Rio Grande do Sul

CULTURA POPULAR

Entidades carnavalescas se reorganizam para manter atuação na pandemia

Além de promover atividades nas redes sociais desde o início do distanciamento, escolas e blocos ajudam suas comunidades

Julia Gonçalves Barbosa, 10 anos, porta-estandarte do bloco, participava das aulas na sede porque, segundo ela, “mesmo em grupo, é muito melhor assistir pelo computador do que pelo celular” - Flávio Dutra/JU

A incerteza diante das restrições impostas pela pandemia fez com que as entidades carnavalescas tivessem que se reinventar. O isolamento social e as restrições sanitárias deixaram muitas atividades realizadas dentro das quadras e barracões em modo de espera.

Érico Leotti, presidente da Imperadores do Samba, conta que, na expectativa de voltar a qualquer momento, a escola não realizou nenhuma atividade artística. “O primeiro semestre nos pegou em choque por conta da pandemia. Fizemos só o processo de manutenção da escola, uma comunicação com os sócios para que se mantivesse a receita.”

No segundo semestre de 2020, a escola se reorganizou e elaborou um calendário com atividades socioculturais online para a comunidade. “Desde agosto a gente vem com eventos quase todos os meses. Nos reinventando, fazendo o evento possível, utilizando a rede social da escola”, pontua Érico. Esses eventos contaram principalmente com lives artísticas, trazendo apresentações da escola e de artistas da cultura negra e rodas de conversa com temáticas como racismo e desigualdade.

A Imperadores também promoveu um festival de samba de exaltação. As cinco canções inscritas foram a voto popular na internet e passaram pela apreciação de sete jurados. A grande final foi na comemoração dos 62 anos da escola, no dia 19 de janeiro, com os intérpretes e a bateria. Os compositores tiveram que assistir de casa.

Nesse ano bem atípico, comemoramos o aniversário da escola como nunca havíamos comemorado, com o público em casa e a gente transmitindo pelas redes sociais.

Érico Leotti

 

O primeiro colocado, o samba composto por Rafael Tubino, Dodô Ananias, Diego Bodão e Marquinhos Brum, ficou com uma premiação em dinheiro, além de fazer parte do repertório da escola. As 10 cestas básicas arrecadadas com a inscrição dos concorrentes foram doadas a uma ONG da zona norte da capital.

Por sua vez, a Sociedade Beneficente e Cultural Bambas da Orgia, em comemoração aos seus 80 anos, promoveu seu festival de samba de exaltação no ano passado. A premiação aconteceu no dia primeiro de outubro em um evento transmitido de forma online.

A composição campeã, Meu Amor de Bamba, de Victor Nascimento, Roberto Nascimento e Rodrigo França, tornou-se o samba oficial de comemoração do aniversário da escola fundada em 6 de maio de 1940.

Em 2019, a Bambas da Orgia, localizada no bairro Floresta, tornou-se Ponto de Cultura Terra de Bambas, reconhecida pela Secretaria Especial da Cultura em execução conjunta com a Secretaria Estadual da Cultura. De acordo com o presidente, Nilton Pereira, a verba de R$ 60 mil possibilitou a aquisição de materiais e a criação de oficinas de porta-bandeira e mestre-sala, percussão, alegorias e adereços e comissão de frente. Já são em torno de 20 oficinas transmitidas no canal Youtube da escola.

Projetos interrompidos

Daniel Mença, intérprete da Unidos da Vila Mapa, conta que a quadra da escola, antes da crise do novo coronavírus, costumava estar aberta, oferecendo aulas de música para formar os instrumentistas que compõem a bateria. 

Os destaques da escola davam aulas de mestre-sala e porta-bandeira, passista e comissão de frente para os interessados dentro da comunidade. Além das atividades relacionadas ao Carnaval, também eram realizadas aulas de hip hop e capoeira pelo menos duas vezes na semana. Com o prolongamento da pandemia, essas atividades seguem suspensas. 

Quando tinha a quadra da escola aberta para a comunidade, a Estado Maior da Restinga promovia aulas de dança e canto, uma escolinha de futebol, atividades voltadas principalmente para as crianças do bairro. Segundo o vice-presidente, Helvio Dias, as atividades tiveram que ser interrompidas por falta de estrutura para seguir os protocolos de segurança.

Cleusa Astigarraga, a tia Cleusa, conta que o Bloco Areal do Futuro também precisou suspender o trabalho que fazia com as crianças do Areal da Baronesa. As oficinas de dança, percussão, perna de pau, entre outras, que atendiam cerca de 20 crianças cada uma, não estão acontecendo por falta de espaço para manter o distanciamento social.


No Areal da Baronesa, o bloco Areal do Futuro adaptou a lan house disponível para que as crianças da comunidade pudessem acessar as aulas remotas / Fotos: Flávio Dutra/JU

O futuro é cultivado no presente

Além da suspensão das atividades, a pandemia também trouxe desafios pedagógicos para os estudantes do Areal da Baronesa. Com o ensino remoto nas escolas, as crianças e adolescentes da comunidade recorreram à sala de informática do bloco carnavalesco para acompanhar as aulas online.

Durante o ano letivo, pelo menos três vezes na semana, Cleusa acompanhava de duas a três crianças e jovens na pequena sala de informática para que pudessem assistir às aulas remotas. “A lan house esse ano foi utilizada para os estudos”, conta.

O Natal das crianças do Areal do Futuro precisou seguir rigorosos protocolos de segurança, mas não deixou de ser realizado. 

A gente sempre fazia o Dia das Crianças. Fazíamos uma festa grande para eles, com almoço, brinquedos. Este ano, como foi atípico, a gente não conseguiu fazer. No Natal a gente fez somente a distribuição de presentes. As crianças entraram uma a uma e foi complicado para nós porque elas queriam abraçar e beijar, e a gente não podia. Foi até triste, mas foi o que a gente pôde fazer.

Cleusa Astigarraga

 

A Imperadores do Samba, fundada em 19 de janeiro de 1959, sempre teve em sua história uma relação com as crianças, como conta o presidente. Todo ano a escola realizava um evento voltado para elas em outubro. 

Com a impossibilidade de ser feito presencialmente na quadra localizada no bairro Praia de Belas, nos quatro sábados do mês realizaram eventos online de integração entre os destaques da escola e as integrantes do projeto Mini Divas, que atende a cerca de 60 crianças com aulas de dança. “É o futuro da escola. A gente sempre trabalhou muito a questão da criança. A escola foi fundada por seis adolescentes. A gente dá muita atenção para as nossas crianças”, ressalta Érico.

A Estado Maior da Restinga teve um projeto aprovado para receber o incentivo da Lei Federal Aldir Blanc (n.º 14.017, de 29 de junho de 2020), que irá possibilitar aulas de dança (mestre-sala, porta-bandeira e passista) e de música, que inclui instrumentos como cavaquinho e tamborim. 

O projeto será voltado para as crianças do bairro Restinga e iniciará na segunda quinzena de março. “Nossa ideia é abrir a quadra a semana toda para contemplar as crianças, para elas não ficarem nas ruas”, conta Helvio.

Cultura popular, cultura familiar

Para Daniel Mença, a Unidos da Vila Mapa, fundada em 27 de fevereiro de 1991, na Lomba do Pinheiro, é um espaço familiar. Ele participa da comunidade carnavalesca da escola desde o início – começou como ritmista antes de ser intérprete.

Com o irmão presidente da escola, a mãe participante da Ala das Baianas e o sobrinho de mestre de bateria, Daniel fala que a maioria dos integrantes da escola cresceu dentro da quadra, o que aumenta a identificação e união de todos.

Filho de Helio Garcia Dias, um dos fundadores da Estado Maior da Restinga, Helvio sempre viveu dentro da quadra da escola fundada em 20 de março de 1977. Sua mãe, ex-porta-bandeira, o levava, ainda dentro do ventre, para brincar Carnaval. Seu primeiro desfile foi na Ala Black Porto em 1986, com seis anos. 

A história é de família. Vem de berço, desde que eu me conheço por gente, vivo dentro da escola.

Helvio Dias

 

Preconceito com a cultura carnavalesca

Ainda que a principal atividade das escolas seja o Carnaval, essas entidades se envolvem com a comunidade levando arte, cultura e renda. A Estado Maior da Restinga emprega mais de 20 costureiras e 20 pessoas para trabalhar no barracão, por exemplo. “As escolas de samba não se juntam só em fevereiro, têm um trabalho de um ano para o outro, e é isso que a gente quer passar. Às vezes somos marginalizados porque as pessoas acham que a gente se junta para tomar cerveja e chega o dia do desfile passamos na avenida. E não é isso”, exclama Helvio.  

A Fidalgos e Aristocratas, fundada em 7 de setembro de 1950, já sofreu casos pontuais que acentuam o preconceito com a cultura do Carnaval. A escola teve sua primeira sede no bairro Mont’Serrat e atualmente se localiza no Centro Histórico. “Em 2019, fomos fechados pelo Ministério Público através de uma denúncia. Só que esse fechamento se deu no período de maior uso que é dezembro, janeiro e fevereiro, e nós ficamos fechados no Carnaval”, lembra o presidente André Duarte.

Passamos por vários empecilhos nessa questão do direito de exercer a cultura, de muitas vezes ser marginalizados. A sociedade acaba nos impondo que o samba tem que ser periférico e não pode estar nos grandes cenários.

André Duarte

 

Solidariedade carnavalesca

A pandemia deixou muitos membros das escolas de samba sem trabalho e renda. Nesse sentido, os olhares solidários se ampliaram. A Unidos da Vila Mapa, no primeiro sábado de cada mês, distribui em média 250 quentinhas para a comunidade, segundo Daniel Mença.

Em parceria com a Central Única das Favelas (CUFA), a Estado Maior da Restinga já entregou 700 cestas básicas. A entrega foi feita via cadastramento, e as pessoas retiravam sua cesta na quadra. No entanto, mais de 2.500 pessoas não cadastradas fizeram fila do lado de fora para tentar retirar os alimentos também.

Foi uma situação bem delicada. Com tudo fechado pela pandemia, o nosso povo que é carente foi lá para receber essa cesta. A gente teve que sair às nove da noite escoltados por quatro camburões, porque as pessoas queriam invadir a quadra por pensarem que tinha mais cestas.

Helvio Dias

 

O projeto Amor ao Próximo da escola Fidalgos e Aristocratas, por sua vez, realiza doações quinzenais de cerca de 200 refeições e também distribuiu 500 cestas básicas durante o ano de 2020. O Natal da escola também foi marcado pela solidariedade: foram doados em torno de mil brinquedos para as crianças.

A Imperadores do Samba iniciou em abril a campanha Sua Solidariedade é um Prato Cheio, com arrecadação continuada de doações. “Entregamos aos sábados, em média, 30 cestas básicas”, conta Érico.

Por meio de uma parceria firmada no segundo semestre de 2020 com a ONG Ação da Cidadania, houve a possibilidade de ampliar esse número para até 50. “Enquanto não acabar essa pandemia, a gente vai continuar com esse olhar solidário para o nosso pessoal”, conclui o presidente da Imperadores.

Edição: Jornal da Universidade UFRGS