A mobilização popular ocorrida no último fim de semana em Porto Alegre contra a retirada de um guapuruvu, no bairro Moinhos de Vento, conseguiu suspender o corte da árvore até que haja manifestação da Justiça sobre o caso. Para biólogos que participaram do movimento contra o corte da árvore, porém, esse não é um caso isolado, mas sim representativo de uma realidade que Porto Alegre vive nos últimos anos, acentuada a partir de 2019.
“A situação que ocorreu agora é ilustrativa do que está ocorrendo na cidade. Já houve outras denúncias, na Lima e Silva recentemente houve um caso também, está acontecendo por tudo que é canto, as pessoas estão reclamando que está havendo o que chamamos de um ‘arboricídio’, um corte indiscriminado de árvores”, relata biólogo Paulo Brack, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (INGÁ).
Brack alerta para o grande número de árvores cortadas desde que houve uma mudança na legislação, diminuindo o papel regulatório da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Smams), em 2019. A lei complementar 846, de fevereiro do ano passado, assinada pelo prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) a partir de um projeto do vereador Moisés ‘Maluco do Bem’ Barboza (PSDB), com emenda do vereador Felipe Camozzato (Novo), modificou a Lei 757/2015, que dispõe das regras para a supressão, o transplante ou a poda de espécimes vegetais.
Dentre as modificações da lei complementar está o parágrafo décimo-primeiro do artigo 9, referente à supressão de vegetais, que acrescenta à redação original da lei: “Na ausência de manifestação da Smams e transcorrido prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da protocolização do pedido, o manejo poderá ser executado pelo particular, desde que cumprido o requisito de apresentação de laudo técnico acompanhado de ART [Anotação de Responsabilidade Técnica]”. Redação com estas modificações constam também nas seções referentes à poda e transplante dos vegetais.
Há, ainda, outros trechos que tratam do tema. Consta que, no caso de se passarem os 60 dias determinados, a remoção poderá ser feita sob responsabilidade do proprietário ou do possuidor a qualquer título do imóvel, à exceção de áreas específicas, como as de conservação e em espécimes ameaçadas de extinção. Outra modificação foi a retirada da obrigatoriedade de compensação ambiental no caso de poda, salvo em casos que houvesse autorização da Smams. Agora, a compensação é necessária apenas em caso de morte do espécime (art. 15, § 1º).
O perigo da retirada massiva de árvores
O biólogo Eduardo Forneck, professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e doutor em Ecologia, foi o coordenador do projeto de arborização urbana em Canoas e atualmente trabalha em projeto de arborização em São Lourenço do Sul. Ele destaca que a luta pela preservação do guarupuvu e outras árvores não é isolada e nem superficial. A arborização urbana, segundo o professor, traz diversos benefícios para a cidade, como a regulação do microclima, a regulação da relação entre flora e fauna, a manutenção da biodiversidade, o sequestro de carbono – processo realizado pelas plantas quando fazem as fotossínteses, ao utilizar o carbono em excesso disponível na atmosfera –, a chamada ‘cortina vegetal’ que impede a passagem de poluentes emitidos por gases tóxicos, vindo da queima de combustíveis fósseis e de indústrias.
“Hoje temos áreas fragmentadas, isoladas, de parques de conservação dentro das cidades. E o isolamento é um problema para muitas espécies de animais, então a arborização, quando bem conduzida, pode ser um potencializador para essa fauna. Podem usar como um corredor para se deslocar de uma unidade de conservação para a outra. Porto Alegre tem várias unidades de conservação, um conjunto importante. O que se precisa na malha urbana para potencializar a circulação de fauna, especialmente insetos e aves, é a intensidade e qualidade dessa arborização urbana”, acrescenta Forneck.
O biólogo destaca ainda a questão da beleza cênica e da relação dos seres humanos com a natureza, que acrescenta à qualidade de vida na cidade. O caso do guapuruvu é um exemplo disso. “Em casos como esse, a solução é podar, não é cortar a árvore. As flores dela são muito importantes para os polinizadores urbanos, como moscas, vespas, borboletas, besouros. E ela é um patrimônio ambiental daquela região, é uma árvore com beleza cênica gigante, as pessoas se reconhecem. Uma das condições de arborização urbana é criar identificação das pessoas com a natureza, ela tem um valor especial, simbólico”, afirma.
O professor, que é especialista em árvores e aves, vê relação entre o grande número de cortes de árvores e o momento social atual no Brasil. “A gente, como sociedade, se coloca acima dos outros e isso é em relação à natureza também. Estamos em momento de muita intolerância, agressividade, sem diálogo e de desrespeito à natureza. Eu acho lamentável a maneira como a gente vem tratando a natureza em todas as esferas”, reflete. A própria ideia de que se um galho caiu, a árvore toda deve ser suprimida faz parte dessa mentalidade à qual Forneck se refere.
“Esse movimento que estamos fazendo parte chama isso de arboricídio, resultante desse momento de intolerância política, e isso se desdobra nas relações humanas e da natureza”, acrescenta, lembrando as queimadas na Amazônia e no Pantanal. Dentre os exemplos citados por ele, está o que ocorre atualmente no âmbito federal: o governo Bolsonaro vem alardeando a necessidade de se modificar a lei ambiental, sob o argumento de que o licenciamento é moroso e difícil. “É claro, porque é um dos ministérios com menos orçamento e este governo cortou mais ainda. Então, se precariza o serviço, alardeia que é um problema, e põe a população contra ele. É uma condução política deliberada dentro do serviço público para desqualificar o serviço ambiental”, resume o biólogo.
Paulo Brack relata que os biólogos querem que haja maior transparência na retirada de árvores, com uma espécie de lista pública antes das supressões e podas para que a população possa acompanhar. E, ressalta, defendem que a queda de galhos não leve à supressão da árvore inteira. “Isso está gerando um precedente perigosíssimo, se a gente usar esse argumento, vamos ter que cortar milhares de árvores de Porto Alegre, vai ser um prejuízo, porque as árvores trazem benefício para a cidade”, afirma.
Ele lembra o grande vendaval que ocorreu na Capital em 2016, ocasionando a queda de diversas árvores, o que gerou medo na população de que as árvores representassem um risco. A partir dali, passou a haver maior facilidade para agilizar os cortes, na avaliação do biólogo. Brack também relaciona o alto número de supressões com a mentalidade social atual. “Esse é um procedimento imediatista, a cara do modelo que estamos vivendo hoje. Não quer pensar no futuro, no meio ambiente, simplesmente se livrar de um eventual problema dentro de uma lógica imediatista”, reflete.
O guapuruvu
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Smams) afirma que, no caso do guapuruvu, o laudo havia sido emitido inicialmente “por responsável técnico contratado pelo requerente”, o qual abriu protocolo junto ao órgão, motivado pela queda de um galho de grandes proporções, em novembro de 2019.
A partir daí, a equipe da Secretaria foi ao local e “verificou a presença de lesão aberta de grandes proporções, gerada pela queda do galho. A constatação foi de que a lesão se localiza na base de outros ramos de grande porte da copa, com potencial de enfraquecimento da sustentação e sério risco de novos acidentes”, segundo informou a assessoria do órgão.
A secretaria informa ainda que “Com base no conjunto de informações (laudo do responsável técnico e parecer da Smams, gerado a partir de vistoria), a Autorização Especial para Remoção de Vegetal (AERV) foi emitida em março deste ano. Todas as ações ao longo do processo foram aplicadas em conformidade com a Lei Complementar 757/2015, que regulamenta o tema”.
O laudo inicial foi feito por uma empresa de consultoria ambiental contratada pelo condomínio onde a árvore está localizada, e a partir daí foi protocolado na Smams, que emitiu a AERV. Ou seja, as partes interessadas na supressão da árvore são quem contrata os profissionais que realizam o laudo indicando seu estado.
Já nesta segunda-feira (26), após a mobilização da comunidade contra a derrubada da árvore, um grupo de biólogos elaborou um Parecer Técnico de avaliação do estado fitossanitário do guapuruvu, em que destacam que a madeira do vegetal apresenta baixa densidade, “o que pode ocasionar queda de seus galhos, tornando necessária sua poda com certa frequência. Portanto, a queda do galho ocorrida em 2019, razão primeira que gerou o pedido de supressão da árvore, era evento previsível”.
O professor Paulo Brack destaca, em comunicado enviado juntamente com o parecer ao secretário da Smams, Germano Bremm, e ao Ministério Público Estadual (MPE), que um residente do endereço em frente à árvore, o médico e sociólogo Lúcio Spier, afirmou haver protocolado há 4 anos pedido na então SMAM para remoção do galho que caiu em 2019. “A SMAM teria informado que tratava-se de responsabilidade do condomínio supra citado. O solicitante teria desistido de seguir o pleito, após a resposta recebida. Por meio de fotos anteriores, muito provavelmente, seria possível ser visto as condições do único ramo que estaria com indícios de queda”, destaca Brack.
O parecer, assinado pelos biólogos Eduardo Dias Forneck, Hosana Maria Fonseca Piccardi e Lilly Charlotte Lutzenberger, aponta ainda que a árvore, antes de ser cortada, “mostrava-se em sua vitalidade máxima”, e destaca que o próprio laudo técnico apresentado pelo condomínio a descrevia em estado fitossanitário regular, “o que não justifica o pedido de supressão indicado no referido laudo”.
Por fim, apontam que, após a poda já realizada, não há mais galhos que possam cair e provocar danos e estragos. “O que é possível agora é a análise da possibilidade de morte da árvore em médio prazo, ou de sua regeneração. Por não ter mais nenhum risco de queda em curto prazo, esta árvore apresenta risco de queda igual a qualquer outra árvore”, argumentam, solicitando que o vegetal seja monitorado e manejado para potencializar sua possibilidade de regeneração.
Eduardo Forneck considera que o laudo feito pela empresa contratada é “frágil” e que, embora aponte que a árvore estava danificada, contava com fotos de antes do acidente que mostravam a árvore em sua floração máxima. “Me parece que foi uma atitude precipitada cortar a árvore. Agora que cortaram a poda drástica, não tem mais galho para cair. Acho que agora a melhor avaliação, mais cuidadosa e responsável, é que temos um ser vivo com dezenas de anos que foi cortado erroneamente e que deve ser respeitado”, aponta.
Já a Smams afirma que “nenhuma poda ou supressão de árvore é realizada de forma arbitrária, sem que exista uma análise técnica comprovando a necessidade do manejo”. Os biólogos e outros participantes do movimento a favor da manutenção da árvore se reuniram com o secretário Germano Bremm, que garantiu que a secretaria fará uma reavaliação do vegetal.
Árvores em áreas públicas
Segundo a Smams, desde março de 2020, foram protocolados 533 pedidos de podas, supressões e transplantes em áreas particulares de Porto Alegre. Destes, 363 foram deferidos, 111 indeferidos e 59 aguardam análise. Os números são referentes às solicitações relacionadas ao manejo em áreas privadas, com análise conduzida pela Smams.
No caso das áreas públicas, atualmente a retirada e poda é realizada pela Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (Smsurb), o que os biólogos também criticam. Reportagem do Sul21 de fevereiro deste ano constatou o corte de 12 plátanos do centro da cidade a partir de ação da Smsurb, também sob a justificativa de que as árvores apresentavam risco. O pedido foi feito pelo Exército, e enquanto a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) argumentou que não havia motivo para o corte em massa, elas foram derrubadas mesmo assim.
Na ocasião, a secretaria informou que mais de 3,3 mil árvores foram removidas em Porto Alegre no ano passado em ações da Prefeitura e 17.545 podas foram realizadas – ambos os números representam mais que o dobro em relação a 2018. À época, o órgão justificou o aumento pela contratação de uma empresa terceirizada, em junho de 2018, após quase três anos sem o serviço de corte e poda.
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Edição: Sul 21