No dia primeiro de janeiro, durante a posse dos vereadores eleitos de Porto Alegre, a bancada negra recusou-se a cantar o hino do Rio Grande do Sul. Houve, então, reação imediata de membros de partidos conservadores, que inicialmente se indignaram com a suposta “indisciplina” observada no plenário, acusação bastante significativa no contexto brasileiro de racismo estrutural, fundado sobre o controle de corpos negros.
Não é de hoje que se aponta para o conteúdo racial implícito de uma das estrofes da composição, facilmente compreendido como racista à luz de teorias sociais comprometidas com a descolonização das ideias. Em razão disso, também não é a primeira vez que se protesta contra sua execução pública. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a cena foi repetida com frequência nas últimas décadas, durante as formaturas do curso de História, o que reverberou em outras cerimônias do gênero, em anos mais recentes, com a democratização relativa da crítica histórica e a ampliação do acesso à educação superior. Em 2018, a instituição parou de reproduzir o hino em seus eventos.
Historiador formado pela UFRGS, o vereador Matheus Gomes (PSOL) subiu à tribuna para explicar aos colegas o motivo do ato, a persistência de uma memória escravocrata, reforçada por versos que alegam responsabilidade às vítimas de sistemas escravistas: “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Ao longo da semana, a contenda se ampliou com a adesão do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) à defesa do hino e com o apoio de historiadoras e historiadores profissionais aos vereadores da bancada negra da capital gaúcha.
O hino e seu tempo
Quem estuda produção cultural sabe que um de seus traços principais é a forma aberta, quer dizer, a capacidade de evocar mensagens sem declará-las diretamente. Assim, bens simbólicos apelam à sensibilidade de seus consumidores e os convidam à tarefa de interpretação. Portanto, compete nesse tipo de discurso um peso maior à sua recepção, que preenche as lacunas de sentido com as experiências vividas em seu tempo. Parece óbvio, mas não custa lembrar que hinos são, desde a emergência dos movimentos nacionalistas, canções com função de propaganda, ou seja, produtos culturais com convenções próprias, que se alternam entre o artístico e o político.
Essa característica de maleabilidade interpretativa ajudou na sobrevivência da letra que o militar Francisco Pinto da Fontoura redigiu, provavelmente em 1839, num dos momentos mais tensos da rebelião sulina, quando se apostou na independência política das áreas sob controle farrapo. Traço que também possibilita as apropriações do verso problemático como uma metáfora liberal a-histórica contra qualquer forma de tirania. Não tenho dúvidas de que, nos dias de hoje, uma parcela da população do estado desvincula a palavra “escravo” da situação concreta de escravizado no Brasil. Mas também não se pode esquecer que esse era o horizonte de leitura original do texto. A contextualização da fonte exige o reconhecimento dessa natureza, algo que parece ter escapado a um e outro historiador que ainda insiste em receber o hino apenas como espectador de nosso tempo, em atitude que valida uma interpretação muito estreita e um anacronismo de uso político hoje conservador.
Já se argumentou que os versos não poderiam ser racistas tendo em vista que seu compositor era um homem negro livre do século 19. Mesmo que não consideremos a cultura geral na qual Fontoura vivia – em que a escravidão com critério racial era uma instituição sólida – atuando sobre a autoria da letra, é impossível pensar historicamente que o público destinatário não entenderia a palavra “escravo” como uma menção à dinâmica social brasileira, que legava aos povos negros escravizados a condição de objeto e propriedade. O quadro de referências que lhe dava sentido era a sociedade escravista colonial/colonizada racista.
Essa relação de significado persistiria na Primeira República, tanto por proximidade e lembrança do regime de escravidão, tanto pelos novos debates raciais pseudocientíficos, que alimentavam preconceitos contra afro-ameríndios, criminalizando a mestiçagem na formação do Brasil e recomendando políticas de branqueamento (como o recurso da imigração europeia). Portanto, uma relação de significado original que também sobreviveu ao tempo e, dessa forma, ainda ofende a memória de outra parcela considerável da nossa população.
A invenção de uma tradição
A escolha da letra de Francisco da Fontoura como hino estadual, aliás, não dista muito dessa época. No século 19, três versões circulavam como o “Hino da Nação” originário da República de Piratini, mesmo após a reintegração da elite farrapa à ordem imperial. Consta que a mais popular era a de Fontoura, o que justificou seu resgate, em 1933, por uma comissão de intelectuais liderada pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, às vésperas das comemorações do centenário da então chamada Revolução Farroupilha.
A sua oficialização, no entanto, só viria em 1966, com a lei que também instituiu o brasão de armas e a bandeira farrapa como símbolos estaduais. Nesse momento, uma estrofe inteira foi suprimida: “Entre nós, reviva Atenas,/ Para assombro dos tiranos./ Sejamos gregos na glória,/ E na virtude, romanos”. Não é absurdo especular que outra referência implícita, à democracia ateniense, melindrasse a ditadura militar inaugurada dois anos antes no Brasil. Mas o que parece ter justificado mesmo a mudança foi a falta de conteúdo local no trecho, conforme justificativa do projeto de lei original de 1961, algo sobrevalorizado durante a efervescência cultural regionalista da década anterior.
Nos anos 1950, os novos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), fundados por jovens de classe média urbana ou filhos da elite rural que viviam nas principais cidades do Estado, formalizaram rituais que ainda hoje identificamos equivocadamente com folclore e cultura popular. Seu sucesso consolidou uma identidade política regional de inspiração gauchesca para o estado, o que se verifica na adoção irrestrita do adjetivo pátrio “gaúcho” para seus habitantes, ao invés do histórico termo “sul-rio-grandense”.
O hino estadual é, portanto, produto de ao menos três temporalidades diferentes: a da composição (incluindo a melodia do maestro Joaquim José Mendanha, legalista feito prisioneiro pelos farrapos), a da seleção como símbolo (entre as outras possibilidades disponíveis), e a da alteração da letra de Fontoura. Duas delas estreitamente ligadas à construção regionalista do mito do gaúcho (historicamente um tipo popular) em sua confusão ideológica com a elite estancieira, num processo mais amplo de reivindicação da singularidade e do protagonismo do Rio Grande do Sul no cenário brasileiro. Não é difícil concluir que, enquanto tradição – um dos argumentos recorrentes para sua manutenção na forma atual – se trata de uma invenção do século 20.
Cabe ainda lembrar que tradição é algo diferente de costume. É praticamente consenso nos estudos históricos e sociológicos que ela é uma tentativa deliberada de fixação no tempo de elementos supostamente representativos da nação ou da região, tratados publicamente como em vias de extinção. Ou seja, um projeto de grupos específicos da sociedade e, eventualmente, do próprio aparato de Estado, como no caso de hinos e demais símbolos oficiais. Logo, ainda que a invenção da tradição possa recorrer a práticas culturais atribuídas a um passado imaginado, trata-se sempre de um artefato do tempo presente, que atende a necessidades simbólicas do momento de sua formalização. E, à revelia do controle institucional, acaba periodicamente por ser atualizada.
A memória farroupilha
Assim como a tradição, a memória histórica – entendida como uma narrativa sobre fatos, episódios e personagens socialmente considerados históricos –, sempre fala em perspectiva presentista. Portanto, também varia ao longo do tempo, de acordo com as mudanças nas relações de força e nas demandas de representação de cada sociedade.
A memória do episódio farroupilha acompanhou as tendências políticas e sociais mais amplas no Brasil. Foi assunto tabu nos anos posteriores à sua saída conciliatória. Por algumas décadas, no século 19, foi abertamente combatida, até mesmo pela elite letrada dominante no estado, como uma lembrança já superada de sua aventura separatista. Com a crise do Império, e a ascensão de novos grupos sociais, acabou sendo ideologicamente recuperada e ressignificada como prenúncio da vocação republicana do Rio Grande do Sul. E quando a elite regional desenvolveu um projeto de tomada do poder central, efetivado com a candidatura presidencial de Getúlio Vargas e o golpe político que originou a Revolução de 1930, a memória da farroupilha se tornou um emblema da bravura gaúcha: “sirvam nossas façanhas...”
Reconstruída dessa maneira, ela legitimava o lugar social e as ambições da elite latifundiária, de origem autoproclamada portuguesa. Quer dizer, um mito histórico e político que afirmava, ao mesmo tempo, a sua branquitude e a sua brasilidade (nesse caso, algo importante para uma região culturalmente suspeita de hispanismo, dada a proximidade geográfica e as consequentes relações com Uruguai e Argentina, e com notório desejo de autonomia política). Para tanto, obliterou outras memórias e contribuições culturais, especialmente aquelas de origem africanas, combatidas pela já citada voga do racismo científico, e que também lembravam um inconveniente passado escravocrata dos próprios líderes farrapos, agora transformados em heróis do panteão local, identificados a lutas abstratas por liberdade e justiça.
Na Primeira República, a descoberta do massacre de lanceiros negros em Porongos, no desfecho da revolta farroupilha, com a provável conivência do general farrapo Davi Canabarro, levou à crítica de alguns historiadores. Alfredo Varella denunciou o episódio, considerando a possível articulação entre farrapos e legalistas para contornar os compromissos abolicionistas assumidos pela República Rio-Grandense, durante a guerra contra o Império. Ou seja, uma traição. Mas a maioria da intelectualidade republicana da época reagiu ao debate de forma conservadora, criando versões deturpadas e ainda mais elitizadas da história regional. Comprometidos com a ditadura positivista-castilhista então vigente, defensora do legado farrapo, passaram a insinuar que o emprego de mão de obra escrava nas estâncias de criação de gado era mínimo e, assim, a libertação dos cativos não ofereceria um problema efetivo à elite sul-rio-grandense. Essa tópica de memória é reveladora da invisibilidade do negro para a classe dirigente, a qual começava, dessa maneira, a ensaiar o “mito da democracia racial gaúcha”, com a ideia de que peões, livres ou escravizados, e patrões gozavam de idênticas condições de trabalho no campo, e o “mito da escravidão que não houve”, esquecendo até mesmo seu emprego massivo na indústria do couro e do charque.
Essa mitologia política foi fundamental para o branqueamento discursivo do gaúcho rio-grandense, o apagamento de memórias populares alternativas, a condenação de matrizes culturais africanas e, até mesmo, para a negação da presença negra no Rio Grande do Sul, apesar da realidade objetiva de sua população.
Outras memórias
Isso explica porque boa parte da historiografia profissional universitária tem se empenhado, desde a década de 1970, em desmistificar a história gaúcha, revelando o papel e o peso da escravidão na economia regional, mas também as contribuições sociais e culturais de afrodescendentes na formação da região. Evidentemente, têm sido décadas de choques com o senso comum, que segue alimentado em parte pela memória histórica tradicional e pela ritualística cetegista, encenada anualmente na Semana Farroupilha.
Ao que me parece, a bancada negra de vereadores de Porto Alegre, assim como fizeram muitos braços do movimento negro no Rio Grande do Sul desde o fim do século 20, busca chamar a atenção para essa história excludente da representação histórica e promover uma nova atualização da tradição. Como vimos, isso já foi feito no estado e segue sendo feito no mundo inteiro, à medida que se ampliam e se complexificam as visões de história e de sociedade. Na mesma semana da polêmica gaúcha, por exemplo, a Austrália anunciou a mudança da letra de seu hino nacional, com o objetivo de incorporar a memória indígena pré e pós-colonial, reconhecendo a historicidade (e a violência) da composição original.
Aqui, ainda que consideremos a interpretação liberal abstrata da estrofe polêmica como dominante na atualidade (o que, na verdade, exigiria uma pesquisa empírica rigorosa de sociologia da recepção), é inegável que ela carrega um ponto de vista muito parcial da memória coletiva, e que tem o agravante de ser o ponto de vista da elite escravocrata. Em comunicado oficial sobre a polêmica, o MTG declarou que a comunidade negra: "perde um precioso tempo de ser protagonista de uma nova história que cabe aos próprios negros e brancos escreverem" (grifo meu). Visão que, mais uma vez, esquece que o passado gaúcho também foi escrito com sangue, suor e ideias do povo negro.
Percebe-se que esse debate tem raízes profundas e é muito mais amplo do que a simples alteração do trecho em disputa. Por que já abrimos mão de uma referência implícita à democracia em nosso hino oficial, mas resistimos tanto a abandonar outra referência implícita à escravidão? É, portanto, uma demanda de reparação histórica e de representatividade. É contra aquilo que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chamou de “o perigo de uma história única”. Não é apenas sobre o hino, nem apenas sobre o passado, é sobre uma sociedade melhor.
* Professor do Colégio de Aplicação e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Doutor em História Social pela UFRJ. Autor de O centauro e a pena: Barbosa Lessa e a invenção das tradições gaúchas (Editora da UFRGS, 2018).
Edição: Katia Marko