Quem paga mais impostos no Brasil? Em geral, é essa a pergunta mais comum quando se trata de tributação. Mas a verdadeira questão é: quem não está pagando? Conhecer a forma como tributamos são elementos-chave nesse contexto. O tema tributário está na ordem do dia, ainda mais instigado pela taxação das grandes fortunas aprovada na Câmara Federal da Argentina nessa semana.
Cada vez que se inicia um debate sobre tributar as mais altas rendas e o patrimônio, enfim, as grandes fortunas, surgem as surradas justificativas contrárias: é muito complicado cobrar, não é tanta gente, não vale a pena; precisamos cobrar de quem ganha R$ 10 mil - nesta faixa teremos o retorno necessário; precisa entregar o dinheiro direto à população (o tal “voucher”); o dinheiro vai escapar do país... E assim segue.
Além de serem argumentos que não se sustentam, devemos levar em conta que o sistema tributário não se pauta somente pelo resultado econômico, se arrecada o suficiente ou não. Ele precisa ser aceito socialmente por um princípio de justiça fiscal, independentemente do volume de arrecadação.
Se existem poucas pessoas que possuem jatinhos, helicópteros, iates e lanchas, não vale a pena cobrar IPVA destas? Claro que vale! Por que o caviar, sendo um artigo de luxo, deve ser mais tributado se é consumido por poucos? Por ser mais justo! Justiça fiscal, essa é a questão fundamental. Quanto mais injusto o sistema, mais se legitima o deslocamento da carga para os mais pobres, o não pagamento espontâneo dos tributos, a sonegação.
Cobrar mais imposto de renda de quem tem mais a contribuir, assim como tributar o patrimônio excedente, as propriedades rurais - que até hoje quase não contribuíram, cobrar mais dos setores altamente lucrativos - como bancos (basta ver os resultados deste setor, na pandemia, inclusive), são medidas que contribuem para uma arrecadação mais justa, que onera mais quem pode mais.
Para entender quem não está pagando o que deveria, precisamos retroceder ao final dos anos 80, quando se iniciou uma grande onda de adaptação dos países às políticas liberais que defendem austeridade, corte de gastos e Estado mínimo.
Ao sair da ditadura, o Brasil promulgou uma nova Constituição, baseada nos princípios de solidariedade e redução das desigualdades sociais e regionais, incluindo assistência social, previdência e saúde. Buscava um Estado de bem-estar social, uma sociedade mais justa e menos desigual, em contraponto às políticas liberais.
Para atender aos preceitos constitucionais, era necessário buscar financiamento para as políticas públicas. Porém, prevaleceu a implementação de medidas liberais, como aumentar a tributação sobre consumo e desonerar as altas rendas de pessoas ricas e muito ricas; não cobrar dos altos patrimônios, nem cobrar mais impostos da propriedade sem uso, o latifúndio, muito menos tocar nas grandes fortunas.
A decisão foi não cobrar mais dos mais ricos e jogou-se a conta para os trabalhadores, os pequenos comerciantes, os que podem pagar menos, sem atingir quem efetivamente pode arcar com o peso dos tributos.
Por essa razão estamos propondo a campanha Tributar os Super-Ricos para onerar apenas 0,3% dos mais ricos do país. Estão sendo propostas oito leis tributárias para obter um volume de recursos estimado em R$ 290 bilhões anuais e enfrentar a crise econômica, agravada pela pandemia da covid-19.
As medidas emergenciais compreendem a revogação da isenção da tributação de lucros e dividendos distribuídos para pessoas físicas, correção da tabela de alíquotas do IRPF, criação de contribuição sobre altas rendas, instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, ampliação das alíquotas do imposto sobre heranças e doações, passando por novas regras de repartição de receitas da União com Estados e Municípios e revisão na concessão de benefícios fiscais.
Precisamos fortalecer o Estado de bem-estar, não o contrário. Nesse momento de crise profunda, imaginemos como seria se não fosse a presença do Estado para a saúde e educação.
O SUS é responsável por 96% dos transplantes no Brasil e por milhares de procedimentos de quimioterapia e radioterapia. O acesso aos medicamentos, às vacinas, à prevenção: tudo é feito pelo SUS, que é público e utilizado por 75% da população brasileira. Mais de 80% das crianças estão na escola pública. E temos bombeiros, defesa civil, instituições importantes para a vida. Ninguém quer precisar, mas os serviços estão disponíveis. Saneamento, estradas, grandes obras de infra-estrutura para escoar produção, enfim, o Estado está presente.
Quem ganha se ele for diminuído? É o mercado, que vai oferecer o serviço por um preço. Esta é a grande diferença: o que é público se baseia no direito, na garantia deste direito, universal. Enquanto o bem privado é para quem puder pagar.
Para enfrentar toda esta crise, tributar os super-ricos é urgente e imprescindível. É a única forma de enfrentar a crise, reduzir tributos para os mais pobres, garantir renda, salvar vidas, recuperar a economia, reduzir o desemprego e produzir Justiça Social.
Mais de 70 entidades nacionais já aderiram a esta campanha e o movimento cresce em volume e importância. As informações detalhadas das propostas legislativas estão disponíveis em www.ijf.org.br/calculadora-irpf e nas mídias sociais da campanha. A correção de distorções tributárias profundas é possível e exige mobilização.
* Auditora fiscal aposentada da Receita Federal e presidente do Instituto de Justiça Fiscal.
Edição: Katia Marko