Diversas entidades da sociedade civil, conselhos, fóruns e coletivos de trabalhadores e usuários da saúde mental têm manifestado repúdio às propostas apresentadas pelo governo Bolsonaro que provocam um desmonte na Política Nacional de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS).
Na última semana, em reunião com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e às Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), o Ministério da Saúde apresentou a proposta de revogar cerca de 100 portarias editadas entre 1991 e 2014. As mudanças atingem as estratégias de cuidado das pessoas em sofrimento psíquico baseadas nos direitos humanos conquistadas com a reforma psiquiátrica, promovendo um redirecionamento do cuidado em rede para a internação em hospitais psiquiátricos.
A proposta foi apresentada por um integrante da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), segundo fontes contatadas pela reportagem do Brasil de Fato RS, tendo como base o documento “Diretrizes para um modelo de atenção integral em Saúde Mental no Brasil”, assinado pela ABP e outras entidades médicas. Na prática, propõe rever a atual política de saúde mental, desarticulando a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
A RAPS é composta por uma série de estratégias e equipamentos, como os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) nas modalidades I, II, Álcool e outras Drogas, Álcool e outras Drogas 24h (III) e Infantil; Unidade de Acolhimento Transitório; Serviço Residencial Terapêutico; Leitos de Atenção Integral em Saúde Mental em Hospital Geral; Consultório na Rua; Iniciativas de Geração de Renda.
A proposta quer revogar portarias que estabelecem procedimentos ambulatoriais e a revisão do financiamento dos CAPS. Estes são unidades de saúde que fortalecem vínculos dos usuários da saúde mental nos seus territórios, como alternativa à internação em hospitais psiquiátricos, também conhecidos como manicômios. Somente em casos mais graves, atualmente, as pessoas são encaminhados para internação, e em hospitais gerais. Na contramão, a proposta do Ministério da Saúde sugere a criação de Ambulatórios Gerais de Psiquiatria e de Unidades Especializadas em Emergências Psiquiátricas.
Chamado de “revogaço” pelas entidades que se colocam contra a proposta, as medidas colocam em risco equipamentos como equipes de Consultório de Rua, Serviço Residencial Terapêutico e Unidade de Acolhimento. Atinge não somente pessoas com sofrimento ou transtorno mental, como também a pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas e pessoas em vulnerabilidade social, como pessoas em situação de rua.
Frente aos retrocessos, foi instituída no início de dezembro a Frente Ampla em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, com representações de todo o país. Em seu manifesto, destaca que a volta da lógica de confinamento fere a todos, mas em especial aos mais fragilizados: “Tal mudança projeta mais dor em um contexto já trágico de pandemia por covid19: porque querem causar mais sofrimento mental às pessoas? Como fechar serviços de saúde em plena pandemia? O fato é que se verifica hoje uma total submissão da Política Nacional de Saúde Mental aos interesses das iniciativas privadas, o que coincide com a presença corporativista da Associação Brasileira de Psiquiatria junto ao Ministério da Saúde”.
Ao convocar a defesa do cuidado em liberdade no SUS, critica ainda que as propostas de mudanças são lançadas no mês de dezembro, “contando com o recesso do Legislativo e do Judiciário, para que não haja resistência e nem amplo debate”. Segundo a Frente, as propostas serão pautadas na reunião da Comissão Intergestora Tripartite, instância de articulação e pactuação na esfera federal, que se reúne no dia 17 de dezembro. Entre outras ações, a Frente lançou um abaixo assinado em defesa da saúde mental, da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial.
CRPRS: Ápice da tentativa de remanicomialização
Em manifestação enviada à reportagem do Brasil de Fato RS, o Conselho Regional de Psicologia do RS (CRPRS) afirma que “cuidar não é trancar”. Destaca que a Reforma Psiquiátrica Brasileira, sob forma da Lei Federal nº 10.216 de 2001, é reconhecida internacionalmente e, ainda em curso, teve origem em um processo de disputa de vários segmentos do campo da saúde mental.
De um lado, aqueles “que problematizam os modos excludentes, segregadores e mortíferos representados pelos hospitais psiquiátricos onde, por mais de um século, milhares de pessoas foram depositadas, e não cuidadas”, explica o CRPRS. De outro, aqueles que defendem “como direção de trabalho em saúde mental as estratégias de afastamento social como a hospitalização e a internação em ‘clínicas de recuperação’ (as atuais Comunidades Terapêuticas), o uso intensivo de psicofármacos e tecnologias invasivas (como a eletroconvulsoterapia; a lobotomia e a estimulação transcraniana)”, complementa.
Lembra que já em 2006, quando os serviços ainda estavam em processo inicial de implantação, entidades médicas capitaneadas pela ABP já se movimentavam pela reversão do modelo de cuidado baseado em uma lógica territorial para uma lógica hospitalocêntrica. Naquela ocasião, quando foi publicada uma versão do mesmo documento que baseia as propostas do Ministério da Saúde, as entidades médicas transpareceram a inconformidade com o que seria a perda de poder do segmento da psiquiatria.
O CRPRS destaca trecho deste documento que diz: “Desde 1995, o Ministério da Saúde adota como premissa para a construção do seu modelo de assistência, a exclusão do médico da equipe que assiste o doente mental e vem fazendo isto progressivamente. A alegação da falta de médicos especializados não procede, o que acontece é o abuso da informalidade e dos baixos valores com que o trabalho do psiquiatra tem sido remunerado. O médico psiquiatra vem sendo colocado mais e mais como profissional secundário e prescindível e a ele têm sido atribuídas as mazelas do sistema. Este movimento ganhou suficiente espaço na mídia para estigmatizar os psiquiatras, numa orquestração bem engendrada que não dá espaço para as manifestações e opiniões contrárias.”
Essa inconformidade em compartilhar o cuidado com demais integrantes das equipes dos serviços que compõem a RAPS, segundo o Conselho, “associada a interesses mercadológicos, tem encontrado cada vez mais espaço político junto ao governo federal, avançando sobre as estruturas constituídas até então e produzindo uma tendência de remanicomialização do cuidado em saúde mental”. Cita os retrocessos já em andamento, amplificados por Bolsonaro, que trouxe “estruturas como o hospital psiquiátrico, os ambulatórios, os hospitais-dia, e as comunidades terapêuticas para comporem a RAPS, fortalecendo a lógica de mercado e revertendo direitos garantidos constitucionalmente, com total desconsideração ao processo de reforma psiquiátrica construído ao longo de décadas.”
Na avaliação do CRPRS, a “tentativa de promover a remanicomialização da política de saúde mental brasileira chegou ao seu ápice” com a nova proposta. Frente a isso, a entidade convida a comunidade “a conhecer os princípios e as propostas da Reforma Psiquiátrica brasileira e a se inserirem na luta por uma sociedade sem manicômios”.
FGSM: "Revogaço" ataca 30 anos de luta antimanicomial
O Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM), em nota, afirma que o que “a ABP e o Ministério da Saúde vêm propor neste momento é uma Política Pública em Saúde Mental higienista, que busca a clausura de quem sofre, com base no cuidado médico – centrado, um modelo superado pela Reforma Psiquiátrica/RP Brasileira, que passou a utilizar a clínica ampliada, o trabalho multiprofissional e interdisciplinar, para garantir o cuidado em todas as áreas da vida que as pessoas necessitem”.
“Indignação! Foi assim que recebemos mais uma tentativa de golpe na saúde mental apresentada pelo Ministério da Saúde e apoiada pela Associação Brasileira de Psiquiatria, agora no final de um ano, como um tiro de misericórdia”, afirma a psicóloga Fátima Fischer, integrante do FGSM e ex-coordenadora de desinstitucionalização do Hospital Psiquiátrico São Pedro durante o governo de Tarso Genro (2011-2014). Ela ressalta uma pesquisa da OMS que relevou que a desassistência e o desfinanciamento na área de saúde em diversos países foram agravados ainda mais com a pandemia: “aponta que pessoas com problemas mentais e uso de substâncias, anteriores à covid, são mais vulneráveis e podem correr riscos maiores”.
Fátima destaca que, há 30 anos, o movimento nacional da luta antimanicomial vem instituindo no país uma nova relação da sociedade com a loucura de forma democrática e ética. “Todas as mudanças vieram de conquistas legítimas e apoiadas nas conferências nacionais de saúde mental, espaço democrático e instância soberana no SUS. Estive presente como trabalhadora, por vezes como gestora, na criação e gestão de grande parte destas portarias agora atacadas, e digo, foi com a vida, a experiência de muitos trabalhadores, usuários e familiares, com o conhecimento dos cuidadores e usuários que regulamentamos na busca da melhor atenção em saúde mental”, afirma, complementando que há ainda muito em qualificar e ampliar na Rede de Atenção Psicossocial.
O “revogaço” atinge em cheio a rede de serviços, avalia, ao concentrar a assistência e o recurso financeiro em saúde mental em especialidades psiquiátricas. Acaba com as instâncias do controle social, prejudicando pessoas com sofrimento psíquico como indígenas, população de rua, crianças, adolescentes, usuários de álcool e outras drogas e toda população hoje em assistências nos CAPS. Extingue instâncias do controle social, equipes de desinstitucionalização (que faziam a transferência dos usuários dos hospitais psiquiátricos para a vida na comunidade), revoga mecanismos de fiscalização dos hospitais psiquiátricos e acaba com a comunicação ao Ministério Público da internação involuntária: “Ou seja, nada sobra”.
“O que estão tentando fazer é um ataque à ética do cuidado, invertendo toda a rede de saúde mental existente, mudando o financiamento, abandonando a integralidade, garantidas na Constituição brasileira. Sorrateiro ataque, pois busca ao exterminar com as portarias, acabar com a Lei da Reforma Psiquiátrica Nº 10.216 de 2001, conquistada com muita luta”, critica, reafirmando a luta e resistência pelo cuidado em liberdade, pelo direito à vida e pelos direitos humanos.
Posição da ABP
Em nota assinada pela diretoria da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a entidade chama as notícias sobre a revogação das portarias de “fake news” e que “tais informações são inverídicas e têm sido divulgadas irresponsavelmente”. Reforça ainda que suas diretrizes são publicadas em parceria com outras instituições (ABIPD, SBNp, AMB, FENAM e CFM).
Afirma que existe no país uma “desassistência aos pacientes com transtornos mentais, fruto de ideologias irresponsáveis”. Se posiciona pela defesa da “nova Política Nacional de Saúde Mental” a partir da implementação de medidas publicada em dezembro de 2017 por meio da Resolução CIT Nº 32/201 e da Portaria MS Nº 3.588/2017.
As medidas citadas pela ABP foram publicadas pelo governo Temer, em dezembro de 2017, alterando e incluindo novos componentes na RAPS, como a inclusão de hospitais psiquiátricos na rede, aumento do valor da diária de internação paga aos hospitais psiquiátricos e ampliação de 15% para 20% do número de leitos psiquiátricos nessas unidades, entre outras mudanças.
Em 2018, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou uma recomendação pedindo que o Ministério da Saúde revogasse a Portaria nº 3.588, o que foi negado pelo órgão.
Teto de gastos e mercantilização da saúde mental
A Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) elaborou um documento memorial, em novembro deste ano, sistematizando o conjunto de decretos e portarias que evidenciam a ruptura do marco legal e todo o processo de regulamentação inaugurada com a Lei da Reforma Psiquiátrica. Assinado por 13 entidades nacionais, o documento evidencia que o Brasil “atua pela regressividade dos direitos dos usuários, usuárias, familiares, trabalhadores e trabalhadoras da rede de atenção psicossocial, de álcool e outras drogas”.
O documento lista 15 medidas, que iniciaram com as publicações defendidas pela ABP. Cita ainda que a perspectiva geral da saúde, com a imposição do teto de gatos aprovado no governo Temer (Emenda Constitucional 95), é de um efeito direto no financiamento do Sistema Único de Saúde. “Só em 2019 a perda foi de R$ 17,6 bilhões e a estimada para 2020 é de R$ 4,9 bilhões, o que totaliza R$ 22,5 bilhões a menos em apenas três anos de vigência, faltando ainda 17 anos pela frente”, aponta o documento.
O memorial revela a linha do tempo das medidas que vão abrindo espaço para a mercantilização da saúde mental, que fortalecem a utilização de comunidades terapêuticas para pessoas com problemas decorrentes do abuso de álcool e outras drogas e em situação de rua. Com as mudanças aplicadas pelo governo Bolsonaro em 2020, tais espaços privados receberam esse ano o dobro do orçamento dos CAPS do SUS.
As comunidades terapêuticas são alvo de inúmeras denúncias, por promoverem torturas, conversão religiosa compulsória e trabalho forçado análogo à escravidão. Lançado em 2018 em uma parceria do Ministério Público Federal (MPF) com o Conselho Federal de Psicologia e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o "Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas" descreve inúmeros tipos de privação física e psicológica em dezenas de unidades visitadas durante o ano de 2017. O relatório não teve continuidade por conta de mudanças recentes na cúpula do Ministério Público Federal, que levaram à suspensão das fiscalizações.
Live nesta sexta-feira
A fim de aprofundar o tema, o Brasil de Fato e a Rede Soberania promovem uma live, em parceria com o Fórum Gaúcho de Saúde Mental, nesta sexta-feira (11), às 17h. O debate vai contar com tradutor-intérprete em Língua Brasileira de Sinais (libras). Participam:
Laura Fusaro Camey - Usuária dos serviços substitutivos do SUS-BH, atual vice-presidenta da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (ASUSSAM), membra do Fórum Mineiro de Saúde Mental e conselheira municipal de Saúde.
Benedetto Saraceno – Psiquiatra italiano, secretário-geral do Instituto de Saúde Mental Global de Lisboa e embaixador global da Special Olympics. Foi diretor do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias e diretor do Departamento de Enfermidades Não Transmissíveis da Organização Mundial de Saúde em Genebra. Foi professor de Saúde Global na Universidade Nova de Lisboa e responsável científico da Plataforma Gulbenkian de Saúde Mental Global. É membro honorário do Royal College of Psychiatrist do Reino Unido, da Escola Federal Suíça de Saúde Pública e recebeu título de Doutor Honorário das universidades de Birmingham e Lisboa.
Sandra Fagundes - Psicóloga, psicanalista, professora, militante do SUS e da luta antimanicomial, ex-secretária estadual de Saúde.
Pedro Gabriel Delgado - Psiquiatra, professor da Faculdade de Medicina da UFRJ, integrante da Frente Estamira de CAPS.
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Edição: Katia Marko