Atitudes violentas como a que levou João Alberto Silveira Freitas à morte não são casos isolados no Carrefour – e muito menos acidentais. Uma cliente, uma funcionária e uma juíza relatam ter sofrido, presenciado e julgado casos de agressões e racismo na rede francesa de supermercados.
Em 2018, dois anos antes de João Alberto Silveira Freitas ser assassinado por seguranças da unidade do Carrefour no Passo D’areia, a publicitária Regina Ritzel Ferreira, 37 anos, negra, foi acusada de furto e humilhada por seguranças do hipermercado no bairro Partenon, na zona leste de Porto Alegre.
Regina foi fazer compras acompanhada das duas filhas, uma de sete e outra de 17 anos na época. “Meu telefone tocou, abri a bolsa para atender a ligação e depois guardei meu telefone novamente. Passei no caixa, paguei minhas compras, peguei a nota, saí do supermercado e, no estacionamento, fui abordada por trás por dois seguranças que me pegaram pelo braço”, lembra. Os vigias conduziram a cliente para uma salinha, onde cerca de seis seguranças a coagiram a ficar seminua. “Eles falaram que eu tinha roubado um produto. Minhas filhas começaram a chorar desesperadamente enquanto eu era obrigada a tirar a roupa”, contou. “Depois constataram o equívoco e pediram desculpas. O gerente teve o desplante de perguntar se eu queria alguma coisa do mercado, mas o tempo todo fui humilhada e constrangida”. Hoje a Rayssa, filha mais nova de Regina, tem receio de entrar em qualquer mercado – e a família não vai mais ao Carrefour.
Em setembro de 2019, a justiça condenou o Carrefour a pagar R$ 35 mil à Regina e às filhas em indenizações por danos morais. Na decisão, a juíza Nelita Teresa Davoglio deixa em evidência que o caso não foi isolado. “Há mais de 12 anos, jurisdiciono o 1º Juizado da Vara Cível do Foro Regional do Partenon e, durante todos esses anos, sempre existiram demandas contra o réu motivadas pela atuação de seus seguranças, os quais, a pretexto de vigiar o patrimônio do réu, cometem abusos contra consumidores, sem que o réu tome qualquer medida para diminuir a incidência desses atos ilícitos.” A rede de supermercados recorreu da decisão e ainda não pagou a indenização.
A “salinha” a que a publicitária se referiu é conhecida também pelos funcionários do Carrefour do Partenon. Uma funcionária ouvida pelo Matinal contou ter presenciado diversos atos de violência por parte de seguranças terceirizados ao longo dos quatro anos em que trabalha no estabelecimento. “Teve o caso de uma guria que roubou um desodorante. Ela saiu da salinha com o nariz sangrando e o braço também. Eles a torturaram com um alicate”. Segundo a funcionária, a sala onde levam as pessoas para serem espancadas e humilhadas fica em um acesso restrito para funcionários, perto da entrada do hipermercado. “Ali guardam barra de ferro e outras coisas. Teve um dia que a gente ouviu uns gritos, gritos, gritos. Foi horrível”, contou sentada em um meio-fio durante seu intervalo no Dia da Consciência Negra, um dia após João Alberto ser assassinado na saída da unidade do Passo D’areia. “Acho impressionante que tenha tanta gente comprando aqui hoje, inclusive pessoas negras. Não sei se acompanharam o que aconteceu”, disse.
O Matinal questionou o Carrefour sobre os relatos de tortura nas dependências dos seus estabelecimentos. No dia em que fomos à filial no Partenon, o líder do caixa, Murillo Romero, negou que lá ocorressem agressões: “Não tem salinha nenhuma, isso é tudo fake news”. Em nota protocolar enviada à imprensa, a rede alegou que “o Carrefour repudia todo e qualquer ato de violência, intolerância e discriminação”. Na última sexta-feira, a empresa afirmou que vai romper o contrato com o grupo Vector Segurança, responsável pela vigilância nas duas lojas de Porto Alegre.
No domingo, o pastor João Batista Rodrigues Freitas, o pai do “Beto”, disse ter recebido um telefonema do presidente do Carrefour, Alexandre Bompard, que falou com ajuda de intérprete. “Ele pediu desculpas e disse que estaria à disposição para qualquer coisa que a gente precisasse”.
Histórico de agressões
De acordo com a funcionária do Carrefour do Partenon, o discurso violento não cessou mesmo no dia seguinte ao assassinato de João Alberto: “Mais cedo estava lá no refeitório e ouvi um segurança dizendo ‘eu bato mesmo, chamo a polícia, mas eu sei como bater, eu sei onde bater’. Achei ridículo isso”, disse.
Um guardador de carrinhos que trabalha na mesma unidade e preferiu não se identificar confirmou a recorrência de agressões, mas não quis dar detalhes por medo de perder o emprego. “Já devem ter chegado [até vocês] alguns comentários sobre pessoas que talvez tenham sido agredidas, mas eu não posso falar. O que posso dizer é que estou muito triste, comovido [pelo caso do João Alberto]. Eu achei que foi muita truculência”.
Em outras partes do Brasil, o Carrefour também tem histórico de agressões, racismo e tortura. Em uma thread no Twitter, a juíza Cristiana de Faria Cordeiro descreveu o caso de uma mulher negra presa por furtar comida numa filial do Rio de Janeiro: “Ela foi levada para uma salinha onde foi brutalmente espancada com um pedaço de madeira, inclusive. Não teve coragem de nos contar o mais cruel, e só falou para a psicóloga que a atendeu antes de ser liberada: foi sodomizada, estuprada, como ‘lição e castigo’.” Cristiana ainda relembrou que a mulher chegou à audiência de custódia com um curativo no ânus. “Desde então, não consigo entrar num Carrefour”, escreveu a juíza.
Em 2009, um grupo de seguranças do Carrefour de Osasco, São Paulo, espancou o vigilante Januário Alves de Santana após acusá-lo de roubar o próprio carro. Um dos funcionários disse que era “impossível um neguinho ter um EcoSport”. Januário levou coronhadas e socos, perdeu um dente e precisou passar por uma cirurgia.
Íntegra da nota do Carrefour:
“O Carrefour repudia todo e qualquer ato de violência, intolerância e descriminação. Nós temos valores muito fortes que vão contra este tipo de atitude e é nosso papel reforçar, cada vez mais, nossos treinamentos e sensibilizações com todos os nossos colaboradores e prestadores de serviços para que episódios como estes não voltem a se repetir. Temos uma missão muito forte pela frente de não só estabelecer regras e reforçar nossos valores, mas também de sermos uma empresa que luta, cada vez mais, contra o racismo.”
*Colaborou Naira Hofmeister
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Edição: Matinal News