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O galo cantou, só não se sabe aonde: os desencontros da direita

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"A tensão e a crise que levaram à vitória, pela extrema direita, de Donald Trump há quatro anos atrás, continuam ativas" - Saul LOEB / AF
O conflito entre a extrema direita estadunidense e a direita tradicional tende a se reproduzir

O professor Stephen Levitsky, autor de “Como as Democracias Morrem”, bula da crítica liberal ao trumpismo, em entrevista para BBC News Mundo publicada no site UOL classificou o episódio das manifestações e da invasão ao prédio do parlamento estadunidense, ocorrida no último dia 6 de janeiro, como uma tentativa de auto golpe que não deu certo por falta de apoio dos militares.

Já Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, segundo o jornal O Público, disse que “As cenas de caos no Capitólio não refletem a verdadeira América. Não representam aquilo que somos”.

Em certa medida, ainda que contraditórias, ambas as afirmativas refletem algum grau de realidade. Ou ao menos o que cada um deles quer fazer parecer ser a realidade.

Sobre a assertiva de Biden, há que se dizer que a ocupação do Capitólio, efetivamente, é um fato raro. Porém, surpreendente não é a ocupação em si mas quem a ocupou. Ou seja, o fato da direita estadunidense se achar impelida a utilizar métodos não institucionais para impor pontos de vista. O sistema político dos Estados Unidos tem sido capaz de obstruir o caminho de qualquer projeto político ‘out of establishment”, fora da ordem, de chegar ao Congresso, ao sistema de justiça e ao governo federal e, assim, garantir uma arena controlada para as várias frações da burguesia e da elite burocrática estabelecerem os pactos políticos, as relações internacionais e os acordos econômicos de comum interesse. Nestas últimas eleições presidenciais, dezenas de candidatos concorreram, inclusive de esquerda, mas apenas os dois partidos da ordem e da mesma classe social chegaram ao Parlamento. O sistema político impõe todo tipo de obstrução e impugnação aos candidatos alternativos.

Sobre o que diz Levitsky, a ausência de militares à frente da tentativa de golpe de Trump não significa que eles não participem da política. Se a história da participação dos militares brasileiros é de, preponderantemente, uma participação direta ao estilo bonapartista, substituindo invariavelmente a própria burguesia na condição de fração dirigente dos blocos conservadores, os militares estadunidense tem um perfil tecnocrático subordinado a indústria de defesa e aos sistema de inteligência. Sua participação é decisiva na política dos EUA porém através da garantia da estabilidade da políticas internacional, de defesa e industrial.

Nem Biden tampouco Levitsky abordaram o que há de singular e impactante neste episódio. Trata-se do aprofundamento da fratura no grande acordo neoliberal produzida pelas políticas econômicas protecionistas de Tump, embaladas em uma retórica neofascista. A vitória de Biden significa uma restauração da política neoliberal clássica Clinton/Obama, embalada em uma defesa das liberdades civis e da democracia normativa porém sem apresentar, ao menos na campanha, um programa de crescimento econômico e proteção do emprego. A tensão e a crise que levaram à vitória, pela extrema direita, de Donald Trump há quatro anos atrás, continuam ativas.

Esta “frente reacionária” mundial, entre a fração rentista da burguesia e a extrema direita, que levou, entre outros além de Trump, Bolsonaro, Modi, Orbán e Kaczynski aos governos não resolveu a crise de produtividade e a queda das taxas de lucro globais e jogou os trabalhadores na precarização profunda, retirando-lhes grande parte dos meios de resistência sindical e política.

O conflito produzido pela extrema direita estadunidense contra a direita tradicional tende a se reproduzir nos países onde o quadro de crise perdura. Expressam as dificuldades das frações dirigentes do bloco no poder manter sua base social sob controle em um ambiente de alto desemprego. Talvez signifiquem dissensos, incontornáveis, entre as diferentes frações da burguesia pela direção das políticas econômicas.

Edição: Katia Marko