Há quase um ano presente no país, a pandemia causada pelo novo coronavírus transfigurou a realidade e alterou profundamente as relações de trabalho, econômicas e pessoais. No caso brasileiro, com um mercado de trabalho e uma economia já fragilizada, ela veio para agravar esse quadro.
Segundo Lucia Garcia, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e especialista em mercado de trabalho, o efeito da pandemia sobre a economia brasileira foi de aprofundar um estado já de precariedade de funcionamento. “É importante dizer que a economia brasileira ia muito mal em março de 2020, quando o coronavírus atingiu o Brasil, nosso país já era um corpo doente. Além disto, a principal consequência desta pandemia sobre a economia é sua indução à depressão e paralisação econômica, visto que as pessoas precisam se distanciar. Não queremos que os coletivos de trabalho se encontrem dentro da fábrica, dentro da loja. Não queremos que os consumidores se aglomerem nos mercados”, destaca.
Para a economista, um quadro sobre os resultados finais do ano de 2020, para fazer um balanço do que aconteceu até agora, deve sair somente em abril. Para se ter uma ideia, o Brasil fechou o ano de 2020 com mais de 14 milhões de desempregados, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O Brasil de Fato RS conversou com a economista Lúcia sobre o mercado de trabalho e os efeitos da pandemia sobre ele e a economia.
Abaixo, a entrevista completa:
Brasil de Fato RS - A última pesquisa do IBGE aponta que há 14 milhões de desempregados no país. O que há por trás desses números? O que fica de fora desse quadro?
Lucia Garcia - Esse número reflete o número de pessoas com idade acima de 14 anos que buscam ativamente uma oportunidade de trabalho e que não têm nenhum tipo de exercício de trabalho nos sete dias anteriores à entrevista. Portanto, é um tipo de população bastante específica, é uma população que não tem outro meio de obtenção de renda e se especializa na procura de trabalho.
Ficam de fora desse número as pessoas que não procuraram trabalho na conjuntura recente, nos últimos 30 dias, mas buscaram ocupação nos últimos três ou seis meses, até um ano atrás. Também ficam de fora deste cálculo aquelas pessoas que estão procurando trabalho, mas, simultaneamente, realizaram alguma atividade produtiva de caráter precário e irregular remunerada. São aqueles que procuram a carteira assinada ou melhores condições de trabalho e segurança. Esta última parcela da força de trabalho realiza pequenos bicos. Por exemplo, neste segmento está incluída a nossa juventude que faz alguma atividade de tipo “freelancer” em bares, feiras, etc.
Então a gente diz que esse é um número parcial, pois não reflete a exclusão e a precariedade no mercado de trabalho. O indicador de desemprego oficial nos dá algo bem específico – a proporção de desempregados que pertence a um grupo único ligado à dinâmica da economia central ou mais capitalista. Isto exclui pelo menos 10 milhões de pessoas. Trata-se, então, de um número incompleto, porque é especializado e bastante excludente. Esta taxa é diferente da taxa de desemprego total do Dieese, por exemplo. A taxa de desemprego oficial se refere ao desemprego aberto ou descoberto, ou explicito.
O que não é revelado por ela? A situação dos brasileiros que estão à procura de trabalho e renda, de forma oculta na sociedade.
BdFRS - Como a pandemia influenciou ou agravou a situação do mercado de trabalho? Que impactos ela trouxe para a economia? Nesse contexto quem foram os mais prejudicados?
Lúcia - É importante dizer que a economia brasileira ia muito mal em março de 2020, quando o coronavírus atingiu o Brasil, nosso país já era um corpo doente. Além disto, a principal consequência desta pandemia sobre a economia é sua indução à depressão e paralisação econômica, visto que as pessoas precisam se distanciar. Não queremos que os coletivos de trabalho se encontrem dentro da fábrica, dentro da loja. Não queremos que os consumidores se aglomerem nos mercados.
Esse distanciamento, por si, fez a produção mundial declinar. Porém, o que aconteceu em vários países no mundo foi a tomada de liderança dos governos, dos Estados Nacionais, no processo de coordenação da defesa de pessoas e economias locais. Isto, por exemplo, ocorreu na proposição e monitoramento de cronogramas que associavam lockdown, paralisações seletivas ou parciais, intercalados com com liberalizações de funcionamento de atividades produtivas e comerciais. Estes cronogramas, portanto, tenderam a organizar a vida, a economia e o emprego, mitigando os efeitos depressivos. Em associação aos cronogramas, programas de renda emergenciais salvaram rendas e vidas.
No Brasil, mesmo quando uma unidade federativa, em nível estadual ou municipal, construiu indicadores para elaborar um calendário de restrições, não conseguiu grande coisa. Ou seja, os governos subnacionais não se legitimaram para operar esse cronograma, principalmente porque o governo federal jogou contra essa organização econômica. Então o efeito da pandemia sobre a economia brasileira foi de aprofundamento de uma condição de precariedade da estrutura produtiva.
O impacto da pandemia no mercado de trabalho deve ser visto em três direções – em relação à ausência de proteção institucional, aos setores de atividade paralisados e identificando os segmentos populacionais mais vulneráveis à crise.
Assim, os mais prejudicados foram justamente aqueles que têm menor cobertura institucional, ou seja, todos aqueles sem carteira assinada, trabalhadores informais ou os trabalhadores da modalidade MEI, donos de pequenos negócios e empreendimentos familiares. Os trabalhadores informais e pequenos produtores.
Do ponto de vista setorial, o prejuízo imediato recaiu sobre os segmentos que dependem dos grandes aglomerados para atingir escala de funcionamento - a indústria do entretenimento, shows, eventos esportivos, bares, restaurantes, arte, turismo, companhia áreas e transporte terrestre coletivo. Esses foram os primeiros a sentir o efeito da crise e poderiam ser os únicos a serem socorridos. Entretanto, como a ausência de coordenação prolongou o estágio crítico, a situação se transformou em crise crônica, irradiada para toda a economia.
Em terceiro lugar, podemos apontar as parcelas populacionais que sentiram, via mercado de trabalho, o maior impacto da crise. Destacando as mulheres porque tiveram que regressar aos lares para cuidar dos seus filhos, de pais, assumir a atividade dos cuidados; também a população jovem, porque ela está na franja mais desprotegida dos postos de trabalho. Além disso, a população negra, porque os negros sempre estiveram nos postos de trabalho menos protegidos - estão mais presentes na informalidade, no emprego doméstico e canteiros de construções.
BdFRS - Ao falarmos sobre a questão do mercado de trabalho e os números, a única fonte que temos é o IBGE. Contudo, há a questão da defasagem visto que os resultados são divulgados trimestralmente. Quando teremos um retrato real dos impactos da pandemia sobre o mercado de trabalho?
Lúcia - Realmente, hoje no Brasil nós temos basicamente os números do IBGE/PNAD para falar do mercado de trabalho nacional e do estado do Rio Grande do Sul, assim como das demais s unidades federativas. Nós vamos ter os resultados finais do ano de 2020 para fazer um balanço do que aconteceu até agora, possivelmente entre março e abril. Nesta data, o IBGE deverá divulgar os dados do último trimestre do ano, em conjunto com o resultados do Produto Interno Bruto (PIB).. E nós teremos só grandes números, um detalhamento dependerá da divulgação dos microdados anuais de 2020.
Os números vão sair com certa defasagem. Em decorrência, os analistas deverão utilizar várias fontes alternativas para cercar a situação.
Nossa economia e sociedade precisa do auxílio emergencial coordenado com o cronograma de vacinação.
BdFRS - Quais são os principais entraves para uma real dimensão de como está a situação no país? Que mecanismos deveriam ser criados para termos uma análise regional desse segmento e não ficarmos apenas com um quadro mais geral?
Lúcia – É imperativo que os estados recuperem o papel das instituições regionais de pesquisa. É bom que o nosso leitor lembre que o governo de José Ivo Sartori extinguiu as fundações estaduais de pesquisa, ciência e tecnologia do Rio Grande do Sul, uma situação mantida por Eduardo Leite.
Assim, perdemos a Fundação de Economia e Estatística, a produção de dados e a reflexão regional no âmbito da economia, mercado de trabalho e demografia. Sem uma instituição que pense regionalmente, produzindo reflexão sobre a realidade local, não teremos avaliações profundas da economia gaúcha. Lembre, isto data de 2018, quando deixamos de ter um monitor da nossa sociedade.
Perdemos a Cientec - Fundação de Ciência e Tecnologia, perdemos Fepam, entre outras. Todas compunham a estrutura do pensamento científico regional, algo não substituído até o momento. Há uma pendência na agenda política do RS neste sentido, precisamos retomar esta pauta.
BdFRS - Qual o lugar que o Brasil ocupa, economicamente, atualmente, ao comparar com o restante do mundo? O país está se desindustrializando? Por quê?
Lúcia - O Brasil já ocupou o 6º e o 7º lugar no ranking das economias mundiais, por volta de 2010. Hoje nós somos a 13ª/14ª economia no mundo. Nós perdemos muita potência econômica entre 2015 e 2020. Então em apenas cinco anos tivemos esse descenso não só da produção, como também da taxa de investimento, percentual de ocupados e riqueza gerada pela indústria. Estes indicadores informam que a perda de expressão da economia brasileira está associada à desindustrialização.
A proporção da nossa indústria vem decaindo na economia brasileira, e isso coincide com todo o processo do final, de meados dos anos 90 para cá. Está relacionado à forma assumida pelo processo de abertura comercial no governo Collor, com as medidas do Fernando Henrique e com a não ação ou incapacidade de reversão nos governos petistas. É claro que tivemos, em alguns momentos no governo popular, algumas atitudes importantes do ponto de vista da industrialização. Mas na trajetória, nesse período longo estamos continuamente perdendo o espaço da indústria em nossa economia e de nossa indústria no panorama mundial, por não ter uma política estratégica e adequada.
Essa derrocada coincide com uma mudança, com uma evolução tecnológica que o Brasil não se preparou para acompanhar. Então nós estamos virando uma imensa lavoura arcaica. Estamos em um processo de reativação da importância da exportação de commodities, tanto agropecuária, como mineral. Com isto, vamos perdendo a capacidade de renovação, de produção e, portanto, perdendo a possibilidade de gerar emprego. Ou seja, mesmo para seguir no jogo capitalista, temos um grande problema para um projeto nacional – a célere desindustrialização brasileira.
BdFRS - Tu comentastes que o Brasil sempre foi gigante em número de trabalhadores para poucos postos de trabalho. De que maneira isso afeta a estrutura de mercado de trabalho? Como tu definirias a atual estrutura de trabalho?
Lúcia – Temos uma grande disponibilidade de força de trabalho, um volume muito grande de trabalhadores para postos de trabalho escassos. Esses postos de trabalho, em geral, também se caracterizam pela reduzida sofisticação, por não exigirem capacitação ou grande qualificação. Então quando tu tens postos de trabalho de baixa qualificação e muitas pessoas que sabem desenvolver exatamente as atividades deste posto, os trabalhadores empregados são facilmente substituídos por outros, que compõem um contingente de reserva.
Disto decorrem duas características básicas do mercado de trabalho nacional. Em primeiro lugar a rotatividade; em segundo lugar uma estrutura de baixos salários. Afinal, que trabalhador ou sindicato ousa pedir maiores salários nesta condição de desvantajosa? Com isto temos - alta rotatividade, desemprego estrutural e baixas remunerações.
Por isto, o mercado de trabalho é uma pauta macroeconômica e da governabilidade, afinal, no contingente de desempregados, sempre se pode substituir João por Maria. Perceba, porém, que o volume do desemprego é sempre o mesmo.
BdFRS - Nesse contexto temos também a questão da reforma trabalhista...
Lúcia – A estrutura do mercado de trabalho nacional já traz problemas em seu DNA. Por outro lado, a CLT foi uma conquista dos trabalhadores brasileiros da República Velha, que Getúlio Vargas se viu na contingência de organizar em um único corpo. A Revolução de 30 nos trouxe a industrialização, que seria impossível sem uma classe trabalhadora reconhecida e organizada. Esta situação fez o Brasil avançar, apesar de a CLT nunca ter atingido o conjunto dos trabalhadores brasileiros, tornou-se um guarda-chuva protetivo em que nunca coube todo mundo.
Nos anos de 1990, Fernando Henrique Cardoso promoveu a primeira reforma trabalhista do período neoliberal, que joga mais gente para fora do guarda-chuva e o fura, vamos dizer assim, cria vazamentos nesta ferramenta protetiva. Em junho de 2017, quando a gente tem a reforma trabalhista do golpe de Estado mais recente, este guarda-chuva se torna muito menor, além de ter perdido sua condição de proteção. Este é um processo de ampliação das desigualdades no Brasil, pela via do mercado de trabalho formal.
Quando falamos em ampliar as desigualdade no Brasil não estamos dizendo que tu tens pouca gente muito rica, e muita gente muito pobre, não é isso. Estamos falando é da ampliação da heterogeneidade. Temos o cara que é “lascado” porque quebrou a perna e não tem acesso à previdência; a mulher que é “lascada” porque tem filhos e não tem acesso a creche e ao mercado de trabalho; do jovem que é “lascado” porque nunca vai entrar no mercado de trabalho; a maioria negra e parda que é “lascada” porque é estruturalmente rechaçada na hierarquia ocupacional. Perceba: todos são diferentes, têm condições singulares, mas são também iguais, porque são “lascados”.
Então quando a gente fala em desigualdade, que é de classe, mas com vetores ou determinantes distintos, estamos falando de heterogeneidade. Todos nós, tu é mulher, tu é jovem, tu é negro, mas em essência todos são trabalhadores “lascados”. As pessoas olham para cobertura do bolo, mas em essência, o problema do Brasil não é o último governo, ou o governo atual, o problema no Brasil é sistêmico e estrutural.
BdFRS - Apesar de não haver um mecanismo que mostre claramente a situação regional do país, é possível fazer uma análise da situação que se encontra o Rio Grande do Sul em termos de mercado de trabalho e, consequentemente, econômico?
Lúcia - O RS é um estado rural, embora nós tenhamos cidades médias, moderadas, como Porto Alegre, Canoas, Novo Hamburgo, Pelotas, Santa Maria, Passo Fundo, Uruguaiana. Temos uma população de, aproximadamente, 11 milhões de habitantes e uma Força de Trabalho de 5,5 milhões de pessoas, ou seja, com taxa de participação no mercado de trabalho ligeiramente acima de 50%. Completa este quadro um nível ocupacional baixo, de 47%. Se temos pouco mais da metade da população com idade acima de 14 no mercado de trabalho e menos de 50% do mercado de trabalho tem ocupação remunerada, temos uma situação preocupante no RS. Neste contexto, a taxa de desemprego de 10% parece apenas como uma ponta do iceberg, no que diz respeito à dinâmica de ocupação e renda.
Isto é ainda mais grave, pois há uma especificidade demográfica em nosso estado, que já ultrapassou o chamado bônus etário. Isto tende a agravar a situação previdenciária. Hierarquicamente, à semelhança do Brasil em relação a outras nações, o RS vem perdendo posição econômica para os outros estados do país. Já na virada de 2014, o RS já tinha perdido o espaço não só para São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, como para Bahia. Nós somos o quinto ou sexto estado da Federação, e não temos estratégia para reverter isto.
Em síntese, apesar de conquistas passadas, O RS é um estado decadente, envelhecido e sem estratégia para o futuro,, que não consegue esboçar um projeto para a sua sociedade. O mercado de trabalho no RS é estagnado e a estrutura de atividades é concentrada nas mãos de poucos grupos empresariais – caso da imprensa, supermercados, setor imobiliário e saúde privada. Um exemplo desta estagnação está no setor educacional da Região Metropolitana de Porto Alegre, que é um dos mais desenvolvidos do país, mas não retém os cérebros que forma.
BdFRS - Com o término do auxílio emergencial, como ficará essa situação? Com tudo que conversamos tu vislumbra uma saída?
Lúcia - Primeiro precisamos estar vivos para dar o segundo passo. Estamos há mais de um mês sem auxílio emergencial e as taxas de desemprego vão refletir essa situação. Infelizmente, vamos constatar isto em um ou dois meses à frente. Não somente o desemprego, mas a pobreza devem se elevar com a finalização dos processos de transferência governamental.
Nossa economia e sociedade precisa do auxílio emergencial coordenado com o cronograma de vacinação, porque a única coisa que pode nos tirar do buraco, agora, é a vacinação. Como ela chega lentamente, nós precisamos do auxílio emergencial para dar cobertura para esse cronograma.
Esta necessidade é imperativa e o auxilio vai voltar, em minha opinião. Porém, voltará como uma benesse de Bolsonaro, e este é o problema crucial para a esquerda e a oposição, no momento.
Evidentemente, o trabalhador precisa estar vivo para lutar por uma perspectiva melhor, mas o auxílio voltará pela mão de Bolsonaro e, talvez, do governo estadual também. O governo estadual já está negociando com a Assembleia Legislativa uma proposta de auxílio emergencial para o RS. Isso quer dizer que um governo que não paga salário dos servidores quer encontrar uma política dessa natureza, um governo que joga contra o piso regional, que seria uma forma de animar a economia, tira com uma mão, para entregar com outra.
O auxílio emergencial, em minha opinião, virá pelos governos populistas e de direita. Lamentavelmente. Isto, apenas avoluma as tarefas da esquerda, no que diz respeito à comunicação direta com os segmentos mais populares.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS
Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.
Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.
Edição: Marcelo Ferreira