O prazer e a angústia são duas excitações primordiais, ou emoções primordiais, da substância viva
“A vida emocional humana não é de origem sobrenatural. Ela está localizada dentro dos limites da natureza e é investigável. Como o resto da natureza, obedece a leis funcionais da matéria e da energia.”
Wilhelm Reich. A História do Desenvolvimento do Funcionalismo Orgonômico
Nesta coluna falamos constantemente do encouraçamento. Hoje vou falar sobre o que é isso que se encouraça: o movimento bioenergético, o movimento vivo em sua forma mais primitiva.
Wilhelm Reich descobriu que uma das principais características dos organismos vivos é a presença, neles, de movimentos plasmáticos. Protoplasma, ou citoplasma, é o nome atribuído em biologia ao líquido que preenche as células. Os líquidos e membranas de que se compõem os organismos estão em constante movimento. O centro de nosso organismo produz energia ininterruptamente. Esta última flui do centro para a periferia de nosso corpo, e se move de diferentes formas também dando origem às nossas emoções e sensações.
A palavra emoção significa, literalmente, movimento (moção) para fora (prefixo “e”). As emoções, portanto, expressam a condição de mobilidade de um organismo. Quanto maior a mobilidade de nossas correntes vegetativas (ou movimentos plasmáticos), maior será a intensidade de nossas sensações e emoções. O organismo encouraçado sente com menor intensidade porque seus músculos enrijecidos ou pouco tonificados prejudicam ou interrompem o movimento plasmático.
Reich constatou que as emoções primárias são racionais, isto é, cumprem uma função biológica: o organismo vivo age de acordo com suas emoções plasmáticas primárias. Sua função é satisfazer as tensões e necessidades biológicas:
“A função do prazer conduz à descarga do excesso de energia da célula. A angústia está na base de cada reação de raiva. E, na esfera da vida, a raiva possui a função global de vencer ou eliminar situações de ameaça à vida. A tristeza expressa a perda de contato familiar e o anseio expressa desejo de contato com outro sistema orgonótico.” (Wilhelm Reich, O Éter, Deus e o Diabo).
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O organismo vivo é um sistema orgonótico, isto é, um complexo energético que pulsa, flui, se desenvolve, se reproduz e sente, respondendo aos estímulos do ambiente com movimento emocional, que é inerentemente expressivo: toda emoção é um movimento de expressão.
O organismo vivo percebe ao ambiente e a si mesmo a partir de suas sensações. Do tipo de sensações que temos irá derivar a nossa imagem do mundo, nossos julgamentos e ações. O organismo vivo só pode perceber o que ele próprio expressa, suas sensações são seu principal instrumento para entrar em contato com o mundo. Por isso, podemos dizer que o organismo encouraçado percebe o mundo de maneira encouraçada.
Nos seres humanos, tanto as emoções quanto os impulsos são interpretados psiquicamente, eles podem ter um significado inteligível e podem ser expressos em termos de linguagem verbal. Entretanto, nem todo movimento bioenergético natural presente no ser humano pode ser expresso em palavras e simbolizado de acordo com a racionalidade intelectual. A linguagem verbal é uma função mais complexa e, portanto, mais distante do núcleo biológico do que o movimento emocional. A linguagem verbal pode, inclusive, agir como uma defesa contra a nossa conexão com nossas emoções. Isso acontece quando falamos demasiadamente como uma maneira de não prestar atenção no que sentimos.
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Contração e expansão são funções biológicas naturais. Elas se aplicam tanto ao campo somático quanto ao campo psíquico. O processo vital é marcado pela contínua alternância entre expansão e contração. Todos os impulsos biológicos e sensações biológicas do organismo podem ser reduzidos à expansão (alongamento, dilatação) e contração (encolhimento, constrição).
O prazer e a angústia são duas excitações primordiais, ou emoções primordiais, da substância viva. O prazer está associado à expansão do sistema vivo, e a angústia está associada à contração.
No mais alto nível psíquico a expansão biológica é experimentada como prazer. A contração biológica é experimentada como desprazer. No campo dos fenômenos instintivos, expansão é excitação sexual, contração é angústia. Em nível fisiológico, a expansão é da ordem do funcionamento parassimpático, a contração é da ordem do funcionamento simpático – o funcionamento emocional e do movimento biológico no ser humano é regulado pelo sistema neurovegetativo, que é dividido em um eixo simpático (responsável pelas reações de contração, angústia, desprazer, alerta) e um eixo parassimpático (responsável pelas reações de abertura, relaxamento, entrega, pertencimento). As inervações autônomas cumprem as funções básicas de expansão e contração do organismo total.
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Reich descobriu que, do ponto de vista de nosso núcleo biológico, de nosso funcionamento bioenergético profundo (da onde partem nossos movimentos emocionais expressivos), nós funcionamos identicamente a organismos evolucionariamente mais primitivos, tais como amebas, medusas ou minhocas. A ameba e o verme, no animal humano, continuam a agir como elementos nucleares do funcionamento emocional.
“Teremos de aprender a aceitar a ideia de que não estamos tratando aqui de restos atávicos de nosso passado filogenético, e sim das funções atuais, bioenergeticamente importantes, do organismo altamente desenvolvido. As funções plasmáticas mais primitivas e as mais avançadas coexistem e funcionam como se estivessem ligadas umas às outras. O desenvolvimento de funções mais complicadas no organismo (que denominamos ‘superiores’) não tem efeito sobre a existência e a função da ‘medusa no homem’. É precisamente essa medusa no homem que representa sua unidade com o mundo animal menos desenvolvido (…). A biofísica orgone traça a origem das funções emocionais do homem a partir de um estágio muito mais primitivo, ou seja, as formas de movimento dos moluscos e protozoários”. (Wilhelm Reich. Linguagem expressiva da vida).
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Os processos de movimento plasmáticos, as correntes orgonóticas, se fundem no processo do orgasmo. O processo do orgasmo e o processo emocional representam funções primárias do sistema protoplasmático, mais profundas que toda a linguagem humana e centrais para o funcionamento do aparelho vital.
No orgasmo, “o organismo se entrega às suas excitações plasmáticas e às sensações de fluir; depois, entrega-se completamente ao parceiro no abraço genital. Toda forma de reserva, contenção e encouraçamento é abandonada. Toda a atividade biológica fica reduzida à função básica de pulsação plasmática. No homem, todo o pensamento e toda a atividade de fantasia cessam. O organismo está ‘entregue’, no sentido mais puro da palavra” (Wilhelm Reich. Linguagem expressiva da vida).
A interrupção de todo esse conjunto de fenômenos profundos é o que, para Reich, dá ao ser humano a predisposição para a guerra, para a depressão, câncer, ditaduras e toda a sorte de tragédias que podemos chamar civilizacionais.
Descrição da imagem: trata-de de uma fotografia de uma série de águas vivas nadando no fundo do mar. Os animais translúcidos de cor verde azulada contrastam com o fundo negro.
Edição: Katia Marko