Um novo mundo, mais generoso e responsável, era possível. E não havia dúvidas em relação a isso
Na cidade de Porto Alegre muitos de nós passamos por aquela experiência maravilhosa, de vivenciar a expectativa que antecede momentos de grande avanço coletivo, e a alegria que se derrama logo a seguir. É algo que nos irmana e nos impulsiona, que nos une em compromissos de solidariedade. É algo que não tem preço e que só quem viveu, sabe. Foi assim em alguns momentos da vida de cada um e buscando na memória, todos sabemos da diferença entre aqueles e outros instantes da nossa história particular.
Naquelas ocasiões sabíamos que estávamos do lado certo, e o entusiasmo a nossa volta dizia que tudo era possível porque a vida e os sonhos andavam juntos, numa realidade em transformação. Foi assim nesta cidade quando elegemos Olívio Dutra, prefeito e governador. E foi assim nas atividades do Fórum Social Mundial. Quem viveu, não esquece do clima que se respirava nas ruas, nas repartições públicas, nos hotéis, restaurantes, bares, praças e até nas festas de família.
Em 2001 durante o primeiro Fórum Social Mundial. Porto Alegre era um dos pontos centrais de um mundo em mutação. E sabíamos disso: nós, nossa cidade, nosso país, tínhamos parte e responsabilidades numa trajetória de mudanças globais, para melhor.
Um novo mundo, mais generoso e responsável, era possível. E não havia dúvidas em relação a isso.
Circulavam, em espaços da vida cotidiana desta cidade algumas das mentes mais brilhantes do mundo moderno. Gigantes. Nomes que conhecíamos de citações em livros, passeavam no Mercado Público, falavam no Tesourinha, no Araújo Vianna, nos salões da Assembleia Legislativa e de sindicatos. Salas cheias de expectadores atentos, que aqui estavam para isso, e que por compartilharem os mesmos propósitos vieram até nós, de todos os cantos do planeta.
Aqui, nesta mesma cidade onde hoje vereadores golpistas em conluio fechado, sem debates e desprezando o regulamento interno da Câmara, fraudaram a representatividade eleitoral de pelo menos 30% dos cidadãos... Aqui mesmo, onde hoje tamanha ofensa é engolida em seco, há 20 anos se discutiam, democraticamente e em vários idiomas, alternativas para minimizar crises globais decorrentes da corrupção, da covardia, da injustiça, da miséria e da exploração de territórios e grupos sociais desfavorecidos.
Não parece mentira, o quanto decaímos em tão pouco tempo?
Vejam, aqui nesta cidade, onde o TRF4 entendeu como irretocável a decisão de Moro, que levou à prisão sem provas, de Lula, há pouco mais de uma década palestravam magistrados de destaque global e se desenhavam soluções coletivas para problemas comuns, da humanidade. A defesa da democracia, dos direitos, das normas legais, a justiça e a vergonha na cara, eram o normal que se esperava de todos.
Naquela época e aqui, nos FSMs, eram elaboradas, apresentadas, criticadas e debatidas propostas que se opunham aos desígnios dos feitores do Fórum Econômico Mundial. Diga-se, as orientações do Fórum Econômico Mundial são claramente responsáveis, hoje, pelo que de pior vivemos no mundo. Elas se expressam, tanto na destruição dos ecossistemas globais como na escolha dos cargos diretivos da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, pelo desprezo aos direitos, aos deveres às normas, à convivência e à democracia. Aliás, elas se expressam de forma abjeta, criminosa, e sem qualquer represália, porque correspondem a papéis desempenhados por coadjuvantes menores, protegidos por seus senhores, aqueles que verdadeiramente se beneficiam da sanha neoliberal a que se opunham os participantes do FSM.
Slavoj Zizek (em Vivendo o Fim dos Tempos, Boitempo Ed., 2012) associa aquela gula que destrói o planeta, e que se enraíza com atores de todo tipo, aos quatro cavaleiros do apocalipse, aos males que anunciam o fim dos tempos. Este modelo destrutivo, segundo Zizek, os soltou na terra, para devastação global, e com o apoio de tolos estimula seu avanço. Os quatro cavaleiros do apocalipse: a (1) crise Ecológica, a (2) revolução biogenética com seus descontroles, os (3) desequilíbrios do sistema capitalista (com a propriedade intelectual ampliando injustiças e levando ao patenteamento da vida, com as lutas por matérias primas, comida, espaço e água) e por fim, com as (4) divisões e exclusões sociais, cada vez mais amplas, forçando a emergência de genocídios.
Pois bem, Zizek, que também esteve aqui, durante os FSMs, não precisou falar diretamente das pestes que nos ameaçam. Aquela descrição relacionando os desequilíbrios do sistema capitalista à devastação causada por suas energias, às bestas do apocalipse, não só ganhou força e credibilidade em seu realismo ameaçador, como também invadiu nossas casas, dividiu nossas famílias e desorientou nossas lideranças políticas. Chegamos ao bolsonarismo, aos 200 mil mortos, ao mercado irregular de tubos de oxigênio.
Portanto, mais do que nunca se faz necessário um acordar coletivo, que reanime energias sociais que sabemos latentes nesta cidade, apesar dos esforços para seu abafamento, por parte dos senhores do mundo e seus vassalos locais.
Pois bem, a oportunidade está na nossa porta. Em 2021 teremos em Porto Alegre o 14° FSM. Ele nos convida a participar das atividades que aqui ocorrerão entre os dias 23 e 31 de janeiro, e a colaborar na formulação de suas recomendações para o futuro de todos.
Para detalhes, acompanhem a programação e façam suas inscrições no endereço oficial.
Como música, para finalizar a mensagem da coluna de hoje, recomendo algo que escutávamos no final dos anos 1970, ocasião de trevas em que um outro mundo ainda não parecia possível.
De João Bosco, do disco Galos de Briga: O cavaleiro e os moinhos.
OBS: Amigues leitores. Os links são opções de acesso, para eventuais interessados nas fontes citadas. Recomendo, enfaticamente, tão somente que não deixem de escutar a música. Que ela nos inspire.
Edição: Katia Marko