O momento exige uma percepção ampliada e entendo que a Feira é um espaço privilegiado para isso
O ano de 1968 foi um ano difícil no Brasil. Enquanto no mundo o chamado “maio de 68” trouxe para o espaço público manifestações contra a guerra no Vietnã, lutas identitárias e a contracultura, no Brasil, foi marcado por muita violência e cerceamento das liberdades. Um ano de prisões, torturas e mortes.
1968 acabou, ou não, como diria Zuenir Ventura, com o AI-5. Decretado em 13 de dezembro, o ato institucional n. 5 marca o período de maior violência e de violações dos direitos humanos da nossa triste ditadura civil militar. A morte do estudante Edson Luís é um exemplo. Um jovem pobre de 18 anos, que não participava de nenhum movimento organizado. Edson foi assassinado durante uma invasão, feita pelos militares, ao restaurante estudantil.
É nesse Brasil que acontece a primeira Feira Paulista de Opinião, um espetáculo com direção de Augusto Boal que reuniu o que havia de melhor no teatro paulista e carioca, com nomes como Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos e Jorge Andrade. Outros nomes importantes da música brasileira como Edu Lobo, Sérgio Ricardo e Caetano Veloso também contribuíram com a Feira. O objetivo central era a luta contra a censura e a violência imposta pelo governo ditatorial vivido no Brasil da época. A pergunta que moveu a criação destes artistas era “O que pensa você sobre o Brasil de hoje?”
Augusto Boal foi diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, uma das grandes figuras do teatro brasileiro e seguramente uma das mais conhecidas fora do país. Não só por sua atuação como diretor e criador do Teatro de Arena de São Paulo, mas sobretudo por suas teses do Teatro do oprimido.
Cinquenta anos depois, em Porto Alegre, a Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, em parceria com o Memorial Luiz Carlos Prestes, realizou em julho de 2018 a Primeira Feira Brasileira de Opinião – Contragolpe/Porto Alegre. Reunimos mais de 50 coletivos culturais e artistas que responderam, através de suas obras, a pergunta de Boal. Estes artistas mostraram a sua visão sobre o momento social e político do Brasil, em obras de artes visuais, teatro, dança, música e poesia, além dos debates e oficinas. Nossa forma de resistir aos tempos duros.
O próprio Boal escreve no programa do espetáculo “I Feira Paulista de Opinião”: “Nenhum de nós, como artista, reúne condições de, sozinho, interpretar nosso movimento social. Conseguimos fotografar nossa realidade, conseguimos premonitoriamente vislumbrar seu futuro, mas não conseguimos surpreendê-la no seu movimento. (...)”
Suas palavras não poderiam ser mais atuais e adequadas ao cenário que enfrentamos hoje no país. Ele está certo. Sozinhos, não conseguimos. No entanto, não podemos cruzar os braços, precisamos pensar o nosso fazer artístico, criativo e crítico como um espaço para juntos, a partir de uma pesquisa séria sobre a realidade, mirando todos os seus diferentes ângulos, mostrando na cena perspectivas diversas dessa realidade. E penso que será através do compartilhamento dessas perspectivas diversas, que vamos construir pensamento sobre essa realidade, para vislumbrar um caminho de transformação.
Isso posto em cena, pode ser um grão importante na areia da mudança. Interferindo um pouco (do nosso tamanho, nem maior, nem menor), no curso das coisas. Penso que esse é um momento que exige este movimento. Essa percepção ampliada. E entendo que a Feira é um espaço privilegiado para realizar esse movimento.
Feira de Opinião na Pandemia
Em meio a pandemia, Cecília Boal voltou a fazer essa pergunta a artistas de todo o país e assim nasceu a Feira de Opinião na Pandemia. A terrível virtualização de tudo imposta pela necessidade do isolamento social paradoxalmente reuniu nesta feira artistas que dificilmente parariam para pensar algo juntos. Norte, Nordeste, Sudeste e Sul estão aparecendo nos episódios que compõem o evento.
E dessa forma fomos convidados a fazer uma reflexão coletiva. O que pensamos sobre o Brasil de hoje? Sobre o Brasil bolsonarista no qual estamos todos naufragando como país e como humanidade. Sim, humanidade. Penso mesmo que não se trata só, o que não seria pouco, eu sei, de uma polarização ao estilo guerra fria, mas sim uma crise civilizacional.
Valores humanitários, de respeito à vida e ao direito a ela, a liberdade e a dignidade, são atacados, da forma mais tosca e violenta, diariamente. E o outro grave fator é que isso vem do Palácio da Alvorada, que foi transformado em verdadeira sede de uma organização criminosa. Uma família que todos sabemos, mesmo os que fingem, está ligada a uma das faces mais cruéis e violentas do Brasil de hoje, as milícias.
Corrupção instaurada e impunidade comprada para defesa de qualquer membro da familícia. A compra de votos, com recursos de programas sociais para garantir que o processo de impeachment não avance é motivo de vergonha para qualquer brasileiro. Há muito que é constrangedor que os que o elegeram para acabar com a corrupção façam tanto silêncio a respeito de toda essa barbaridade.
Diante de tudo isso, penso que a esquerda precisa caminhar para uma unidade, para uma Frente Ampla. A ela (a esquerda), eu peço cuidado, paciência e tolerância com a própria esquerda. Mais do que nunca é preciso perceber o que nos une, mais do que o que nos divide. Estamos diante de um grande desafio, derrubar os que hoje representam o que há de mais retrógrado, velho, desumano e mesquinho. Estamos diante de um levante fascista e, mesmo não sendo o único fator, a unidade da esquerda significa muito nesta batalha.
A nós, que somos trabalhadores das artes, eu deixo mais essa do Boal.
“Nós, dramaturgos, compositores, poetas, caricaturistas, fotógrafos, devemos ser simultaneamente testemunhas e parte integrante dessa realidade. Seremos testemunhas na medida em que observamos a realidade e parte integrante na medida em que formos observados. Esta é a ideia da 1ª Feira Paulista de Opinião".
Augusto Boal
Edição: Katia Marko