O que são alimentos e qual sua associação com a vida cotidiana, as divindades e culturas?
Nesta quarta-feira, dia 16 dezembro de 2020, o Comitê de Patrimônio da UNESCO atendendo solicitação conjunta da Argélia, Mauritânia, Marrocos e Tunísia, atribuiu ao cuzcuz a condição de Patrimônio Imaterial da Humanidade.
Isso significa que os conhecimentos, práticas e tradições relacionadas ao preparo e ao consumo do cuzcuz adquiriram status de valor humano inalienável. Algo a ser protegido como característica relevante na história evolutiva do homo sapiens sapiens.
Naturalmente, o Brasil ganhou com isso, embora não tenha participado do processo. Aqui, o cuzcuz é prato típico de milhões de famílias. Ele está presente nos dias comuns e nas festas de quase todos os lares do campo e das cidades do Centroeste, Norte e Nordeste brasileiros.
E vejam a relevância da decisão da UNESCO. Ela afirma que nossa cultura alimentar popular, com o cuzcuz de milho, se equipara em importância, à culinária gourmet da França e do Mediterrâneo. Com isso, o minguado rol de elementos da cultura alimentar global, interpretado como conhecimento intangível determinante da vida cotidiana e espiritual dos povos, passa de nove para dez. Destaque-se: são apenas dez os alimentos que, segundo a UNESCO, atingiram este grau de importância, para a história viva da humanidade.
Considere-se, por exemplo, que o acarajé alimento essencial de Xangô, deus da justiça, do trovão e do fogo, se restringe a patrimônio cultural brasileiro. Não é pouco, mas não é global.
Já o milho, na forma de cuzcuz ou de outras maneiras, além de associado a vários deuses mexicanos, aztecas, guaranis e maias, é alimento de vários orixás cultuados em diversas partes do mundo. E ele também está no bolo de milho da dona Benta, nas broas da tia Nastácia, e na cultura de todos os povos indígenas que habitam e habitaram o Brasil. Vale lembrar que o milho, no cuzcuz, disputa com o trigo, no pão francês, espaço fundamental na dieta alimentar dos brasileiros.
E este é o ponto: O que são alimentos e qual sua associação com a vida cotidiana, as divindades e culturas dos diferentes povos?
A resposta deve ser buscada no que há de mais relevante e comum, no tradicional e no sagrado da cultura alimentar dos povos. A resposta está na saúde dos indivíduos e suas sociedades.
No caso do milho, a saúde está comprometida.
E por isso os povos tradicionais de matriz africana têm questionado fortemente imposições de mercado sobre sua sabedoria ancestral. As lavouras transgênicas, o agronegócio dependente de modificações genéticas que misturam plantas com bactérias e seus agrotóxicos, simplesmente impedem a obtenção de alimentos puros. Como oferecer para os deuses uma comida envenenada? Como obter comidas puras sem agroecologia? Como obter avanços na agroecologia, com governos dominados pelos interesses das transnacionais do veneno?
E para os que pensam que estamos restritos à crenças de religiões de matriz africana, vejamos o caso do trigo transgênico, prestes a ser liberado no Brasil, que é tolerante ao herbicida glufosinato de amônio (GA). Genotóxico e neurotóxico, o GA não deveria estar sendo usado no Brasil, e muito menos no RS, até porque a Bayer e a Basf estão impedidas de comercializá-lo na maior parte dos países da União Europeia. E com a autorização de venda deste trigo transgênico argentino, seguramente haverá resíduos daquele veneno na hóstia sagrada, no Corpo de Cristo e nos pãezinhos e bolos de festa oferecidos às crianças de todo o Brasil.
Quem somos nós, que aceitamos tudo isso como resultado de atitudes dos nossos representantes? A serviço de quem, atuam aqueles que aceleram genocídios e abalam os fundamentos culturais mais sagrados de nosso país? No RS, pertinho do Natal, o governador Eduardo Leite encaminhou em caráter de urgência seu PL 260/20, à Assembleia Legislativa do Estado.
Ali, onde conta com maioria para coisas deste tipo, ele pretende destruir nossa lei dos agrotóxicos e assim prestar aos donos da bancada ruralista, vantagem que vem sendo por eles perseguida, sem sucesso, há mais de 40 anos.
Se a população gaúcha perde, como o governador e os deputados que o apoiam, podem ganhar com isso?
A quem interessa tamanho apoio à tendências cruéis observadas neste pais, que não se comove com o fato das mortes violentas de crianças contarem em milhares ao ano? Em 2019, foram quase 5 mil mortos. Em sua ampla maioria (75%), crianças negras, descendentes dos povos escravizados que nos trouxeram o cuzcuz, a capoeira, o samba e tantas outras formas de respeito e amor à vida.
Muitas perguntas sem respostas, que talvez possam ser resumidas a uma só: Quem somos nós, que permitimos tudo isso?
Quem é cada um de nós, a que veio, e o que merece? Como canta Dani Black, na música a seguir, somente o tempo vai revelar quem somos.
OBS: Amigues leitores. Os links são opções de acesso, para eventuais interessados nas fontes citadas. Recomendo, enfaticamente, tão somente que não deixem de escutar a música. Que ela nos inspire.
Edição: Katia Marko