Rio Grande do Sul

Racismo

Justiça para o "homem errado" nunca chegou

Família de Júlio César, morto pela BM em 87, não foi indenizada pelo governo Simon nem viu culpados pagarem pelo crime

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Cena do filme “O Caso do Homem Errado”, produzido por Camila de Moraes, que conta a história de Júlio Cesar - Divulgação

Júlio César de Melo Pinto saiu de sua casa para ir ao supermercado, e não voltou mais. Foi morto por policiais que o "confundiram" com um assaltante. Júlio se encaminhava para um mercado ao mesmo tempo em que ocorria um assalto nesse estabelecimento: os assaltantes fizeram reféns e, com aglomeração de curiosos do lado de fora, tentaram sair e se confrontaram com a polícia. Júlio César, que tinha um histórico de ataques epiléticos, passou mal e foi "identificado" pelos que estavam no local como um dos assaltantes. Os policiais o agarraram, bateram e colocaram na viatura, sem nenhum tipo de indício ou prova que indicasse seu envolvimento com o assalto. Não chegaria vivo ao hospital, cerca de meia hora depois. Foi julgado e condenado à morte pelos policiais e acusadores, assim como, mais de 30 anos depois, foi morto João Alberto

Teria sido mais um caso de violência policial no Brasil, não fosse o fato de tudo ter sido registrado por um fotógrafo do jornal Zero Hora. Ronaldo Bernardi estava no local cobrindo o assalto e fotografou Júlio inconsciente e ensanguentado ser colocado ainda com vida dentro da viatura da Brigada Militar. Imediatamente, o fotógrafo se encaminhou para o Hospital de Pronto Socorro para conferir a chegada de Júlio César. Os policiais chegaram no HPS cerca de meia hora depois de saírem do mercado e Bernardi pôde registrar o corpo de Júlio, sem vida, com dois tiros. 

Naturalmente, o caso foi motivo de revolta entre seus amigos e familiares. Devido ao fato de ter sido registrado, ainda em um tempo onde não era tão fácil haver registros de foto e vídeo, por exemplo, houve a possibilidade de uma campanha pública de cobrança por justiça. E também por Júlio ser ativo no movimento negro do estado. O caso até hoje é usado como exemplo de uma manifestação concreta do racismo do país. O caso também ficou registrado para a história, em detalhes, a partir de um documentário produzido pela cineasta Camila de Moraes.

Apesar de toda a mobilização do movimento negro do RS e da família e amigos de Júlio César, a justiça nunca chegou. Maria Sebastiana, mãe de Júlio César, chegou a cobrar publicamente em audiência o governador da época, Pedro Simon (PMDB). A viúva de Júlio, só soube do fato dias depois, precisando ela mesma buscar informações sobre seu companheiro desaparecido.

Segundo a matéria do Portal Geledés: "Os tenentes da BM João Luis Clavíjio e Sérgio Luiz Borges foram condenados a 14 anos em primeira instância e recorreram. Os cabos da BM Paulo Souza Melim e Carlos Ribeiros dos Santos; os soldados da BM João Carlos da Rocha, Dair Osvaldo de Freitas, Volmir Gambarra e Jorge Jesus Gomes foram condenados a 12 anos em primeira instância e foram expulsos da corporação. Doze policiais foram condenados em primeira instância, porém todos eles recorreram em liberdade. No final, apenas um oficial, o Sérgio Luís Borges, cumpriu pena".

A reportagem do Brasil de Fato RS contatou Juçara Pinto e conversou sobre o fato, sobre as medidas tomadas pelo Estado em relação ao assassinato de seu companheiro. Desde já, agradecemos sua atenção em falar conosco.

BdFRS - Sobre o recente caso de João Alberto, tu enxergas alguma semelhança com o que ocorreu com o Júlio César?

Juçara Pinto - Em relação a ambos os casos, vejo semelhança na forma de abordagem dos seguranças e do policial envolvido no caso, totalmente não profissional. Vejo semelhança, pois João Alberto não foi conduzido à prisão. Assim como Júlio, foram "condenados" sem nem sequer ter direito à defesa. Os dois tiveram uma sentença imediata apenas pelo tom de pele. No caso do Júlio ele foi acusado de ser um assaltante por ser negro, sem nem identificá-lo, e no caso de João vemos tentativas de justificar o ato feito pelo envolvidos.

BdFRS - Fizemos uma pesquisa e encontramos que 12 policiais foram responsabilizados na Justiça pelo assassinato do Júlio. Todos foram condenados em primeira instância e apenas um cumpriu pena, os outros responderam em liberdade. Queria confirmar contigo se isso procede e se essas condenações te trazem algum sentimento de justiça.

Juçara - Para mim não sinto como se a justiça tivesse sido feita, os acusados do caso foram condenados, mas não cumpriram suas devidas penas. Não posso afirmar com propriedade o tempo de pena que foi cumprido, pois após a sentença não acompanhei suas trajetórias. O que posso afirmar é que um dos tenentes, verdadeiro culpado pela ordem de execução de Júlio, foi absolvido.

BdFRS -  A mãe do Júlio cobrou publicamente o governador do estado na época, Pedro Simon. Em algum momento, o governo propôs algum tipo de reparação ou indenização? De fato, foi concretizada algum tipo de reparação ou indenização?

Juçara - Na época tivemos sim uma audiência com o governador, onde Dona Sebastiana [mãe do Júlio] cobrou que a justiça fosse feita e questionou o motivo da polícia dele ter feito isso com seu filho. Em momento algum o Estado ofereceu algum tipo de reparação ou indenização, pelo contrário, após algum tempo foi feito um processo de pedido de indenização aonde o Estado sempre recorreu.

BdFRS - Muitas pessoas no Brasil e em diversas partes do mundo estão se mobilizando contra o racismo. É possível afirmar que existe uma continuidade histórica entre as lutas do movimento negro da época do Júlio com a atual?

Juçara - Acredito que sejam épocas diferentes, e podemos dizer que a luta em si continua, porém hoje temos facilidade em comunicação e divulgação, coisa que na época do caso Júlio César era bem precária, pois até telefone era raro. Atualmente podemos dizer que as pessoas estão mais intolerantes ao racismo, não deixando situações mesmo pequenas passarem despercebidas e impunes.

O que eu vejo é que após 33 anos no caso do Júlio, muitas outras situações de racismo continuam se repetindo de alguma forma. O que eu quero ressaltar é que a verdade sempre prevalece, prova disso, é que no documentário do Júlio vários depoimentos contavam a mesma história após tantos anos do ocorrido, diferente dos acusados que em várias vezes questionados, se contradiziam, como está acontecendo no caso do João Alberto.


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Edição: Katia Marko