2021 será o ano das ruas. O ano das travessias
Milton Nascimento, hoje com 78 anos, estourou nacionalmente no Festival Internacional da Canção de 1967, cantando Travessia. Isso foi há 53 anos. Com o Brasil mergulhado naquela ditadura que o presidente Bolsonaro diz não ter existido, aquele menino negro do interior de Minas Gerais mudava a forma de cantar este país. Com sua voz potente gritando em melodia “Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver”, Milton marcou aquela geração e desde então nos chama para o enfrentamento mais importante desta vida: a luta de cada um contra sua própria alienação, contra sua acomodação em sonhos frágeis, contra o medo de viver e de se fazer cidadão.
Alguns dizem que Milton se inspirou em poema atribuído à Fernando Pessoa, que também convocava para mudanças de fundo, que sempre são travessias. Enfrentamentos impostos como condições para o amadurecimento. Situações onde o caráter se forma, ou se anula. Ele teria escrito: "Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos".
Ao que parece, vivemos um destes momentos. Agravado, porque agora o drama individual se confunde com o coletivo, e as mudanças precisam ser sociais, para encaminhamento de soluções a uma crise civilizatória. É a travessia do mar vermelho, condição para fugir às mil mortes impostas pelo faraó.
Nesta véspera de Natal, onde boa parte da população retornou ao mapa da fome, onde o desemprego é desesperador e onde mais de 200 mil famílias choram de luto por seus mortos em uma pandemia ignorada, se não alimentada por um governo irresponsável, há que se optar pela travessia.
Nosso governo ameaça a todos, e devemos dar graças ao fato de que sua inteligência não vai além da pólvora, para questões onde acaba o diálogo. Imaginem o que faria este governo, com um arsenal poderoso, se com fósforos está conseguindo colocar o planeta em risco. Com sua vista grossa às queimadas, com a eufórica liberação de agrotóxicos e com sua total submissão a um agronegócio predador, os bolsonaristas comprometem a ecologia planetária. Até a FAO percebe que a manutenção de práticas ministeriais que levam ao ecocídio e à destruição da biodiversidade brasileira ampliam as chances de caos alimentar global.
As estimativas, onde participamos de forma relevante, apontam para milhões de quilômetros quadrados de habitats naturais destruídos, com risco de levar à emergência novas e mais perigosas pandemias. E se houverem vacinas, suspeita-se que nem todos, dentro de cada grupo de risco, receberão tratamentos iguais, no momento de sua distribuição. Parte da elite brasileira, que ocupa espaços no Olimpo dos supremos tribunal federal e de justiça já demonstrou isso, ao tentar garantir suas doses “por fora” de qualquer fila.
A desumanização é tamanha, e avança de forma tão despropositada e escandalosa, que se faz necessário refletir a respeito da época em que vivemos.
A discriminação, o escravismo, o racismo, os abusos e o controle do Estado, por poucos, contra a maioria, em um regime maquiado de democracia onde as leis não são iguais para todos, que futuro indica?
Situações de exploração desumana, de ordem colonialista, de submissão local a interesses externos, com amplo desrespeito a valores éticos, morais e civilizatórios têm sido recursivas no passado e presente da humanidade, como nos lembra Frantz Fanon, no belo e importante artigo de Mariana Carneiro.
Fanon viveu apenas 36 anos. Foi um grande homem. Negro, intelectual robusto, de família abonada, que dispensou privilégios. Que disse não à exploração racista/colonialista e se envolveu radicalmente na luta pela libertação da Argélia (ocorrida sete meses após sua morte). Em seu último ano de vida, 1961, Fanon escreveu "Os Condenados da Terra", que deve ser lido por todos que conseguirem acessá-lo. Trata-se provavelmente do mais importante e esclarecedor libelo antirracista e anticolonialista jamais escrito.
Aquele texto será sempre atual em territórios e épocas como estes, onde o bolsonarismo implementa retrocesso civilizatório de submissão ao exterior e perseguição às minorias e às populações marginalizadas. Se trata de período de neocolonialismo que se opõe a um projeto de nação soberana, e que por isso exige, como recomenda Fanon, a mobilização de todo um povo em travessia.
Para ele, nestes casos em que o enfrentamento entre os oprimidos e as forças opressoras se faz desigual, é necessário ampliar a consciência coletiva porque os opressores arregimentam serviçais, entre os oprimidos, para se perpetuarem onde estão. E exige também a superação do medo e ações radicais, porque “O colonialismo não é uma máquina pensante. Nem um corpo dotado de aptidões racionais. É a violência no seu estado natural e só sucumbirá quando for confrontada com uma violência maior.”
Seu livro (Os Condenados da Terra), quando lançado na França colonialista, foi recolhido e proibido, sob acusação de incitar a violência. Na prefácio, Jean Paul Sarte afirma que “ao ler o último capítulo de Fanon, qualquer um se convence e que mais vale ser um indígena no pior momento, do que viver a desdita de um ex-colonizador”,
Na verdade, Fanon convoca a todos não para a violência, mas sim para a desalienação. E entende que, a partir daí, ocorrerão ações compatíveis com a realidade imediata definida pelo colonizador. Para ele, a violência do colonizador, do racista, ao anular o colonizado, ao lhe negar condição de existência humana, ao obrigá-lo a desistir de si mesmo e dos seus, estabeleceria a necessidade de reações dramáticas. Isto porque, na base, e como pressuposto, toda racionalidade já havia sido cancelada pela violência do opressor, que incitaria à violência do oprimido.
Assim, a discriminação levaria consigo processos de verdadeira colonização das mentes onde os oprimidos, para manutenção da subordinação, seriam tutelados em sua visão de mundo, a tal ponto que aceitariam como naturais condições lhes impostas à força, limitantes de suas possibilidades de vida e crescimento humano. Trata-se, aqui, de verdadeira colonização epistemológica, validando condições de subvida, onde a miséria passa a ser aceita como parte da luta cotidiana, em ambientes onde a infelicidade, o medo, a fome, as doenças e a incerteza seriam regras coerentes com uma vida de abandono.
Pois bem, ao que parece, vivemos num tempo destes, onde Milton, Pessoa e Fanon ressurgem atualizados e coincidentes em recomendação de ações efetivas. Todos reclamam por consciência e protagonismo. Pela honestidade de confrontar e enfrentar a nós mesmos, e nossos medos. Na certeza de que agora há que agir, em solidariedade, indo às ruas para derrotar o medo e o inferno que nos arrastam.
2021 será o ano das ruas. O ano das travessias.
Edição: Marcelo Ferreira