora é a agilização do licenciamento. Isso fez com que todo o processo do Plano Diretor fosse atrasado na esfera do debate. A ideia é que começasse essa revisão em 2020, mas a pandemia abreviou, e há uma decisão do Ministério Público que determina que não pode haver o debate público nas atuais circunstâncias. 

Sobre o atual modelo temos um Plano Diretor bastante avançado, cuja base é o Plano Diretor de 99, premiado pela ONU Habitat no início dos anos 2000. E que foi objeto de algumas alterações, algumas importantes positivas e muitas delas negativas, a maioria delas trazendo maior flexibilidade. 

O atual plano diretor traz bons princípios, traz a ideia de uma cidade mista, com uma boa distribuição do comércio em relação a residências, etc, questão ambiental é bem prevista. Talvez a questão do patrimônio cultural tenha ficado aquém do necessário, mas não é só culpa do Plano Diretor. Precisa avançar em instrumentos, sobretudo naqueles que trazem possibilidades redistributivas como as áreas urbanas de ocupação prioritária onde o estado vai dizer, o município dirá: queremos dirigir nosso desenvolvimento para cá, portanto, aqui nós queremos que se construa imediatamente. E aí se usa de instrumentos previsto no Plano Diretor e no Estatuto da Cidade como a ocupação compulsória e o IPTU progressivo no tempo. 

Por outro lado pode dizer assim: não queremos mais uma cidade espalhada, está previsto a ideia de uma cidade mais compacta. Ela já é uma ideia do Plano Diretor, mas na prática vai sendo minado isso no dia a dia. Às vezes por pequenas mudanças legais, mas principalmente pela última revisão que se ampliou, e por mudanças infra-legais em decretos, muitas vezes até em aprovações de casos especiais, projetos especiais no Conselho do Plano Diretor.

Importante lembrar que quando o Estatuto da Cidade diz que deve ser revisado em cada 10 anos, ele propõe um marco para que a cada 10 seja revisado no sentido de que o Plano Diretor precisa de fato de revisões sistemáticas. Mas, por outro lado, ele não poderia ser objeto, como acaba sendo, de várias pequenas alterações pontuais e casuística, muitas vezes por interesses privados, talvez alheio ao interesse público, que encontram guarita na Câmara de Vereadores para que essas pequenas alterações venham subverter os princípios do Plano Diretor. Por isso seria importante que qualquer Plano Diretor se detivesse a esses prazos de 10 anos e não fosse esses pinga-pingas, pequenas alterações, que muitas vezes não têm base de estudo correta, sem mesmo a garantia do debate público que houve no marco das revisões.   

BdFRS - Uma das críticas à revisão do Plano Diretor diz respeito à participação popular. Como garantir a participação nos debates ao longo de todo o período da revisão e ao mesmo tempo atender aos protocolos sanitários exigidos? 

Rafael - A questão da revisão e do processo participativo é sempre um debate bastante complicado. Viemos de uma tradição em Porto Alegre de participação que vem enfraquecendo. Não vemos mais o mesmo afã de interesse em participação por parte da sociedade. 

No planejamento urbano, por outro lado, nunca houve de fato uma participação bastante ampla da sociedade. Foi um debate que ganhou força muito antes até do Orçamento Participativo. No fim dos anos 70 há uma disputa das associações de moradores, que eram muito fortes, no fim da ditadura e que debatiam tanto a redemocratização do país quanto o acesso aos serviços públicos. Isso levou a que o conselho do Plano Diretor, por exemplo, abrisse de um conselho eminentemente técnico, com representação de entidades de classe e servidores, para uma representação comunitária. Isso se ampliou com a revisão de 99, já com uma forte influência do Orçamento Participativo. 

Mas hoje vemos uma participação aparelhada e desgastada. Aparelhada por partidos que hoje também estão compondo o atual governo. Vemos agora um processo que vinha sendo construído com o governo anterior, em que pese a manutenção do atual secretário pelo atual governo, um secretário que tem uma agenda bastante alinhada com os interesses do mercado imobiliário e da construção civil e de um corpo técnico bastante jovem, um corpo técnico interessado, mas que ainda não passou por um processo complexo de revisão de Plano Diretor. 

Chegamos agora a certas regras do jogo, aprovada uma instrução normativa que estabelece processo participativo que deve ocorrer para essa revisão e que prevê que, em 2023, o projeto de lei seja encaminhado à Câmara de Vereadores. Como vai se dar isso em um ano, por exemplo, com 2021 que nós não sabemos como poderá acontecer? A ideia é que se tenha debates em grupos de trabalho, um processo menos amplo para que, em 2022, se inicie um debate mais amplo de participação da sociedade. Há a ideia também de introduzir alguns instrumentos digitais. 

O planejamento urbano parece ser muito alheio ao dia a dia das pessoas, mas na verdade ele não é. Ele impacta em uma série de serviços, uma série de condições que impactam fundamentalmente na vida urbana e, portanto, na vida de todos e de todas. 

Estamos com muito zelo, muita cautela nesse processo, o Ministério Público vem acompanhando para que possamos ter um processo participativo, que inicie por uma boa comunicação junto a todos os setores da sociedade, leve a importância do debate, o que vem a ser esse debate, de que forma ele vai ocorrer. E que esses instrumentos digitais que possam vir não substituam o processo participativo presencial rico, não estamos falando aqui de simples audiências públicas. 

Na maioria das vezes, audiências públicas questionam fortemente projetos e propostas, mas pela pouca força que tem de efetividade, as audiências públicas são ignoradas no resultado final. Precisamos ter conferências municipais de avaliação, se não me engano estão previstas duas, e que nessas conferências a gente saiba questionar e mobilizar a sociedade para que participe e questione um plano diretor que parece se desenhar aos moldes do que quer o mercado da construção civil, do mercado imobiliário, à luz também de um governo com um viés fortemente neoliberal. 

Então é uma cidade que pode ter um plano diretor baseado nessas premissas e, muito provavelmente, reduzindo inclusive os aspectos de controle social já bastante precários ou devassados que o plano atual apresenta.    


"Viemos de uma tradição em Porto Alegre de participação que vem enfraquecendo" / Breno Pataro

 
BdFRS - Neste ano o Estatuto da Cidade completa duas décadas. Qual a sua avaliação desses 20 anos, avanços e retrocessos?

Rafael - Os avanços, eu diria, é a inclusão de diversos instrumentos, sua previsão legal em diversos planos diretores, a consideração em muitos planos diretores e pelos gestores municipais em muitos casos. Ponto negativo é a inobservância dos princípios basilares do Estatuto da Cidade nas decisões judiciais. O Judiciário parece não reconhecer a importância que tem o estatuto da cidade do ponto de vista normativo, sobretudo sobre dois aspectos que redundam em todos os demais, que é a questão social da propriedade e a função social da cidade. Esses dois princípios que estão na Constituição deveriam trazer garantias de que a propriedade e o direito de propriedade fossem relativizados em função social. Função social entendida aqui não necessariamente como habitação popular e tal, não, ele precisa estar atendendo aquilo que fala o Plano Diretor, um terreno atendendo aquilo que propõe o Plano Diretor. 

Isso vale, por exemplo, aos vazios urbanos. Poucas coisas são menos eficientes em uma cidade do que um vazio urbano em uma área com grande oferta de infraestrutura. Nós termos muitos vazios urbanos que são, isso sim, o suprassumo da ideia de especulação imobiliária, com um terreno vazio esperando o melhor momento para um investimento naquela área. Enquanto isso o poder público, o interesse público fica em segundo plano, ou seja, prédios e terrenos que não cumprem a sua função social.

Uma série de outros instrumentos estão no papel, no Estatuto da Cidade, muitas vezes gravada nos planos diretores, mas não são implementados de fato, não são regulamentados. 

Um dos pontos negativos do princípio do estatuto é ter deixado tudo para ser regulamentado em um nível municipal. No nível municipal temos grandes interesses econômicos bastante ativos sobre o poder político local, que leva a que muitos instrumentos desses não sejam implementados porque contrariam esses interesses. Talvez, saindo um pouco do âmbito dos municípios, esses interesses ganhem menos força.  

BdFRS - A capital gaúcha já foi referência participativa e cidadã, e também no debate do Direito à Cidade. Como avalias atualmente a gentrificação na cidade?

Rafael - Ao olhar um pouco para as origens do Orçamento Participativo, a gente vai ver que ele surge na administração popular, mas ele surge muito como uma reação, uma resposta daquela administração a uma demanda social muito clara. A gente tinha naquele momento uma densidade muito grande de associação de moradores muito bem mobilizadas que cobravam qualidade dos serviços urbanos, serviços públicos, e cobravam a participação democrática na gestão pública. Isso levou à concepção do Orçamento Participativo para dar vazão e resposta a essa demanda social por esses dois aspectos. 

De lá para cá vimos um esvaziamento, um enfraquecimento dessa capacitação de mobilização dessas entidades e um aparelhamento muito forte do Orçamento Participativo e outras instâncias de participação social na cidade, como os conselhos e o próprio conselho do Plano Diretor por pessoas ligadas e articuladas pelos próprios partidos que assumiam a prefeitura. Por outro lado os partidos de esquerda não conseguiram responder, ou não houve interesse em responder, no sentido de tomar esses espaços como necessários de disputa para a própria questão política da cidade. 

E nesse meio tempo Porto Alegre foi se tornando uma das cidades mais segregadas do país, em que há um claro recorte de classe, que afasta os mais pobres do centro da cidade, das áreas centrais. E por um modelo de gestão de sucessivas administrações que vem favorecendo cada vez mais, exclusivamente, interesses do mercado da construção civil. Muitas vezes até mesmo contrariamente não só a interesses das camadas populares, mas até mesmo contrários ao desenvolvimento econômico de outros setores que se veem também impactados fortemente por essa sanha do mercado imobiliário em Porto Alegre, o mercado da construção civil, que tem uma predominância muito grande e um grau de interferência muito forte sobre os gestores públicos. 

Isso tem levado a uma cidade cada vez mais desorganizada, uma cidade mais cara para a gestão pública e também muito cara para a população em geral, mas sobretudo para a população mais pobre, cada vez mais afastada dos serviços, cada vez mais afastada dos locais de trabalho. E uma cidade também que, ainda que cresça para cima, se verticaliza em lugares em que talvez não precisasse se verticalizar tanto. Mesmo assim é uma cidade que não abriu mão, não assumiu o controle da sua expansão urbana sobre áreas ambientais, mesmo pelo mercado formal.  

Para a maioria das pessoas, a ocupação de áreas irregulares, que em geral acabam sendo sobre áreas ambientais que deveriam ser protegidas, acaba sendo a única alternativa para uma grande parte da sociedade. E uma cidade, então, que também não tem oferecido políticas habitacionais capazes de responder a essa demanda cada vez maior, nessa Porto Alegre cada vez maior e mais segregada.

BdFRS - Porto Alegre foi uma das cidades sedes da Copa do Mundo, onde vivenciamos desapropriações para obras, como a Avenida Tronco, que não foi finalizada até hoje. Como está o debate dos megaempreendimentos?

Rafael - Nós já não vivemos um tempo de grandes investimentos públicos em obras públicas como vivemos no período das administrações petistas. Pelo contrário estamos vivendo um tempo que se alega não haver dinheiro para grande obras, para grandes investimentos. Com isso tem se consolidado uma ideia de que os grandes investimentos tem que partir cada vez mais do setor privado. Isso tem levado a uma série de parcerias público/privadas, de entrega de parte do nosso patrimônio, da gestão desse patrimônio e do espaço público, inclusive, à iniciativa privada. Esse é um dos aspectos importantes, uma mudança significativa que a gente está vendo na gestão pública do país, no estado e no município, muito alinhados, inclusive, nesse aspecto. 

Os grandes empreendimentos têm ganhado cada vez mais força pelo discurso fácil do curto prazo, de que grandes empreendimentos geram emprego, que na verdade geram emprego em um curtíssimo tempo. Então a máquina tem que continuar rodando e novos empreendimentos tem que acontecer, sem que se avalie de fato qual o impacto desses grandes empreendimentos a longo prazo para uma visão de futuro da cidade. E esse aspecto não tem sido mais muito bem contemplado com o esvaziamento e a extinção da Secretaria de Planejamento, e um esvaziamento de toda capacidade de gestão do planejamento, acompanhado de uma priorização dos aspectos de facilitação do licenciamento urbano, sobretudo facilitação que coloca os grande projetos como prioritários para a cidade. 

Ou seja, algumas dezenas de projeto ganham status de importância e eles devem ser encaminhados prioritariamente. Então sai uma série de decretos que têm levado com que esses projetos sejam os que serão de fato analisados primeiro, enquanto uma série de pequenos empreendimentos, que poderiam estar respondendo a uma geração de emprego e renda talvez mais eficiente do que as grandes empresas que fazem esses grandes empreendimentos, ficam parados na burocracia. 

Por outro lado corre aí a ideia do autolicenciamento, uma ideia de que o responsável técnico seja o único responsável, e o poder público lavando as mãos sobre sua responsabilidade de fiscalizar a atuação do setor privado para a vida coletiva. E a pandemia nos ensinou que não há o indivíduo fora dessa coletividade, porque a coletividade mais cedo ou mais tarde, e cada vez mais em um mundo denso e cidades densas, bate à porta do indivíduo. 


Governo do RS prevê concessão do Cais Mauá à iniciativa privada / Guilherme Santos / Sul21

BdFRS - Ainda dentro sobre empreendimentos e revitalização da cidade, há o processo antigo do Cais Mauá. O governador Eduardo Leite (PSDB) firmou um acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para dar início a um projeto de reestruturação do local. Como tu analisa esse processo e qual deveria ser a melhor forma para se dar essa revitalização?

Rafael - Sobre o Cais Mauá, nos preocupa, e lamentamos a forma como o governo do estado vem conduzindo o processo. Logo depois que o governo anunciou o rompimento do contrato com o consórcio anterior, nós pedimos uma reunião com o governador, que encaminhou uma reunião com o secretário do planejamento. 

Nessa reunião manifestamos que gostaríamos de um processo transparente e que fôssemos informados e convidados a debater sobre o futuro do cais, apontando que não se poderia repetir o erro de fazer um grande projeto sem que esse projeto, por sua escala e por seu impacto, ele é uma grande porção da área central da cidade, sem que esse projeto acompanhe um plano para o centro da cidade, em que se busque minimizar os impactos negativos que certamente virão. Um deles com certeza virá, é um área da cidade que está saturada do ponto de vista do seu trânsito e mais atividades ali vão exigir mais trânsito. Como se resolve isso? Não tem terreno se quer para resolver isso. Tem que pensar esse projeto fora de seus limites, se não ele vai virar, como alguns arquitetos chamam, um frango no pires, ele não cabe em si mesmo. 

Espero que apesar desse passo adiante, nessa parceira com o BNDES, não se faça novamente o erro de se ter um plano de negócio antes de se ter um projeto urbanístico, arquitetônico, e antes de se ter um debate público sobre o que se pretende fazer com esse espaço carregado de identidade e que carrega alimento imaginário de Porto Alegre. 

Talvez fazer um concurso internacional de projeto e dar a visibilidade que o cais merece. 

BdFRS -  Como fica a relação meio ambiente e empreendimento, tomando por exemplo a Ponta do Arado?  

Rafael - Em projetos como da Ponta do Arado, há um claro comprometimento do ambiente natural, uma área de banhado, uma área suscetível a alagamentos. Há regras que não se pode executar enquanto estão baixas, que são usadas quando se quer proibir regularização em certas áreas, mas que se nega a regra quando há grande empreendimentos, esse é o caso do projeto do Arado. Uma coisa é ter sido aprovado o projeto de lei, esse projeto já tinha sido objeto de estudo da viabilidade urbanística antes da aprovação da lei e esse estudo de impacto ambiental foi questionado pelo Ministério Público. Na Justiça está parado porque se considera que houve uma fraude. 

O que a gente precisa é repensar quanto ainda cabe na cidade empreendimentos que espalham a cidade sobre as áreas naturais que vão no contraponto de uma cidade compacta, uma cidade que vai se tornar mais sustentável.
 
BdFRS - Por fim, qual seria o modelo de cidade mais próximo do ideal de uma cidade democrática, inclusiva, como chegar a isso e qual o papel da arquitetura nesse processo?

Rafael - Uma cidade democrática é aquela que de fato cria e amplia seus canais de debate sobre, por exemplo, grandes projetos. Não há qualquer contradição entre se discutir a agilidade, a celeridade na aprovação de projetos corriqueiros, com um maior debate público, uma maior transparência, sobre os grandes projetos. Contrapor essa visão de cidade/mercado que está posta como dominante cada vez mais, uma vez que estamos vendo as cidades se tornarem ativos do sistema financeiro internacional. 

E essa cidade democrática, em termos de que cidade é essa, fora da questão institucional que eu coloquei de haver debates públicos mais frequentes sobre grandes projetos, é também uma cidade que debate seu futuro e a priorização de certas ações que estão previstas no Plano Diretor. Lembrando que é o plano que estabelece o que pode ser feito. Agora, deveria haver uma discussão pública sobre o que se quer que seja feito prioritariamente. O que queremos que seja feito prioritariamente é um investimento em espaços públicos de grande destaque, ou queremos pequenas intervenções no espaço público, concentradas, quem sabe, nos lugares onde realmente precisa de melhorias urbanas de um modo geral. 

A cidade democrática carece de defender a qualidade dos serviços públicos. E a qualidade dos serviços públicos e a acessibilidade aos mesmos têm se demonstrado que devem ser geridas pelo setor público. São vários casos no mundo inteiro de cidades, principalmente europeias, e também nos Estados Unidos, que têm reestatizado serviços básicos como a água e o esgoto e nós estamos indo na contramão disso agora com uma proposta de privatização do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto)

Do ponto de vista da forma da cidade, sustentável, democrática, inclusiva é a cidade que vai se preocupar em ter trabalho perto das casas das pessoas, que vai reduzir a necessidade de grandes deslocamentos diários para toda a população. Tem que produzir oportunidades de trabalho perto de onde existe prioritariamente habitação, e por outro lado levar habitação, sobretudo habitação do interesse social, para áreas onde há maior oferta de trabalho. E buscando uma cidade miscigenada do ponto de vista das classes sociais e também dos usos. Sobretudo das classes sociais, porque Porto Alegre tem se colocado cada vez mais entre as capitais mais segregadas do Brasil e precisamos reverter essa lógica, buscando então essas aproximações. 

Essa melhor distribuição do uso e ocupação é que precisa ser melhor trabalhada e menos entregue a essa lógica à qual tem sido entregue, que é a lógica do mercado, ainda que haja regras no Plano Diretor, elas são aquém do necessário. Precisamos discutir um Plano Diretor em que seus instrumentos sejam capazes de levar as suas diretrizes a serem implementadas. Ou seja, a cidade para o pedestre, a cidade que quer preservar seu patrimônio cultural, natural, a cidade que quer reduzir essa segregação, que quer ser uma cidade que priorize o transporte público em despeito do transporte individual. Então essa cidade que está lá nas diretrizes e objetivos do próprio Plano Diretor, a gente precisa tirar do papel. 

No aspecto de quem participa do debate público da cidade, a partir do plano de 79 até o de 99, nesse meio tempo tínhamos uma grande capacidade de mobilização dos movimentos de associação de moradores, de movimentos locais de caráter mais territorial. Nós vimos esses movimentos perderem muita força nos últimos anos, mas, por outro lado, temos visto alguns movimentos quererem ganhar o seu espaço, buscando seu espaço, e que deveriam fazer o debate sobre a cidade democrática. São exemplos movimentos afirmativos de gênero, de raça, cuja exclusão, discriminação e preconceito também são encontrados no desenho da cidade, na forma da cidade mais ou menos excludente. Por isso é fundamental que esses movimentos assumam para si também um papel protagonista no papel do futuro da cidade.  

A pandemia nos ensinou que não há o indivíduo fora da coletividade. 


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Edição: Marcelo Ferreira