Passa boi, passa boiada…
Há alguns anos - mais especificamente 2013 - eu lembro de ver as imagens do Mercado Público de Porto Alegre em chamas. Lembro de ter ficado chocada com a imensidão do que representava o coração da cidade virando cinzas.
Lembro de vir na minha mente todas as histórias do meu avô, poucos locais me lembram tanto ele quanto o grande mercado, e o engraçado é que eu acho que nunca cheguei a ir lá com ele. Minha professora de História da Educação explicou que isso ocorre porque o espaço é um "evocador de memória". Esse é o seu papel, nos fazer lembrar. Eu lembro de ter ficado chocada e de ter pensado "como que puderam deixar chegar nesse ponto?".
Lembro de pouco tempo depois - em 2015 - ver as notícias do incêndio do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. O museu reconstituía o percurso da língua portuguesa, africana e ameríndia até como a conhecemos hoje no Brasil. Lembro que as notícias me remeteram diretamente para o Mercado Público, lembro de ter pensado "como pode isso de novo?!".
Na época essas notícias me deixavam "somente" chocada pela dimensão da tragédia e indignada enquanto cidadã que possui noções mínimas sobre a importância da cultura. Mais tarde, em 2018, já universitária, enquanto futura pesquisadora, fiquei devastada com a notícia do incêndio no Museu Nacional. Lembro de não ter tido coragem de ver as imagens. Lembro de ter ficado devastada pelo retrocesso em 200 anos da história nacional. Devastada pela desvalorização da pesquisa brasileira e pela negligência. Devastada pelos colegas e profissionais que dedicaram meses e anos desenvolvendo estudos que se perderam no incêndio e que, por desespero, se arriscaram em meio as chamas para tentar salvar parte do trabalho.
Agora, em 2020, as chamas queimaram na Amazônia e no Pantanal. Mas o anti-ministro Ricardo Salles não podia deixar encerrar o ano sem, à sua maneira, demarcar seu compromisso com a destruição do nosso patrimônio ambiental, do nosso patrimônio cultural e do nosso patrimônio histórico. Ontem, domingo (6), Salles resolveu deixar divulgar por meio da coluna de Lauro Jardim, do jornal O Globo, que pretende concessionar o Museu do Meio Ambiente. Transformar o primeiro museu da América Latina, referência internacional da área, dedicado exclusivamente a estudos socioambientais, em um "hotel-boutique". Entregar um espaço de produção de ciência, de conhecimento, de interesse público, nas mãos da iniciativa privada para que seja cobrado pela experiência “vintage” de passar uma ou duas noites em um prédio do século XIX. Quis ainda deixar avisado que o ministro tem planos de fazer o mesmo “Brasil a fora”.
Se buscarmos uma definição simplificada da palavra “Museu” no dicionário podemos encontrar: “instituição dedicada a buscar, conservar, estudar e expor objetos de interesse duradouro ou de valor artístico, histórico etc.” O resgate da memória nos fornece ferramentas para refletirmos sobre o nosso tempo, projetando assim o futuro. Por que será então que o atual governo parece ter ojeriza a tudo que remeta a estes espaços? Vide a frase proferida por Bolsonaro no episódio do museu nacional: 'Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê?'
O menosprezo naquela fala do presidente, impressa no sucateamento e falta de repasse de verbas para as instituições, denuncia a negligência e o abandono. O Salles, por sua vez, não contente em fazer cumprir sua promessa da reunião ministerial do dia 22 de abril, que tomou os noticiários, de fazer “passar a boiada”, sobre nossas florestas, por meio da flexibilização de leis ambientais, agora quer também fazer passar sobre nossa história. E se na época já não havia dúvidas, agora mais essa ação do anti-ministro evidencia a perseguição e projeto de destruição de toda a forma de produção de conhecimento e, mais ainda, de resgate histórico.
Darcy Ribeiro dizia que "a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto." Pois bem! Apagar nossa história também não é um acidente! O apagamento da memória coletiva é um projeto, assim como a dilapidação do patrimônio público também o é.
Finalizo com o trecho da nota de 2018 da Sociedade Brasileira de Arqueologia sobre o incêndio no Museu Nacional: "Um país que não valoriza sua memória e seu patrimônio cultural está fadado à desgraça, ao atraso, à dominação e o seu povo a não saber de onde veio, quem é e para onde deve caminhar rumo à construção de um país mais solidário, justo e feliz."
Rumo à construção de um país mais solidário, justo e feliz. Tudo o que eles não querem. Sim! É por isso que eles odeiam os museus.
* Maria Eduarda Carneiro da Silva é bacharela em Ciências Sociais pela UFRGS e mestranda em Estado Gobierno y Políticas Públicas pela Flacso
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Edição: Marcelo Ferreira