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Artigo | Bacurau e Porto Alegre, o filme da vida real

Relacionado à economia política, o filme escancara a violência que existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Bacurau cria conexões com a realidade brasileira, como a banalização e glamorização do uso de armas, a relativização da violência, a comemoração ao acertar um “alvo” humano - Reprodução

Não acredito em coincidências, e sim em necessidade objetiva de ter assistido o filme Bacurau no dia 30 de Novembro de 2020 em TV aberta. Bem no dia seguinte que perdemos a eleição, e necessitava fazer uma reflexão inicial sobre a realidade brasileira e o resultado das eleições em Porto Alegre.
 
Uma das características importantes da arte é sua capacidade de ser a alma de uma época, o sinal de um tempo, um registro histórico. Bacurau cria conexões com a realidade brasileira, como: a banalização e glamorização do uso de armas, a relativização da violência, a comemoração ao acertar um “alvo” humano. É como se a necropolítica vigente estivesse ainda mais legitimada. São os duros tempos que vivemos no Brasil pós-golpe de 2016.
 
Esta segunda-feira foi um dia muito intenso, onde o sentimento de derrota rondou nossos corações, e ao mesmo tempo a certeza de termos trilhado o caminho da boa política, onde o campo democrático se unificou em nome de um projeto focado no diálogo, na participação popular, nas realidades dos territórios, na vida e necessidades concretas das(os) trabalhadoras(es), das mulheres, idosas(os), das crianças, da juventude, das pessoas com deficiência, das(os) negras e negros, da população LGBT, enfim, de todas e todos as(os) moradoras(es) de Porto Alegre que acalentaram o sonho e a esperança de melhorarmos nossas vidas, com políticas públicas de qualidade, e termos uma Porto Alegre democrática, livre do fascismo e boa para toda a gente.

Não foi possível rompermos este ciclo de atraso, de violência institucional, de assédio moral, de terceirizações, privatizações, de perseguições e criminalização dos(as) servidores(as) públicos, do medo que vivemos no último período em nossa cidade.

Como disse Jandira Feghalli, deputada federal PCdoB/RJ, Manuela enfrentou a guerra mais suja e desqualificada de todo o país. A vitória do campo conservador, reacionário, da extrema direita e centro direita que produziu ataques misóginos, machistas, violentos e covardes, que apostou no poder da desinformação, do medo, das fake news, reafirmando  a manutenção da ordem patriarcal, através da instrumentalização da política do ódio e do medo, onde os arranjos das forças conservadoras de forma virulenta e cruel além de cometerem violência de gênero, forjaram pesquisas e enganaram o povo.

Mas parafraseando Pepe Mujica: “Os(as) únicos(as) derrotados(as) são os(as) que baixam a cabeça, os(as) que se resignam...” Mais de 45% do povo de Porto Alegre votou no campo democrático e popular, demonstrando que o sentimento democrático pulsa forte em uma parcela muito expressiva da população, e sem dúvidas: A resistência e a luta vão prosseguir sempre!

Passo a seguir, para algumas reflexões sobre o filme Bacurau, que considero dialogar com a realidade do Brasil, do nordeste e sem dúvidas da nossa cidade. Como todas(os) sabem existem muitos bolsões de miséria em diversos territórios de Porto Alegre, onde falta comida, emprego, água, medicamentos, dignidade, saneamento básico, acesso a creche, educação, saúde, moradia, transporte, cultura, enfim, onde o descrédito da política faz com que milhares de pessoas não acreditem mais nas políticas de Estado, já que se encontram a margem da sociedade, sobrevivendo e para tal, criando regras e normas sociais de proteção, já que as políticas públicas de proteção social inexistem para suas famílias e comunidades.

Uma cidade tomada por inesperados inimigos munidos de arrogância e um curioso senso de propriedade privada. “Nada justifica melhor a condição burguesa do que acreditar que se merece ocupá-la”, enquanto isso, os moradores de Bacurau vivem numa comunidade solidária, horizontal e democrática, tendo aprendido a desaparecer quando necessário, a transformar sua invisibilidade em força e estratégia, desde o encontro com o prefeito até as cenas finais.
 
Considero importante destacar o aspecto de como as instituições se organizam em Bacurau, já que os aparelhos repressivos do Estado exercem o controle através da violência, como a polícia e o exército, os aparelhos ideológicos do Estado exercem o controle através da ideologia.
 
Entre eles, podemos citar a escola, a família, a igreja, os meios de informação e o sistema político. E a vida em Bacurau não é livre desses aparelhos ideológicos, mas é bastante interessante como eles são organizados de forma muito mais orgânica.
 
A escola, por exemplo, que vemos na figura do professor Plínio (Wilson Rabelo), é acolhedora, participativa e atualizada. O professor leva os(as) alunos(as) a atividades externas, mas não dispensa o uso da tecnologia, como quando usa o tablet para procurar Bacurau no mapa. De forma emblemática, acaba tendo que usar o mapa físico, de papel, para mostrar aos alunos(as) que Bacurau existe sim, em uma lição que mostra que a tecnologia tem de ser usada, mas a ancestralidade de um povo nunca deve ser abandonada. É a escola que ensina a visão crítica. Como diz a frase de Paulo Freire, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor". Em Bacurau, a educação é libertadora.
 
A visão crítica também fica explícita na cena em que Plínio e Domingas dispõem em uma mesa todas as “doações” feitas para a cidade. Ali, é explicado aos cidadãos e cidadãs os efeitos dos reguladores de humor, e a data de validade dos alimentos. Mas acima de tudo, é dada a autonomia aos cidadãos e cidadãs para que peguem o que forem usar, com consciência e solidariedade.

Importante destacarmos as diferentes organizações de famílias, e podemos citar como exemplo o relacionamento homoafetivo de Domingas, e a “família” das profissionais do sexo. Quanto à igreja, ficou explícito no filme que nunca esteve fechada, representando que nenhuma religião seria proibida, está sempre aberta para quem tiver necessidade. E o uso dos psicotrópicos também traz a questão da religiosidade ancestral, através dos rituais que ampliam a consciência.

Os meios de comunicação e informação, por sua vez, são representados pelo carro de som do DJ Urso (Jr. Black), e pela mulher trans Darlene (Danny Barbosa), que atua como uma guardiã da cidade, fazendo o papel de avisar qualquer movimentação estranha em sua entrada. Ou seja, uma posição de extrema importância e confiança. Bacurau transborda respeito às diversidades, a laicidade e a convivência solidária.

O sistema político, no entanto, é mais difícil de ser desconstruído. É representado na figura de Tony Jr. (Thardelly Lima), que só aparece na cidade para pedir votos, entregar migalhas, despejar de um caminhão de lixo os livros para a biblioteca, e de forma cruel vender a cidade para a diversão sádica dos estrangeiros, que imaginavam não terem nenhuma resistência dos moradores e moradoras.

Quando relacionamos o filme à economia política, ele escancara a violência que existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos aqueles(as) que, nunca foram sujeitos de direitos, e nem têm acesso aos serviços públicos e nem tão pouco ao mercado de trabalho, podendo a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico.

Bacurau explicita a violência do capital que ronda as vidas de trabalhadoras(es), desempregadas(os), as mulheres, os negros(as), os indígenas, camponeses(as), favelados(as) ameaçados(as) pela especulação imobiliária, profissionais do sexo, travestis, LGBTs, violências institucionais que são provocadas pela polícia, pela milícia e pelo Estado.

É a violência através da qual o sistema capitalista se expande e se defende; aquela que se manifesta na busca por mão-de-obra e natureza baratas, nos processos de acumulação primitiva e na gestão das populações desempregadas, miseráveis, aposentados(as).

Esta violência não é uma ficção; ela está acontecendo neste exato momento em alguma terra indígena, no nordeste, nas periferias de Porto Alegre, nos grandes centros urbanos, em muitos lugares, onde as pessoas se tornam “invisíveis” para o Estado e para a sociedade.

Surpreendentemente, parece mais fácil aceitarmos a violência do colonizador, que vem preparado e equipado, do que a violência do colonizado, que luta com as armas que tem.

Os discursos de Trump e Bolsonaro na ONU explicitaram que o negacionismo climático não é burrice, mas a aposta de setores que já assumiram que a manutenção de suas condições atuais de vida tornou-se incompatível com a sobrevivência da grande maioria, e que nesta fase do capitalismo, ele não dá mais para todo mundo. “Uns” precisam morrer.

O filme Bacurau, representa a perda da identidade de um país perante o imperialismo estadunidense. A violência retratada no filme, mostra um lugar onde não existe a presença do Estado, e portanto, a comunidade se organiza para (re)existir, mesmo que não exista no mapa. O povo de Bacurau é o protagonista da história.
 
E sobre Porto Alegre, sugiro seguirmos construindo a unidade das esquerdas, do campo democrático e popular, dos movimentos sociais, sindicais, culturais e todas e todos que defendem a democracia. Além disso, fazermos formação política e muito trabalho de base para juntas(os) elevarmos a consciência de classe, acumulando forças para as batalhas que virão.

Como diz a canção de Geraldo Vandré: “Vem vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” 

Vida longa para Bacurau!

* Feminista, mestranda em Políticas Sociais da UFRGS

Edição: Katia Marko