“A raiva me fez questionar a política de dominação masculina e me permitiu resistir à socialização Sexista.”
Bell Hooks
Na quarta-feira (16), chocou a internet a denúncia e os vídeos do assédio sexual cometido por Fernando Cury, deputado estadual pelo CIDADANIA, contra sua colega de parlamento Isa Penna, deputada pelo PSOL em São Paulo. Escolhi a construção da frase que coloque em evidência o algoz - que após a repercussão realizou um pseudopedido de desculpas tanto no plenário, quanto por meio de uma nota, contradizendo os vídeos afirmando que foi “apenas um abraço” - na contramão da prática midiática comum de colocar em evidência, de forma passiva, a vítima e esconder o abusador.
Geralmente, quando nos deparamos com situações de assédio e violências, é comum ficarmos paralisadas pelo medo e constrangimento. A deputada, no entanto, com uma presença de espírito - e infelizmente, provável experiência em lidar com situações do tipo - conseguiu de forma rápida se esquivar das duas tentativas de "toque" sem consentimento e enfrentar com agilidade e de cabeça erguida o abusador.
Abuso, intimidação e humilhação sexual são uma conhecida tática de guerra. Um componente de intimidação psíquica que historicamente sempre foi utilizado. Um dos desdobramentos dessas formas de humilhação sexual foi conceituado na contemporaneidade como slutshamming, termo em inglês que mistura as palavras "vadia" e "envergonhar", uma forma de bullying a partir do colocar a mulher em uma posição humilhante.
Os vídeos da referida sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) sugerem que foi isso que o deputado tentou fazer, ao ir em direção à deputada Isa, retornar até o grupo de outros deputados e assessores - todos homens -, rapidamente falar algo e dar uma risada, indo novamente em direção à Isa segundos antes do assédio, e um dos deputados a quem ele havia se dirigido fazer um gesto de tentar impedi-lo. A sequência de imagens leva a crer que o assédio foi uma deliberada tentativa de slutshamming. Ele queria humilhar a deputada Isa. Ele queria dar risada com os amigos de ter apalpado sem consentimento uma mulher, de constrangê-la. Ele queria mostrar pra ela que se mulheres querem ocupar aquele espaço de poder "masculino", elas terão que se sujeitar a ser objetos. Afinal de contas aquele lugar não é delas, eles que de muito boa vontade toleram sua presença, não é mesmo?!
Isa teve sorte. Sorte de ser um espaço público e haver outras pessoas ao redor (o que não impediu a violência do ato). Sorte de ter sido televisionado ao vivo, dessa forma sua palavra, por mais que tentem, não pode ser desacreditada. Sorte de ser uma mulher em uma posição de poder e que por militar no combate à violência contra as mulheres teve a capacidade de perceber rápido o abuso e ter tido condições de reagir e fazer sua voz ser ouvida.
Como se não bastasse, na sessão seguinte, quinta (17), o deputado Gil Diniz, eleito pelo PSL, mas atualmente “sem partido” - segundo a biografia presente no site da Alesp - enfurecido, sobe à tribuna repetindo o mantra dos homens que não reconhecem seus abusos e que fazem questão de amenizar as violências cometidas pelos amiguinhos. Com as palavras de "não generalizem", "ele subiu aqui, pediu desculpas", "sou pai de família, sou casado" e a minha favorita: “usar cada homem, cada pai de família aqui como escada como ‘trampolim político’”.
Pois bem deputado, deixa eu te dizer uma coisa! Uma coisa que talvez o senhor já saiba, ou, assim como sabe que o colega assediou uma mulher e escolheu amenizar, talvez seja um dado que você tenha escolhido ignorar. No Brasil, segundo o anuário brasileiro de segurança pública de 2019, ocorreram 66.041 casos de estupro - denunciados, porque como citado anteriormente, homens como você fazem as vítimas terem medo de denunciar - sendo 71,8% contra meninas de até 17 anos. Segundo o levantamento da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, 73% ocorrem dentro de casa por pessoas próximas à vítima. Isso mesmo! São cometidos por pais, irmãos, tios, maridos, avôs, vizinhos, homens acima de qualquer suspeita, "homens de bem", porque pasme! Os abusadores, são pais, irmãos, maridos, tios, avôs, etc. Pasme novamente! Eles não pensam na família na hora de cometer os crimes. Portanto a frase que você gritava com indignação para diminuir a violência sofrida pela tua colega não abona, não diminui a gravidade do crime, especialmente se foi de fato premeditado para desestabilizá-la.
No momento em que ele subiu à tribuna para destilar tamanha ignorância, a deputada Monica Seixas do PSOL, em apoio à Isa, desabafa: "É exatamente esse tipo de violência que quem denuncia tem que passar”. Monica tem razão, é isso que as vítimas têm que passar cada vez que denunciam, e é por isso que muitas vezes têm medo de denunciar, porque sabem que homens como Gil Diniz irão fazer um escândalo defendendo o abusador e desacreditado a vítima. Ao escutar essa frase, o deputado se descontrola. Ao assistir o vídeo, temi pela segurança física de Monica, que sem baixar a cabeça chega perto dele, que segue aos berros, apontando o dedo no rosto dela de forma violenta tentando intimidá-la, e diz para ele não levantar a mão pra ela.
Quando isso acontece, outras pessoas que julgo serem parlamentares e assessores vão em sua direção, colocam as mãos sobre seu ombro, cochicham algo em seu ouvido, provavelmente também preocupados com a sua segurança física. Mas também a fazendo recuar. Empurrando, conduzindo-a para longe. Como se ela quem precisasse ser contida. Ainda que estivesse com raiva. Nós mulheres passamos por essas situações com tanta frequência que às vezes nem é raiva, é só um sentimento de "não acredito que é século XXI e isso está acontecendo!". Mas ainda que fosse raiva, seria legítimo, quem não sente raiva diante da violência que seus pares sofrem?
Precisamos despoluir o imaginário coletivo que equipara a raiva feminina à histeria, à ideia de que mulheres precisam ser contidas, porque não precisamos. Precisamos ser respeitadas nos nossos espaços de trabalho e em todos os outros que viermos a ocupar. A raiva, como bem colocou Bell Hooks em “Black women: shaping feminist theory” (Mulheres negras: moldando a teoria feminista), nos permite questionar a dominação masculina que faz com que os homens se sintam confortáveis a acessar nossos corpos sem nossa autorização em qualquer espaço, inclusive em uma Assembleia Legislativa. Nos permite resistir a uma socialização sexista que nos quer dócil diante das violências que nos permeiam, que quer nos conter.
* Maria Eduarda Carneiro da Silva é bacharela em Ciências Sociais pela UFRGS e mestranda em Estado Gobierno y Políticas Públicas pela Flacso.
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Edição: Marcelo Ferreira