Rio Grande do Sul

Coluna

O Ministério da Saúde não adverte, mas o encouraçamento mata

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Mundialmente, estamos há meses imersos em uma pandemia que, no Brasil, se manifesta como um show de horrores que assume tonalidades cada vez mais fortes de crise humanitária" - Michel Dantas/ AFP
A couraça e a distorção do funcionamento vivo podem se agudizar, tomar o governo de um país

Esta semana terminou com a terrível notícia de que há uma crise de abastecimento de oxigênio hospitalar no Amazonas, que já resultou e segue resultando em muitas mortes por asfixia no interior das unidades de saúde do estado. Mundialmente, estamos há meses imersos em uma pandemia que, no Brasil, se manifesta como um show de horrores que assume tonalidades cada vez mais fortes de crise humanitária.

Nosso país tem questões históricas, e portanto estruturais, de corrupção desmedida, trocas de favores que penhoram o patrimônio e os serviços públicos para benefício privado de elites econômicas e políticas, nacionais e internacionais, jogos mesquinhos e palacianos de influências e uma tradição conservadora, paternalista e autoritária de conceber os costumes e as relações de poder. Essa característica marcante sempre nos impediu de constituir uma estrutura administrativa pública que cumprisse de maneira eficiente sua responsabilidade social, ou seja, a promoção do bem-estar e igualdade para a população.

Isso acontece em nossa história social, com intensidades e roupagens diferentes, desde a colonização, e nos trouxe até aqui, ao paroxismo da desfuncionalidade e apodrecimento da organização da administração pública.

Olhando mais de perto, com a lente de aumento proporcionada pelo tempo presente, quem somos nós nesse instante, trazidos por esse caminho, para enfrentar a pandemia de covid-19?

A máquina pública é composta de gente. E essa gente tem uma organização psíquica e emocional, que manifesta uma cultura e um modo de agir socialmente.

Essa estrutura individual, a estrutura de caráter, e a constituição biofísica dessa gente, e de nós, os indivíduos que precisamos lidar com a pandemia e passar por ela, tem seu desenvolvimento dentro de um contexto social que, há pelo menos milhares de anos, distorce o funcionamento natural do organismo vivo humano.

O encouraçamento, segundo Reich e em linhas bem gerais, é uma paralisia e descaracterização do fluxo e do movimento naturais da vida sexual, emocional e perceptiva dos indivíduos.

Há muito tempo, a história humana é feita a partir do funcionamento encouraçado humano.

Não estamos fora disso no Brasil. Não estamos livres nem de nosso encouraçamento e nem de nossa história (encouraçada).

E agora, em janeiro de 2021, as consequências da distorção da vida biológica e social do animal humano chegou ao seu ápice em nosso país.

A perda da livre circulação das emoções, das sensações e da experiência do prazer se manifesta como um bloqueio de afetos ternos, da percepção completa e integrada de si mesmo, e como um aumento significativo da frustração, sensação de impotência, inveja e ódio mais ou menos inconscientes. O organismo encouraçado pode agir movido pelo ódio mais tenaz sem sequer perceber.

O mecanismo detalhado de atuação desse processo, sua relação íntima com a perda da saúde sexual (chamada e explicada por Reich como impotência orgástica) e sua existência e estruturação junto com o funcionamento social, podem ser encontrados em livros como A Função do Orgasmo, Análise do Caráter e Psicologia de Massas do Fascismo, todos escritos por ele. E você pode encontrar exposições a respeito desse conhecimento aqui na coluna.

Isto posto, vou afirmar aqui, estupefata, meu testemunho de doença social e miséria humana a que pode levar o processo de encouraçamento, com base na situação humanitária que vive o Brasil.

Uma expressão política completamente destrutiva e mortal que parte de um governo “democraticamente” eleito (na esteira de um golpe político travestido de processo “democrático” de impeachment) e que se posiciona claramente a partir da condição de inferno emocional mais profundo a que pode chegar um animal humano por meio da neurose.

Isso está longe de ser uma manifestação saudável de pessoas satisfeitas, integradas, compassivas, pacientes, conscientes e atentas, que são qualidades espontâneas e inerentes à vida viva, isto é, desencouraçada.

O encouraçamento é uma distorção da vida e da possibilidade de identificação, amor e defesa da vida dentro de cada um de nós.

Não sejamos narcisistas a ponto de pensar que isso tudo de bizarro que acontece agora no Brasil não está relacionado com algo que a gente também carrega dentro de nós.

A couraça e a distorção do funcionamento vivo podem se agudizar, virar praga emocional, tomar o governo de um país. Tudo isso sustentado por um estado emocional, biofísico e psíquico que torna as pessoas capazes de ser coniventes ou apoiadoras desse cenário triste e grotesco que vivemos no Brasil.

O fato de ignorarmos, enquanto sociedade, a existência do processo de impotência orgástica e encouraçamento, e de seus desdobramentos na vida social, tem nos custado muito caro.

Descrição da imagem: trata-se de uma fotografia tirada de cima, que mostra um cemitério. Este é um campo de areia onde estão sendo cavadas covas com um trator. Elas estão enfileiradas, com duas linhas horizontais. Algumas covas da linha de baixo estão enfeitadas com coroas de flores. Esse espaço é o retratado tipicamente em fotos de portais de notícias como lugar onde são enterradas pessoas mortas por covid.

Edição: Katia Marko