Plantar alimentos agroecológicos, com respeito aos ciclos da natureza e sem veneno. Criar e capacitar uma rede de voluntários para multiplicar forças. Articular grupos parceiros para alcançar o maior número de pessoas. Alimentar as pessoas que mais precisam, em meio à grave crise sanitária e econômica aprofundada pela pandemia do novo coronavírus. É isso o que implementou durante o ano de 2020 o Projeto Plantio Agroecológico Solidário (PAS), uma parceria entre o Núcleo de Agroecologia da Fazenda Experimental da Ressacada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o Mandato Agroecológico, do vereador de Florianópolis Marcos José de Abreu (PSOL), mais conhecido como Marquito, e sua equipe.
O projeto viabiliza o cultivo dos alimentos para a produção de refeições para pessoas em situação de rua em Florianópolis, bem como para a entrega de cestas de alimentos distribuídas para famílias e estudantes que necessitam de apoio. A área de plantio é de aproximadamente 3.700 m², sendo que 2.500 m² é a área coordenada pelo Núcleo de Agroecologia. Os demais 1.200 m² são de agrofloresta, sob coordenação do LEAP-UFSC. Diversas organizações contribuem, cada uma se ocupando de uma ou mais etapas da ação, que vão desde o manejo produtivo dos plantios, logística com transportes, cozimento e preparação, até a entrega das refeições e distribuição das cestas.
“Os impactos foram muito positivos. Entre abril e dezembro, já foram doadas para as cozinhas comunitárias e os coletivos envolvidos mais de duas toneladas de alimentos agroecológicos e biodinâmicos, entre frutas, verduras, legumes, grãos, ervas para chás, temperos e ovos”, explica Patrizia Ana Bricarello, uma das coordenadoras do projeto pelo Núcleo de Agroecologia UFSC, ao lado de Marília Carla de Mello Gaia. As duas são professoras do Departamento de Zootecnia e Desenvolvimento Rural do Centro de Ciências Agrárias da UFSC. Também coordena o PAS o professor Ilyas Siddique, pelo Laboratório de Ecologia Aplicada (LEAP UFSC), que se somou à ação.
As professoras recordam que o Brasil ocupa o lugar de maior consumidor de agrotóxicos do mundo. No bojo desta discussão da alimentação e os impactos da pandemia, elas avaliam que “é importante reafirmar a necessidade de uma alimentação saudável, considerando as evidências científicas sobre os possíveis riscos da ingestão de alimentos contaminados por produtos quimiosintéticos”. Como o acesso a uma alimentação de qualidade ainda é restrito a uma ínfima camada da população, o projeto volta seu olhar para pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, que tendem a ser o grupo social mais propenso a ter problemas de saúde pela falta de acesso aos alimentos saudáveis.
Elas contam que as doações de refeições ocorrem no centro de Florianópolis, na Praça XV de Novembro ou na Passarela Nego Quirido, para pessoas em situação de rua. Além disso, outros coletivos realizam doações em diversas comunidades da cidade, como a Ocupação Urbana Marielle Franco. Já os alimentos in natura são doados para famílias de todas as partes da Grande Florianópolis.
Para além do auxílio na pandemia
“Nossa ideia inicial era produzir alimentos durante a pandemia de covid-19, mas agora nossos sonhos são maiores e desejamos nos tornar doadores permanentes de alimentos saudáveis para pessoas que necessitam deste apoio”, destaca Marília Carla de Mello. Para ela, neste momento, além da implantação de programas de acesso à renda básica universal, a distribuição de alimentos para as populações carentes é uma medida emergencial e a universidade pública pode e deve colaborar.
“No Brasil, são escassos os esforços governamentais para tomar medidas de modo a garantir minimamente as condições básicas de bem viver da população e as pessoas em situações de vulnerabilidade socioeconômica estão sendo as mais afetadas pela crise intensificada pela pandemia. Iniciativas da sociedade civil em parcerias com as Universidades Públicas, como bancos de alimentos, produção e distribuição de refeições, podem colaborar e apontar possíveis caminhos para a necessidade de políticas e programas municipais e estaduais de assistência alimentar para populações carentes e em situação de rua. Neste contexto, a UFSC e outras Instituições Federais de Ensino Superior podem colaborar de forma importante como parceiros diretos da comunidade e do poder público”, afirma.
Articulação do Mandato Agroecológico
Tendo em vista essa ausência de políticas públicas que garantam uma alimentação saudável, o mandato do vereador Marquito, por ter uma relação direta com professores, técnicos, professores, alunos, assim como com as redes de solidariedade e cozinhas comunitárias, passou a articular e juntar as duas pontas: produtores e receptores. “Fizemos a conexão entre a fazenda e as campanhas solidárias e montamos essa estratégia conjunta de atuação”, comenta.
O legislador também pontua que os alimentos agroecológicos comercializados acabam tendo maior dificuldade de acesso a populações mais pobres, por isso há a necessidade de políticas públicas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). “São políticas voltadas para garantia do acesso das populações mais necessitadas, e o Plantio Agroecológico Solidário vem nesse conjunto de garantir esses alimentos as populações mais vulneráveis”, destaca Marquito, frisando também os benefícios do programa, especialmente na conjuntura atual.
“Oferecer e dispor de alimentos sem agrotóxicos e alimentos agroecológicos, alimentos saudáveis que ajudam na ampliação da imunidade, na qualidade alimentar e nutricional, no direito humano à alimentação adequada, faz com que essas famílias que têm pouco acesso à alimentação, ou que quando acessam têm uma alimentação altamente industrializada, tenham uma alimentação saudável”, afirma.
Rede de parceiros
O PAS possui vários parceiros, dentre eles está o LEAP UFSC, a Fazenda Experimental da Ressacada (FER), o Viveiro de Mudas da FER, o Setor de Avicultura da FER, o Centro de Ciências Agrárias (CCA/UFSC), o Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (CEPAGRO), o Laboratório de Educação do Campo e Estudos da Reforma Agrária (LECERA) e o Sesc Cacupé.
As campanhas solidárias realizadas tiveram a parceria dos grupos: Campanha Covid-19, Floripamor, Casa São José da Serrinha, Mutirão do Bem Viver, Coletivo Buva. As cozinhas comunitárias que se somaram no projeto foram: Cozinha Solidária do Ribeirão da Ilha, Cozinha de Todes, Templo Hare Krishna (ISKCON). Também foram beneficiados com as doações do PAS: estudantes da UFSC (em situação de vulnerabilidade), terceirizados da UFSC (em situação de vulnerabilidade), Igreja Batista e famílias haitianas.
“É muito bom ver a comunidade fazendo parte de um Projeto de Extensão da UFSC e contribuindo para a materialização da Agroecologia no espaço da Universidade. São mais de 180 pessoas da comunidade envolvidas no manejo do solo, plantio, aplicação de preparados biodinâmicos, colheitas de alimentos, manutenção do banco de sementes crioulas e outros tratos culturais da terra”, afirma a professora Patrizia.
Formação de voluntariado
No decorrer do ano, foram realizados nove encontros virtuais de formação para o voluntariado. Os temas abordados foram: Agroecologia, Agricultura Biodinâmica, Homeopatia Vegetal, Sistemas Agroflorestais, Veganismo, Agrotóxicos e a Lei Municipal 10.628 de 08/10/19, Adubação Verde, Pastoreio Racional Voisin e “É permitida a presença de agrotóxicos na água que bebemos?”
Técnico em Meio Ambiente, formando em licenciatura em geografia, o educador social Rodrigo Brizolla é um dos voluntários no projeto. “Iniciei como voluntário na primeira semana de maio, na primeira ação trabalhei no sistema de agrofloresta, em manejar plantas para adubação verde. Nas semanas seguintes, nos dias em que estava na escala, me direcionei para a horta agroecológica. Semeamos, plantamos, manejamos os canteiros e colhemos”, conta.
Na avaliação de Rodrigo, a articulação entre sociedade organizada, movimentos comunitários, cozinhas coletivas, movimentos sociais e a UFSC, através do Núcleo de Agroecologia, “constrói um trabalho fundamental, em colocar a Universidade a serviço das demandas urgentes do povo trabalhador em meio a pandemia, garantindo a segurança e soberania alimentar de inúmeras famílias."
Para ele, é um trabalho prático e urgente: "Produzir alimentos saudáveis sem agrotóxicos, com trabalho coletivo em meio a pandemia é uma ação potente na luta contra a fome, pela universidade popular e na campanha contra os agrotóxicos”.
A natureza como sujeito de direito
“Nosso mandato conseguiu a proeza que foi aprovar a Lei da zona livre de agrotóxicos para a ilha de Santa Catarina, que é 97% do território de Florianopólis”, comemora Marquito sobre o Projeto de Lei 17538/2018. Aprovado por unanimidade em 2019, tornou a cidade catarinense a primeira do país a banir o uso e a venda do agrotóxico no seu território.
Segundo vereador mais votado em 2016 e o mais votado em 2020, o parlamentar, que tem como bandeira principal a agroecologia, explica que a referida lei não surgiu sozinha. Antes dela, outros projetos ligados ao tema tinham sido aprovados, como a política municipal de agroecologia e produção orgânica, que, de acordo com ele, tem tudo a ver com o Plantio Agroecológico Solidário.
Ele cita também a Lei da Compostagem, que obriga o município a tratar os resíduos orgânicos e não enviar para o aterro. “Então nós já tínhamos discutido a natureza como sujeito de direito. Todo esse debate de uma perspectiva, de uma visão de saúde holística, global, sistêmica, da visão de que a agroecologia é um potencial enorme do ponto de vista da promoção da saúde, da vida e desenvolvimento econômico, numa perspectiva de baixo impacto, já existia”, recorda.
Para ele, essa discussão que já vinha sendo feita há algum tempo trouxe elementos para se discutir com propriedade dentro da Câmara de Vereadores. “A gente traz informações do Atlas do Agronegócio, o Dossiê da Abrasco sobre os impactos dos agrotóxicos, o boletim da Abrasco sobre a PL do Veneno, o estudo do Butantã que mostra que não existe dose segura de agrotóxicos. Trazemos também os estudos do Ministério Público Estadual, do programa de análise de agrotóxico na água e nos alimentos. Tudo isso a gente traz para dentro do plenário”, expõe, acrescentando também a participação de agricultores, nutricionistas, promotores e médicos: “A gente faz um amplo debate e o projeto é aprovado na Câmara”.
De acordo com Marquito, no momento a Lei está em fase de implementação. “O Plantio Agroecológico Solidário também é uma resposta para a própria lei, de que é possível plantar de forma agroecológica e alimentar as pessoas dessa forma. E em um contexto de ‘passando a boiada’, a gente acaba criando um contexto local, de um debate muito aprofundado e com muita qualidade, que dá conta de aprovar uma lei desse tipo e que depois tem consequência”, cita, destacando que Florianopólis é também a segunda cidade no mundo livre de agrotóxico.
“Tem um ineditismo especial e que aponta para uma sociedade mais ecológica e mais justa”, complementa. Para o vereador, a importância dessa discussão dentro do contexto urbano é levar uma visão agroecológica para dentro da cidade. “Quando a gente trabalha a agroecologia dentro da cidade, a gente fala dos impactos do agrotóxico, mas também fala em pensar o saneamento básico. A Lei da Compostagem é isso, resíduo orgânico é insumo para a agricultura ecológica. Quando a gente fala das estratégias de abastecimento, vamos pensar em centrais de abastecimento, coletas de água da chuva, saneamento ecológico. Vamos pensar em soluções baseadas na natureza para as infraestruturas”, exemplifica.
Agroecologia na promoção da saúde e bem-estar social
Nesse sentido, a professora Patrizia entende que é essencial que outras formas de agricultura, especialmente as de base ecológica, consolidem-se no campo produtivo. “Estimular a soberania produtiva dos agricultores e agricultoras e a segurança alimentar para toda a sociedade são metas emergenciais quando pensamos no conceito de saúde, seja dos humanos, animais, das plantas, do solo ou do ambiente como um todo”, afirma, destacando que a meta é alcançar o conceito de One Health, que significa “Saúde Única” ou “Uma Só Saúde”: “Para isso temos a Agroecologia como grande protagonista”.
Marília ressalta que a agricultura de base ecológica, espelhada principalmente nos preceitos da agroecologia, possibilita a produção de alimentos sem a presença de resíduos tóxicos, sem a utilização de agrotóxicos e adubação química sintética. Além disso, estimula a produção e comercialização de alimentos locais e da época, bem como se estrutura com base em outras relações entre os seres humanos e destes com a natureza. “Neste sentido, este projeto tem como objetivo primordial o desenvolvimento de áreas produtivas agroecológicas para a produção e doação de alimentos saudáveis nas dependências da UFSC”, conclui.
Para Rodrigo, a “agroecologia é uma opção política de respeito ao planeta enquanto ser vivo a natureza, e a humanidade”, em contraponto à narrativa do capital “que afirma que só se produz alimento envenenando a terra os rios os povos”. O voluntário do PAS ressalta que a agroecologia faz a opção "pela saúde, pela ética, pelo trabalho sem exploração e pela segurança e soberania alimentar. Um elo ancestral na luta de gerar alimento de verdade. Dos milhos crioulos as panc’s (plantas alimentícias não convencionais), da adubação verde ao resgate da flora e da fauna nativa. Uma opção de estar junto aos povos do campo da floresta e das cidades”.
Além dos benefícios sociais e ambientais do PAS, a iniciativa da UFSC contribuiu com a ciência, a partir de frutos acadêmicos do projeto. Entre eles, a apresentação de dois trabalhos científicos em dois eventos científicos: Congreso Latinoamericano de Agroecología, Montevidéu – Uruguai, e 38° Seminário de Extensão Universitária da Região Sul, Universidade Estadual de Londrina. Também deu origem a um projeto de Iniciação Científica sobre a utilização do descarte da lã das ovelhas para cobertura do solo dos canteiros das hortaliças.
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Edição: Marcelo Ferreira