Rio Grande do Sul

Coluna

OMIÔ ODÔ YEMANJÁ

Imagem de perfil do Colunistaesd
Neste ano, um decreto do governo estadual proibiu a realização das festas religiosas e das homenagens à Yemanjá - Arquivo pessoal
O impedimento à expressão da religiosidade destes povos configura verdadeiro genocídio epistemicida

No final do mês passado, o governador Leite anunciou proibição das festas religiosas de Yemanjá. Afirmava ter por objetivo evitar aglomerações e preservar a saúde. No final de janeiro, o Decreto 55.736, que trataria disso, foi atualizado proibindo, entre as 18 horas da tarde de segunda-feira, 1º de fevereiro, e as 8 horas da manhã de terça-feira, 2 de fevereiro, o acesso da população ao litoral, aos rios e aos lagos do Rio Grande do Sul. Exata e apenas nestes momentos, em que se realizam, naqueles locais, homenagens de tradição, talvez milenar, à divindade Yemanjá.

O governador não admitiu a possibilidade de regramentos como aqueles observados nos supermercados, nos shoppings, ou ainda naquelas mesmas praias, durante todos os outros momentos. Na prática, aquele decreto proibiu tão somente a realização das festas religiosas e das homenagens à Yemanjá. Para amenizar o drama, a mídia oficial e corporativa passou a recomendar que, em substituição às velas, às oferendas de flores, perfumes, danças e orações à beira d'água, os povos tradicionais de matriz africana realizassem carreatas.

Importante salientar que ao se autodeclarem povos tradicionais de matriz africana, aquelas pessoas se percebem como membros de grupos identitários que resistem, mantendo suas práticas, línguas e sistemas, no interior de estados governados por seres que pretendem anulá-los por serem contrários à suas cosmovisões, mitos e ritos. Perceba-se aqui que estes povos sabem ter seus direitos reconhecidos e garantidos pela convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Ali define-se que o território dos povos se estende aos limite necessários para a manutenção de suas tradições e que a expressão destas não pode ser constrangida. O impedimento à expressão da arte, cultura, tradições e religiosidades destes povos, ao negar sua própria vida, como estes a compreendem, configura verdadeiro genocídio epistemicida.

Voltando ao decreto do governador, cabe considerar que aquele, além de interditar áreas sob responsabilidade da Marinha, e desrespeitar direitos constitucionais de crença e fé, evidenciou clara incompreensão do gestor público para com a enorme humilhação imposta à lideranças religiosas e a seus seguidores. Imaginem a frustração de milhares de famílias, que em muitos casos só conseguem ir ao local de culto uma vez ao ano, e o fazem em grupos, com preparações que envolvem expectativas e organizações desenvolvidas ao longo de vários meses. Afastados de uma praia vazia, à noite, em feriadão de praias cheias, para a satisfação e júbilo de adeptos de outras congregações. Aquelas igrejas que crescem em influência política, e que costumam demonizar crenças e espiritualidades que contraditam seus interesses, aplaudiram o fato.

Em seu livro O Reino: a história de Edir Macedo e uma radiografia da Igreja Universal, Gilberto Nascimento traz pistas que podem nos ajudar a entender o que vem ocorrendo neste pais laico, onde nem todas as crenças são iguais perante a lei. O livro sustenta que a mais conhecida das “nossas” igrejas evangélicas teria decidida atuação no meio político e operaria como conglomerado empresarial inserido em diferentes setores da economia. Na Assembleia Constituinte de 1987, aquela igreja já contaria com 32 parlamentares, e teria, posteriormente, crescido e se fortalecido ao ponto de influir nas eleições presidenciais de Collor, FHC, Lula e Bolsonaro. Para maiores informações, leia o livro ou pelo menos a bela resenha de Rodrigo Netto, sobre O Reino.

Aqui interessa tão somente demarcar a assimetria no trato de questões de ordem espiritual, por agências de um governo que deveria representar o povo.

De um lado os seguidores de Yemanjá e outras divindades cultuadas pelos povos de matriz africana postulariam a defesa da água como bem comum, direito de todos e elemento de ligação com o divino. De outro lado, a articulação entre as bancadas da bala, do boi e da bíblia, base ativa dos governos Bolsonaro e Leite, apoiaria os ecocídios, as queimadas, o avanço no uso dos agrotóxicos e outras pautas ameaçadoras ao território, à cultura e à alma de nossos povos.

E é este o ponto onde este texto pretendia chegar.

De um lado, a maioria representada aqui por povos de matriz africana, que baseados em suas crenças, tradições e cultura, afirmam: não podemos envenenar a água que é única e milagrosa. Ela existe em tudo que respira, ela dá base e formato à vida em toda suas formas, ligando netos e antepassados de todos os seres. É sagrada, e deve ser protegida.

De outro lado, temos interesses de mercado e vários tipos de igrejas apostando na concentração de ganhos a curto prazo, para uma minoria. Com o sucesso destes, e em benefício de seus associados ruralistas, chegamos ao ponto em que pelo menos um em cada quatro municípios brasileiros distribui a seus cidadãos, água “potável” com resíduos de 27 agrotóxicos, boa parte dos quais proibidos em outros locais do planeta.

Na disputa daquelas visões de mundo, pelos corações, mentes e espiritualidades, da vida contra a morte, do bem contra o mal, o governador Leite se colocou ao lado do pior, colaborando com mecanismos de perseguição, discriminação e Intolerância religiosa.

Finalizando, reproduzo as palavras de Iyá Vera, do FONSANPOTMA, a quem agradeço em nome de todos.

“OMIÔ ODÔ YEMANJÁ TENTARAM CALAR NOSSAS VOZES, TENTARAM CALAR NOSSOS TAMBORES TENTARAM NOS DIZER QUE A NOSSA FÉ PODE SER PARADA!!!

MAS ESQUECERAM QUE A DONA DO PENSAMENTO JAMAIS ESQUECE DAQUELES QUE GENUINAMENTE CULTUAM A TRADIÇÃO DE MATRIZ AFRICANA.

YEMANJÁ É O PROPRIO OCEANO E NÃO HÁ DIA NEM HORA PARA QUE POSSAMOS REVERENCIA-LA.

OU ELES ACREDITAM QUE PODERÃO NOS  CALAR PARA SEMPRE?”

IYA VERA SOARES

IYEMANJÁ ORY-ENTA SAGRADAS MULHERES AGUAS

Para reflexão, uma homenagem a Yemanjá:

Meus agradecimentos à Kota Mulangi, Tata Edson, Itanajara Almeida e Iyá Vera, pelas orientações e aconselhamentos no trato deste tema.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira