O Quilombo da Família Lemos é o sétimo quilombo autorreconhecido de Porto Alegre. Em novembro de 2018, foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo. Com a certificação, que é a primeira etapa depois da autodefinição da comunidade para a abertura do processo de titulação, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) passou a estar envolvido no processo, que aguarda até hoje o reconhecimento, delimitação, demarcação das terras ocupadas por remanescentes da comunidade Quilombola Família Lemos.
A história da família e consequentemente do quilombo começa em Canguçu, fronteira com o município de Encruzilhada do Sul, no Quilombo Maçambique, onde nasceu Délzia Gonçalves de Lemos, neta de escravos. Ainda pequena, Délzia veio com a família para Porto Alegre. Em 1953 casou com Jorge Alberto Rocha Lemos, e teve seis filhos, sendo que o mais novo, Sandro Gonçalves Lemos, 45 anos, nasceu onde hoje se encontra o Quilombo Lemos, ao lado do asilo Padre Cacique, no bairro Praia de Belas.
Após a morte de Jorge, em 2008, a instituição pediu para a família deixar o terreno, iniciando um processo que se arrasta há mais de uma década. “Eles nunca reivindicaram a área, mais de 50 anos e nunca reivindicaram. Só após o falecimento do meu pai eles fizeram. Foi meu pai que construiu a casa, com meus irmãos mais velhos, meus tios e vizinhos", conta Sandro, representante do Quilombo Lemos.
Em 2018, o Quilombo Lemos sofreu um processo de reintegração de posse, por parte do Asilo Padre Cacique. Após intensa mobilização da família e apoio de entidades e movimentos sociais, a reintegração foi suspensa pela Defensoria Pública do Estado, por não cumprir protocolos. No mesmo ano, um relatório antropológico, feito pelo Núcleo das Comunidades Indígenas e Minorias Étnicas – Nucime, da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul - Ministério Público Federal (MPF), que remonta e legitima a autodefinição da comunidade referida.
"Neste sentido, existe uma relação de consanguinidade e de parentesco por extensão entre a Comunidade de Maçambique e a Comunidade Família Lemos, o que significa, em outros termos, que o vínculo de pertencimento social à identidade quilombola auto atribuído pela Família Lemos é inegável. Assim, os próprios membros da Família Lemos possuem objetividade ao declarar seus vínculos familiares no Quilombo de Maçambique”, aponta o Relatório Antropológico.
No dia 20 de novembro, deste ano, dia da Consciência Negra, uma desembargadora da Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) determinou a reintegração de posse do Quilombo Lemos. Segundo o advogado do Quilombo Lemos e da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, Onir Araújo, o pedido de reconsideração foi negado pela desembargadora. E no momento se está no aguardo sobre o pedido de reconsideração que será feito pelo MPF. “Nosso prazo para contra razões ao Agravo será dia 15/12, já estamos trabalhando na mesma, mas, aguardaremos a posição sobre o pedido do MPF", destaca Onir.
O Brasil de Fato RS conversou com Sandro sobre a história do Quilombo, da situação pela qual vem passando. Ao fim da entrevista, segue a Carta Aberta feita pelo Quilombo e divulgada neste final de semana.
Brasil de Fato RS - Para começarmos gostaria que nos falasse um pouco da história do quilombo?
Sandro Lemos - A história do quilombo começa lá em Canguçu, no Quilombo do Maçambique, onde nasceram minha bisavó, avó e minha mãe. Minha mãe cresceu nesse quilombo, que em 2009 foi reconhecido pela Fundação Palmares, já passou por todas as etapas no Incra, já está titulado. Minha mãe veio ainda pequena para Porto Alegre, com sete, oito anos. Minha vó havia ficado viúva, tinha perdido dois filhos homens, e ela veio para Porto Alegre para poder trabalhar.
Em 1953 minha mãe, Délzia Gonçalves de Lemos, casou com o meu pai, Jorge Alberto Rocha Lemos. Quando meu pai começou a trabalhar no Asilo Padre Cacique, ele morava pra fora, bem afastado, na Lomba do Pinheiro, no passo da Taquara. Como era muito longe eles vieram para aquela área do lado do asilo onde vivemos até hoje. Esse terreno não era, nunca foi do asilo, o asilo só ocupava a área do prédio, como hoje ainda, e meu pai construiu a casa aqui, constituiu família. Eu nasci aqui no quilombo. E temos sim descendência quilombola. Quando meu pai veio para cá não tinha a FASE, não tinha o Beira-Rio. Era uma terra de ninguém, uma terra improdutiva. Em seguida, meu pai constituiu família com minha mãe.
A família quilombola Lemos tem cerca de 60 pessoas, mas vivendo atualmente aqui são 25, justamente por causa do processo, que lá quando meu pai faleceu em 2008, o asilo entrou com o pedido de reintegração e a gente ficou impedido de arrumar as casas e fazer construções. E minhas irmãs tiveram que sair porque a família foi crescendo e não podia construir nem melhorar as casas. Com o declínio da Justiça Federal a gente pode arrumar as casas, só que agora veio essa decisão da desembargadora, o que nos impede novamente de arrumar as casas e consequentemente o resto da família voltar a morar aqui.
BdFRS - Já faz algum tempo que o quilombo vem enfrentando essa questão da reintegração. Como está a situação agora? Que medidas estão sendo tomadas?
Sandro - Desde 2008 estamos enfrentando esse processo de reintegração, onde tínhamos outros advogados que infelizmente não levaram em questão algumas coisas e ai trocamos o nosso jurídico para a Frente Quilombola. E estamos a 12/13 anos nessa situação. Já passamos por uma quase reintegração e conseguimos segurar, e agora novamente. Estamos tentando, com tudo que cabe a nós para tentar reverter a situação, que a desembargadora tenha o bom senso que estamos em uma pandemia, que o Incra tem que terminar seu laudo antropológico. É isso que queremos que se leve em consideração.
Não é surpresa esse processo, estamos situados em um bairro que fica perto da orla do Guaíba, onde tem interesses imobiliários e o quilombo fica no meio dessa disputa.
BdFRS - Na carta que o quilombo divulgou nesse final de semana vocês falam em informações falsas, que tipo de informações seriam essas?
Sandro - São várias inverdades, como a que dizem que meu pai era zelador. Meu pai nunca foi zelador, meu pai fazia tudo, menos zeladoria, ele fazia serviços gerais, ia no banco recolher a aposentadoria dos idosos entre outros serviços.
Outra inverdade é dizer que meu pai pagava aluguel, nunca pagamos aluguel até porque eles nunca reivindicaram a área, mais de 50 anos nunca reivindicaram a área, só após o falecimento do meu pai eles fizeram. O asilo diz que essa casa foi cedida por eles, não é verdade. Foi meu pai que construiu a casa, com meu irmãos mais velhos, meus tios e vizinhos.
BdFRS - Essa semana se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos. O direito à moradia, e consequentemente a questão dos territórios quilombolas, são garantidos na Declaração Universal. Como tu vês a situação pelo qual passa o país nesse sentido?
Sandro - A questão da moradia também entra nessa pauta. A gente sabe que em nível nacional áreas quilombolas e indígenas não são levadas em consideração. Estamos na Capital mais segregada do país onde a gente sabe como é forte a descendência europeia. E a gente conta com o bom senso das autoridades, que a gente só quer que eles levem em consideração a questão da pandemia, eu estou com a covid, meu irmão e outra irmã minha que também deu positivo, meu cunhado também.
E também que levem em consideração a questão do Incra, que mesmo o Incra dizendo que não tem recurso, que o governo federal não lhe deu recurso, eles não têm o efetivo de funcionários para fazer o trabalho de campo, a gente quer que seja feito esse trabalho de campo mesmo que demore. Para nós é imprescindível que o Incra faça esse trabalho. Essas são as nossas reivindicações e a gente conta com o bom senso das autoridades, que eles repensem e levem em consideração todos esses fatos.
O cenário é de apreensão, temos reintegração aqui em Porto Alegre, na Ponta do Arado, temos reintegração também em São Luiz, duas comunidades, e uma no sul da Bahia, todas vinculadas ao interesse da especulação imobiliária, e mais Alcântara. Todas estão interligadas. Estamos em alerta sempre, infelizmente a justiça não nos dá nenhum tipo de amparo. Então temos que lutar por si só com a ajuda dos apoiadores.
BdFRS - Qual o significado que o quilombo tem?
Sandro - O quilombo religa a nossa história, é onde temos os laços maternos, de ancestralidade. Onde aprendemos a viver em comunidade, que nos foi passado de geração a geração, e que a gente pretende que os mais novos tenham esse lugar para continuar suas vidas, da mesma maneira que nos foi ensinado pela minha bisavó, minha avó, minha mãe, que foram pessoas guerreiras, que sempre lutaram pelo bem da família, sempre com união e trazendo os valores que é do bem viver em comunidade.
Carta Aberta do Quilombo Lemos
Nós do Quilombo Lemos queremos expressar nossa preocupação com diversas informações falsas que estão sendo publicadas sobre nossa comunidade. Reforçamos nosso DIREITO ao autorreconhecimento quilombola, parte do processo de titulação estabelecido pela Fundação Palmares.
Os mais antigos na nossa Família têm sua origem no Quilombo do Maçambique, localizado em Canguçu- RS e precisaram migrar do seu território original para o local que hoje denominamos Quilombo Lemos. A casa onde moramos foi construída pelo nosso pai Jorge Alberto Rocha de Lemos e pela nossa mãe Délzia Gonçalves de Lemos, sem nenhuma ajuda de qualquer instituição ou reivindicação sobre a área. Alegam o pagamento de aluguel “simbólico”, que seria descontado de folha de pagamento mensal, uma mentira que pode ser facilmente comprovada.
Já é de amplo conhecimento que a Constituição Federal de 1988, por meio do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, concedeu a garantia do direito de regularização, demarcação e titulação definitiva dos territórios ocupados pelos remanescentes de quilombos. Em 20 de novembro de 2003, promulgou-se o Decreto n° 4.887, que regulamentou o procedimento para a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes dos quilombos de que trata o artigo constitucional referido, transferindo esta competência ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Como já informamos antes, a UFRGS, através do curso de Geografia e o NEGA - Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente, realizou a cartografia social do Quilombo Lemos onde aponta as origens quilombolas da Família Lemos.
Existe também um Relatório Antropológico produzido pelo Ministério Público Federal, através do Núcleo das Comunidades Indígenas e Minorias Étnicas, que remontam e legitimam a Autodefinição da Comunidade quilombola Família Lemos.
Estes estudos demonstram a veracidade de nossas afirmações e ressaltam nossa ligação com o território, com nossa identidade quilombola, com nossa ancestralidade e com o Quilombo de Maçambique. Convidamos, a quem quer que seja, a conferência destes materiais, visando escurecer dúvidas relacionadas a isso.
O despejo da família nesse momento inviabiliza o cumprimento da determinação judicial para que o INCRA realize o Laudo Antropológico do território. Esse documento verifica a tese da família e é parte essencial do processo. Além disso, é necessário considerar-se a situação de pandemia COVID-19, situação que gerou uma orientação do Supremo Tribunal Federal para que não aconteça desocupação de áreas, devido ao risco para a vida as pessoas.
Mesmo assim, estamos convictos que nossos recursos judiciais serão considerados e temos fé que a Justiça há de permitir a finalização do trabalho do INCRA, como determina a constituição. Seguimos acreditando que a nossa luta vai vencer o racismo estrutural que torna coisas banais como ir ao supermercado com a esposa, brincar no portão de casa, soltar pandorga e pipa, fazer uma reforma na laje de casa, pegar um ônibus para o trabalho ou pegar filhos e filhas no colégio em risco fatal e que nos persegue há mais de 520 anos. O território, hoje objeto da ganância, é nossa vida e a reconstrução de nossa liberdade.
Nesse momento, novamente, pedimos a participação da comunidade em divulgar a nossa história, pois só a partir do conhecimento é que podemos vencer esses tempos tão difíceis.
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Edição: Katia Marko