Em 18 de dezembro de 2020, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) tornou público um relatório no qual descreve o resultado de três anos de inspeções feitas no Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae). A investigação foi motivada por denúncias de que Marchezan havia tirado a autonomia do órgão, o que resultou numa piora significativa dos serviços.
Sob a gestão do tucano, que defendeu a privatização do saneamento e do abastecimento de água, o nível de capacitação dos trabalhadores diminuiu, o quadro de funcionários caiu para o menor índice desde 2007 e as interrupções do abastecimento de água em 2020 aumentaram 40% em relação ao último ano do governo anterior.
O Matinal consultou especialistas para esmiuçar o que os achados do relatório representam para a cidade e os porto-alegrenses, que podem opinar sobre a privatização total do saneamento em uma consulta pública aberta até 1º de março.
No documento, os auditores concluem que houve “inequívoco” nexo causal entre a política “interventiva e contencionista” de Marchezan e a precarização dos serviços prestados pelo Dmae. Sustentam que Marchezan retirou a autonomia da autarquia com “ações de procrastinação e trâmite reiterado de solicitações” para os pedidos de contratação de serviços, ignorou os alertas de gestores sobre os efeitos negativos dessa omissão e buscou socorro no Judiciário para não ter seu plano interrompido – o ex-prefeito conseguiu se ver livre da exigência de garantir a autonomia de gestão ao Dmae ano passado. “Havia, portanto, opção ao gestor, sendo a conduta observada contrária ao interesse público, desarrazoada e imprudente, ainda mais após os alertas realizados, cenário em que é difícil ao agente público esquivar-se dos riscos e responsabilidades implicados”, concluem.
Os auditores também afirmam que a atitude de Marchezan de levar a cabo o processo de privatização do Dmae “é censurável” porque ocorreu em meio à precarização dos serviços e com potencial conflito de interesses devido à falta de motivos técnicos ou consulta prévia ao Conselho Deliberativo. A análise do acordo feito com o BNDES, que desenhou a concessão dos serviços à iniciativa privada, levou o TCE e o Ministério Público de Contas a pedir a suspensão do contrato com o banco (saiba mais detalhes). TCE e MP são responsáveis por fiscalizar o uso do dinheiro público.
O histórico de avisos feitos pelo TCE e ignorados pelo tucano pode levá-lo à Justiça. O relatório pede que o ex-prefeito seja informado que poderá ser responsabilizado pelos danos causados ao Dmae e, por consequência, à população. Estima-se que, entre dezembro de 2016 e dezembro de 2019, as perdas de faturamento tiveram um aumento da ordem de R$ 41 milhões. A prefeitura apresentou sua defesa no final de 2020, que está sob análise do tribunal. O resultado deve sair nas próximas semanas.
Lomba do Pinheiro é o bairro que mais sofre com falta d’água
Realizadas durante os últimos três anos, as inspeções do TCE-RS no Dmae fazem um retrato semelhante ao descrito pelas fontes ouvidas pelo Matinal. Moradora da Lomba do Pinheiro, a cuidadora de idosos Esther Fagundes, 21 anos, sofre com a falta d’água o ano todo, sobretudo no verão, e alega que a situação piorou nos últimos anos. “Aqui onde eu moro, tem semanas que todos os dias falta água por um período. Às vezes, falta de manhã e volta só no meio da madrugada, ou por volta das 23h”, diz Esther. A situação seria ainda pior nas imediações da rua Bonsucesso. “Minhas primas moram lá perto e, às vezes, ficam dois ou três dias sem água.” A família só resiste ao déficit hídrico graças à caixa d’água instalada em casa – e, na hora do aperto, tem que tomar banho de balde.
Tabelas do Dmae obtidas pelo Matinal mostram que a Lomba do Pinheiro é o bairro que mais sofre com a falta de água: de janeiro de 2015 a dezembro de 2020, teve pelo menos 902 interrupções no serviço – dessas, 86 duraram mais de 12 horas. Um dos cortes durou mais de quatro dias seguidos, em agosto de 2020. Nos últimos seis anos, houve uma piora flagrante na qualidade dos serviços prestados pelo Dmae. Em toda a cidade, o número de interrupções no abastecimento de água pulou de 2.805 em 2015 para 4.174 em 2020 – um aumento de quase 50%.
Um relatório de 2020 do próprio departamento mostrou que o atendimento também ficou mais lento: em 2012, apenas 2,3% dos serviços eram realizados depois de 24 horas. Em 2019, esse percentual subiu para 14,5% – o mais alto da última década.
Os bairros mais afetados pela crise hídrica pertencem às regiões Leste, Sul e Extremo Sul, justamente onde a população aumenta consideravelmente a cada ano. A capacidade de tratamento de água do sistema Belém Novo, responsável por abastecê-las, segue igual: 1.000 litros por segundo. É a mesma capacidade do início dos anos 2000 e a metade do que tem a estação Moinhos de Vento, que não sofre com a explosão demográfica. “A estação de tratamento atual e muitas das unidades existentes não comportarão o acréscimo de demanda que deverá ocorrer nos próximos anos”, previu o Plano Municipal de Saneamento Básico, publicado em 2015. Apesar da urgência da obra para resolver os problemas de abastecimento, os planos ficaram parados nos primeiros dois anos da gestão Marchezan.
Em 2018, o efeito nos bairros já era visível. “Geralmente, eram rompimentos da rede. Só que começou a aumentar a regularidade desses incidentes. Aí chegou o verão de 2018 e foi caótico”, diz a advogada Michele Rihan, vice-coordenadora do conselho distrital de Saúde do Extremo Sul e moradora do bairro Belém Novo há 16 anos.
A comunidade cobrou explicações da prefeitura, que reconheceu o atraso na construção de uma nova estação com o dobro da atual capacidade de tratamento de água no Extremo Sul: o sistema Ponta do Arado que, segundo o Dmae, deve entrar em operação em 2024 para atender os bairros Belém Novo, Lomba do Pinheiro, Lami, Aberta dos Morros, Hípica, Restinga, e arredores. A nova estação está sendo construída na área da Fazenda Arado Velho, propriedade particular de 426 hectares que é alvo de disputa entre ambientalistas e empresários do mercado imobiliário. Na metade de dezembro, a Câmara de Vereadores aprovou uma mudança no regime urbanístico do local que permite a construção do condomínio de casas planejado pela empresa Arado Empreendimentos Imobiliários. Atualmente, a área abriga banhados, animais, vegetação nativa e indígenas Guarani-Mbyá.
Marchezan culpa gestões passadas
Nas 69 páginas do relatório do TCE-RS, os auditores confrontam as explicações dadas pelo ex-prefeito de que não haveria relação entre os problemas de abastecimento e a falta de servidores na autarquia. Marchezan colocou a culpa nas gestões passadas. O problema, segundo ele, foram os repasses de recursos do Dmae à prefeitura realizados por seus antecessores. Ou seja, os saques constantes teriam deixado a autarquia sem capacidade para investir.
O argumento não se sustenta, afirmam os auditores. Ainda que o superávit do Dmae tenha alimentado o caixa único da prefeitura no passado, o órgão nunca teve problemas para buscar recursos públicos para suas obras. Exemplo disso foi o financiamento da obra da Ponta do Arado, orçada inicialmente em R$ 335 milhões a serem investidos entre 2015 e 2035. A parte mais pesada dos investimentos, correspondente ao período entre 2021 e 2030, seria de R$ 218 milhões. Em maio de 2019, o governo municipal conseguiu a autorização do Ministério da Economia e garantiu R$ 220 milhões a serem financiados pela Caixa Econômica Federal.
Mais recentemente, em agosto de 2020, o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) aprovou um financiamento de R$ 112 milhões para obras nas redes de saneamento e abastecimento de água da capital gaúcha. A contrapartida da prefeitura é de menos de R$ 11 milhões, o que eleva o total a ser investido para R$ 123 milhões.
Especialistas também observam que a autarquia tem uma capacidade de investimento própria que não está sendo usada. Pela lei, pode reinvestir até 20% do que arrecada. “Nos anos de gestão Marchezan, esse índice não passou dos 10%. Uma empresa pública não pode acumular superávits quando enfrenta problemas sérios de abastecimento em regiões da cidade e tem metas de universalizar o serviço. Ela não foi feita para acumular lucro, mas para oferecer um bom serviço à população de forma sustentável”, questiona o engenheiro Arnaldo Luiz Dutra, do Conselho Deliberativo do Dmae e funcionário de carreira do DMLU. Nos últimos anos, o Dmae acumula superávits, em parte devido à redução do quadro de pessoal.
Dutra é membro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento, o Ondas, sediado na Universidade de Brasília, que reúne estudos e informações sobre os problemas oriundos da mercantilização do acesso à água. “Mais de 80 cidades, como Paris, Lyon e Berlim, estão reestatizando serviços depois de experiências mal sucedidas na privatização. Porto Alegre está na contramão”, diz. Um levantamento do Centro de Estudos em Democracia e Sustentabilidade, do Transnational Institute, com sede na Holanda, revela que 884 serviços privatizados de água, energia, transporte público e lixo voltaram à administração pública entre 2000 e 2017 em todo o mundo. O motivo: eram caros e ruins.
Não é preciso ir longe. Em Uruguaiana, na Fronteira Oeste, uma comissão de vereadores e técnicos emitiu um parecer recomendando o fim do contrato com a BRK Ambiental, que gere o saneamento da cidade. Entre os problemas, foi apontado que a empresa despeja esgoto sanitário sem tratamento no Rio Uruguai, não possui licenças ambientais e não atingiu as metas de universalização do abastecimento de água. A BRK se entitula “a maior empresa privada de saneamento básico no Brasil.”
O relatório do TCE também aponta que, ainda que os problemas não decorram exclusivamente da falta de funcionários no Dmae, não há dúvidas de que o número reduzido de funcionários prejudica a qualidade dos serviços prestados na Capital – a autarquia opera hoje com menos funcionários do que tinha nos anos 1990, quando havia metade das redes de água instaladas que há hoje. Em 2019, havia apenas 1.703 trabalhadores na autarquia contra 2.493 em 2007. De 2016 a 2020, período da gestão tucana no Executivo municipal, o percentual de atendimentos em tempo superior a 36h aumentou significativamente, passando de 13% para 41,84%. “A demanda aumentou muito e não temos equipes. Em alguns casos, temos apenas um técnico para enviar ao local do conserto, o que torna a solução do problema muito mais demorada”, lamenta o engenheiro do Dmae Paulo Robinson da Silva Samuel.
Dados publicados em 2020 pelo próprio Dmae revelam ainda que o índice de capacitação da força de trabalho caiu para os menores níveis dos últimos 10 anos: são pouco mais de 20h de capacitação por funcionário em 2019. Já em 2014, eram mais de 74h por funcionário. “A capacitação é essencial nesta área. Trabalhamos com um serviço muito especializado e crucial para a cidade”, destaca o engenheiro Arnaldo Luiz Dutra.
Pelas estimativas dos auditores, entre dezembro de 2016 e dezembro de 2019, as perdas físicas totais registradas no Dmae apresentaram um aumento de 6 pontos percentuais, passando de 36% para 42% em três anos. Em termos de faturamento, as perdas sofreram um incremento de 33% para 39% no mesmo período, e o Tribunal apontou que os percentuais aumentaram no ano passado.
No caso do esgoto, a deterioração dos serviços foi ainda mais significativa. Em 2016, ano da posse do ex-prefeito, o prêmio de eficiência no tratamento de esgotos rendeu R$ 77 milhões à autarquia. “A partir de 2017, o prêmio passou a ser reduzido de forma muito rápida e, em 2020, foi suspenso”, anotam os auditores. A premiação é concedida no âmbito do Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas (Prodes), da Agência Nacional de Águas.
Falta de pessoas
Para o TCE, a não reposição de pessoal gera um ciclo vicioso de precarização: “Das perdas físicas decorrem perdas econômicas que se projetam na redução dos investimentos com recursos próprios, num ciclo retroalimentado, cuja origem reside na falta de pessoal.” Os auditores insistem, ao longo de todo o relatório, que Marchezan foi alertado pelo próprio Tribunal e teria recebido “súplicas” dos diretores da autarquia sobre a importância de novas contratações. Em todas as respostas, o tucano agiu da mesma forma: com procrastinação e explicações evasivas.
Um dos pedidos para abertura de novo concurso ilustra como Marchezan tratava as solicitações para repor o quadro de funcionários. Em 23 de abril de 2018, foi encaminhado ao Comitê para Gestão de Despesas de Pessoal o pedido de concurso para 11 cargos e 141 vagas. Após reiterados pedidos de aprovação, que se transformaram em um processo administrativo, a Secretaria do Comitê informou, em agosto, quatro meses depois, que já havia dado a autorização ao prefeito. Mas o prefeito ignorou a resposta.
Segundo o relatório, “(…) nunca houve aprovação ou resposta formal de negativa e nem qualquer justificativa” sobre a não abertura do concurso. Em fevereiro de 2019, 10 meses depois, em uma reunião com a participação do prefeito e diretores da autarquia, uma diretora do Dmae sugeriu que o concurso não foi feito porque “bastava serem implementados processos de automação de equipamentos”, como o uso de drones, argumento que foi “veementemente refutado pelo Diretor-Geral do DMAE, que atribuiu a manifestação ao desconhecimento sobre a realidade enfrentada pela autarquia”. Mas Marchezan se baseou na fala da diretora para sepultar o concurso.
Três meses e várias tentativas depois, o então prefeito, enfim, autoriza a abertura de concurso para preencher duas vagas e não 141 conforme o pedido inicial. E condiciona a abertura das duas vagas a novas justificativas sobre a sua necessidade, gerando mais uma vez novos trâmites, “num fluxo reiterado e improdutivo”, segundo relatório. Não houve concurso sob sua gestão.
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Edição: Matinal News