“Temos voz sim, mas como sempre querem nos silenciar, precisamos voltar a esta atuação e ação de combate. Não queremos mais ninguém falando por nós”, ressalta Bigaira Veloso, uma das 124 candidaturas indígenas no Rio Grande do Sul. As eleições municipais de 2020 têm revelado um aumento na participação das ditas “minorias”. Incremento refletido também nas candidaturas de pessoas autodeclaradas indígenas.
Em todo o país, nas eleições deste ano, conforme o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), são 2.111 candidatos indígenas (0,39% do total das candidaturas), um aumento de 88,51% em relação às eleições de 2016, em que foram registradas 1.175 candidaturas. De acordo com dados do Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há no Brasil cerca de 817.963 pessoas autodeclaradas indígenas, 0,47% da população total do país. São 256 povos, com mais de 150 línguas diferentes.
Entre as principais pautas dos candidatos indígenas estão a demarcação das terras indígenas e o reconhecimento dos seus direitos e existência. Mas não só isso. Para o escritor e professor Daniel Munduruku, que concorre à prefeitura de Lorena, no interior de São Paulo, pelo PCdoB, as candidaturas indígenas são importantes por dois motivos:
“Primeiro porque mostram que estamos antenados aos problemas comuns a todas as pessoas. Somos, portanto, contemporâneos. Segundo porque podemos oferecer soluções a estes mesmos problemas a partir do olhar que trazemos das nossas experiências indígenas. Ou seja, nossos povos têm conhecimentos que podem ser úteis para ajudar a sociedade nacional a superar suas dificuldades.”
Nascido em Belém do Pará, cresceu na aldeia Maracanã, do povo Munduruku, antes de se radicar no interior paulista. Liderança indígena, tem 56 anos, é graduado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia, mestre em Antropologia Social e doutor em Educação pela USP e com pós-doutorado em Linguística pela UFSC-Car. Para ele, o principal problema a ser superado nas candidaturas indígenas “é ter que convencer as pessoas que temos condições de atuar no cenário político para além da visão estereotipada ou folclórica que a sociedade ainda faz dos indígenas”.
“O ideal é reafirmar o caráter coletivo dessas candidaturas – especialmente quando ocorrem em municípios próximos às aldeias”, avalia Munduruku. “Candidaturas coletivas e em união com outros segmentos menos favorecidos – negros, LGBTQIA+, mulheres – podem se estabelecer como pautas que rompam com o estereótipo e com a negação que normalmente se faz contra os povos indígenas”, conclui.
Candidaturas indígenas no RS
O Rio Grande do Sul é o décimo estado com maior população indígena no país, com cerca de 32.989 pessoas, ou seja, 0,3% da população do estado. O município de Redentora, no Noroeste do estado, tem a maior população indígena gaúcha, sendo 4.033 pessoas. É também a cidade com o maior número de candidaturas indígenas do RS: 26 candidatos aptos, seguida de São Valério do Sul, com 11, e Tenente Portela, com 10. A Capital tem apenas duas candidaturas.
Os 124 candidatos autodeclarados indígenas espalhados por 39 dos 497 municípios gaúchos representam 0,38% do total de candidaturas no RS, dos quais 2 concorrem a prefeito, 3 a vice-prefeito e 120 à vereança. Nacionalmente, os candidatos indígenas estão distribuídos em 32 partidos, sendo o PT a sigla com maior número: 263. Em seguida vêm o MDB e o PP, com 152 cada. No RS, o partido com mais candidaturas indígenas é o PP, com 23, seguido do PT, com 22, e MDB, com 17.
Merong Pataxó Hã Hã Hãe Kamakã, 33 anos de idade, é candidato a vereador em Porto Alegre pela Unidade Popular pelo Socialismo (UP). Nasceu em Contagem (MG), mas ainda criança foi morar na Bahia, onde viveu entre a aldeia e a cidade. Veio para o Rio Grande do Sul há 10 anos, inicialmente vivendo em Erebango, e depois em Porto Alegre, quando foi morador da Ocupação Lanceiros Negros.
“É importante ter um representante indígena em Porto Alegre na Câmara de Vereadores porque muitos não indígenas nunca vão entender de fato quais são as nossas necessidades e de fato qual é a nossa maneira de se organizar socialmente. Sendo nós povos originários do Brasil, temos que compor o Parlamento também, mostrando a nossa maneira de lutar e de ser porque, na minha opinião, a maioria dos não indígenas nunca vão entender de fato o que nós estamos precisando em nossas comunidades”, afirma.
Para Merong, um dos grandes problemas enfrentados pelos indígenas é a dificuldade das políticas públicas chegarem dentro das comunidades. Ao relatar a realidade dos indígenas que vivem em Porto Alegre e região, que trabalham vendendo artesanato no centro da Capital, destaca que muitos têm o seu trabalho ameaçado “por esse governo de elite, que só favorece os grandes empresários”. Por isso, luta pela visibilidade dos trabalhadores indígenas, com propostas como a construção de um local de venda e de um depósito para os indígenas guardarem suas coisas.
Em Nonoai (RS), um dos municípios onde está localizada a Reserva Indígena Nonoai, composta, em sua grande maioria, por famílias da etnia kaingang, Selirio Vergueiro Lilo, com 48 anos, concorre a vereador pelo Partido Progressista (PP). Ele destaca que sua eleição pode contribuir para combater os desafios locais da sua comunidade, que sofrem com relação a habitação, educação, estradas e saúde. “Pois as promessas vêm de fora a cada quatro anos, nós já viemos de uma organização social interna, agora a experiência da busca externa em prol de nosso povo.”
O candidato lembra que são 520 anos de resistência. “Na minha opinião vejo que o indígena se cansou de ouvir as promessas dos brancos e resolveu ele mesmo representar seu próprio povo, sabemos que temos muito para aprender na política, mas estamos aí já demonstramos que somos capazes de exercer o papel de representantes, pois sempre soubemos fazer a representatividade interna, agora vamos buscar a representatividade exterior.”
É do partido de Serilo o senador Luís Carlos Heinze, ruralista que quando deputado federal disse que índios, quilombolas, gays e lésbicas são “tudo que não presta”. Para o candidato, essa questão não interessa. “Cada comunidade tem o seu direito de usufruir de suas terras na forma em que acham ser melhor para seu povo, as terras indígenas do Sul do país foram as que mais sofreram com as colonizações, então a subsistência sofreu com os impactos da colonização e hoje o indígena precisa produzir com lavouras para seu sustento próprio”, explica.
Sobre o fato do RS ter muitas candidaturas indígenas ligadas a partidos de direita no interior do estado, Mergong acredita que “não são pessoas que tiveram contato com a luta de fato de ocupar território e lutar por território. Até ocuparam território, retomaram, mas não foram de fato para as lutas, para estarem conhecendo os movimentos sociais”. Para ele, se conhecessem mais de política, “não entrariam num partido de direita, que são partidos de ruralistas, que são as pessoas que têm votado projetos de lei contra nós”.
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, a mestra em direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público, pesquisadora em multiculturalismo e interculturalismo, Flávia Miranda Falcão, reflete que essa questão tem relação com a presença dos partidos nos municípios, que são um indicativo das prioridades locais. “A realidade partidária nos municípios com economia essencialmente agrícola e pastoril reflete as prioridades locais e o candidato, seja de qual etnia for, precisa falar ao eleitor local”, pondera.
Mulheres indígenas
De acordo com o levantamento do Elas no Congresso, plataforma d’AzMina de monitoramento legislativo dos direitos das mulheres, com base em dados do TSE, as candidaturas de mulheres indígenas no país cresceram 49% em relação a 2016. A maioria concorre ao cargo de vereadora. Segundo a pesquisa, a cada 250 candidatas à vereança, uma mulher é indígena. No pleito do dia 15, apenas seis candidatas indígenas concorrem à prefeitura. No RS, das 125 candidaturas indígenas, 50 são de mulheres: uma para prefeitura, uma a vice e as demais para vereança.
Nascida em São Luiz Gonzaga, região das Missões, no Noroeste do estado, Claudete Oliveira, ou professora Claudete, concorre à Prefeitura de Eldorado do Sul pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Educadora da rede municipal e da rede estadual, é filha de mãe do povo guarani e pai alemão. Afirma que sua progenitora sempre teve uma forte ligação com os parentes, não perdeu suas raízes, de onde vem sua identificação cultural.
Cerca de 10 km da capital gaúcha, Eldorado do Sul é a cidade onde a empresa Copelmi pretende instalar a Mina Guaíba. O licenciamento atualmente está suspenso devido à existência de duas comunidades Mbyá Guarani na área que será impactada pelo projeto. Nove famílias da Aldeia Guajayvi vivem na área da mina localizada no perímetro de Charqueadas. Outros dez mbyá guarani da comunidade Pekuruty, ou Arroio Divisa, vivem às margens da BR 290, em Eldorado do Sul, a 7,2 km do local escolhido para o empreendimento.
“Nós não temos aqui uma terra demarcada, não tem reconhecimento do local em que estão. Historicamente é mais uma vez a perda de terra. Isso é um desrespeito, uma desvalorização da nossa cultura. E agora acredito que há tanta violência quanto na colonização e o impacto que essa violência simbólica gera na comunidade é enorme”, desabafa. Claudete se sente muito impactada pelo “desrespeito, desconhecimento, desvalorização e não entendimento que se tem hoje sobre a importância dos povos indígenas”.
Para ela uma das pautas principais no momento, tanto nacionalmente quanto no estado, é a questão da demarcação de terras indígenas. “É o grande gargalo. No nosso estado existem mais de 50 aldeias e um percentual significativo de acampamentos, e somente seis áreas demarcadas. Enfrentam-se vários problemas, entre eles, o entendimento de que a terra não é propriedade privada”, destaca, frisando que é preciso mais espaços políticos para se levar a pauta indígena para discussão.
Bigaira Veloso, 27 anos, da etnia kaingang, é graduanda pela Universidade Federal da Fronteira Sul em Erechim (RS) e candidata a vereadora no município Rio dos Índios pelo PCdoB. Para ela, o crescimento da população indígena nos espaços é uma força que “vem para garantir que os modos de vida indígenas sejam reconhecidos, respeitados e valorizados”.
Força que é ainda mais importante quando se analisa a conjuntura política atual, desfavorável aos povos indígenas. “A gente tem um governo de anti-indígena, racista, homofóbico, e precisamos ocupar estes espaços, porque nós temos voz, sempre tivemos voz, mas fomos silenciados. Como sempre querem nos silenciar, precisamos voltar a esta atuação e ação de combate a este desgoverno”, afirma. “E quem pode fazer isso? São os próprios indígenas. Não queremos mais ninguém falando pela gente, porque nós podemos falar por nós mesmos”, salienta.
As mulheres indígenas buscam o protagonismo trabalhando junto com os homens indígenas, afirma Bigaira. “Sem deixar ninguém para trás, trabalhando em conjunto. Porém, a gente precisa dessa pauta política de mulheres. A gente precisa de mais mulheres indígenas na política. E com esta visão que a gente tem de mãe, de irmã, isso faz uma total diferença nesse espaço parlamentar que existe.”
As duas candidatas destacam o desmonte das políticas indígenas, dos conselhos ligados a causas indígenas, da Funai, além da forte atuação da bancada ruralista que faz pressão para a não demarcação e apropriação de territórios indígenas. “A gente precisa mudar. E para isso precisamos começar nas bases, mudando e pautando estas situações dos povos indígenas nas bases, ou seja no município”, analisa Bigaira.
Povos exercendo seus direitos
Para Kerexu Yxapyry, do povo Mbya Guarani, coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e integrante da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), as candidaturas indígenas mostram que os povos estão exercendo seus direitos. Para ela, muitas pessoas nos poderes públicos ou desconhecem ou se negam a fomentar e promover as políticas públicas voltadas para a questão indígena. Ou recebem recursos, mas não fazem as ações nas aldeias. “E nós, na maioria das vezes, nem ficamos sabendo desses direitos. E eles usam o recurso em nosso nome e acabam fazendo campanha e promovendo a sociedade que também é desinformada, contra as demarcações, contra os indígenas”, ressalta.
Moradora da Terra Indígena Morro dos Cavalos, no município de Palhoça (SC), ela foi candidata a deputada federal em 2018, com mais de 10 mil votos, e avalia que a participação das mulheres indígenas nos espaços de poder e decisão se apresenta como uma forma de equilíbrio. “Surge a esperança dentro dessas candidaturas das mulheres indígenas que se apresentam como geradoras, defensoras e protetoras da vida. Nós mulheres vamos a luta com nossos territórios, com nossos corpos e com nosso espírito. É disso que o mundo precisa, do equilíbrio da vida. Nem pesado nem leve, mas equilibrado para o lado masculino e feminino, assim é a regra da natureza”, afirma.
Kerexu celebra o aumento da participação da mulher indígena, que já tem presença ativa nas comunidades, mas não se colocava exteriormente. “E muitas vezes foi também uma opção nossa, como proteção, pois não temos uma memória tão boa assim de toda violência e usurpação das nossas vidas no passado, que inclusive quase que vira uma cultura até dentro dos nossos povos. Porém estamos nesse caminho com força total, e com a entrada da deputada federal Joênia Wapichana no Congresso, nos encheu de orgulho e esperança”, expõe.
Ela critica os candidatos brancos, principalmente homens, que fazem a velha política de comprar votos em troca de cachorro quente e cestas básicas. E avalia que ainda há muito a melhorar entre os indígenas no que diz respeito a importância da política. “Muitos não querem ser político e acabam entregando os votos para quem nunca lutou pelos direitos dos povos indígenas. O Brasil e o mundo precisam reconhecer que esse território brasileiro foi invadido em 1.500 e proteger os povos originários, guardiões de toda biodiversidade”, finaliza.
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Edição: Katia Marko