Rio Grande do Sul

EDUCAÇÃO NA PANDEMIA

Excesso de trabalho, condições precárias e medo: comunidade escolar está pressionada

Mesmo com todos os problemas do trabalho remoto, professores e pais não querem o retorno das aulas presenciais

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Comunidade escolar é continuamente pressionada pelo retorno às aulas presenciais. Professores, pais e funcionários declaram não haver condições para isso. - Reprodução CPERS Sindicato

A questão da educação pública na pandemia expõe uma situação contraditória e problemática. Mais de meio ano passou e, ao mesmo tempo que as aulas à distância não conseguem dar conta do aprendizado com qualidade, o retorno presencial coloca em risco a saúde e a vida da comunidade escolar. A reportagem do Brasil de Fato RS procurou relatos de pessoas envolvidas nesta situação para saber como está sendo o ensino à distância na rede pública estadual e como estão sendo percebidas as tentativas do governo em retornar às aulas presenciais.

Professores estão sobrecarregados e com medo

A professora Silvana Maria tem 60 anos e, devido a comorbidades, é considerada do grupo de risco para infectar-se com o novo coronavírus. Trabalha em duas escolas, uma da rede municipal em Cachoeirinha, outra estadual em Gravataí.

A professora relata que, na rede municipal de Cachoeirinha, já foi tomada a decisão de não retorno das aulas presenciais. Lá, dá aula para o sexto e sétimo anos, cerca de 150 alunos. Destes, a grande maioria utiliza o celular dos pais, sendo a escola localizada em uma comunidade muito carente. Reclama da falta de ação da prefeitura, que não traçou um plano e só foi começar o ensino à distância em 8 de junho, meses depois da suspensão das aulas.

Sobre o trabalho à distância, as atividades são entregues pelo Whatsapp, e-mail ou impressa na escola, obrigando os professores a se adaptar às realidades diferentes dessa grande quantidade de alunos. Relata que muitos deles não acessam as plataformas nem dão retorno algum, os professores precisam descobrir por conta própria qual a situação. Além disso, conta que o trabalho se estende para muito além das horas que deveria trabalhar. “Fazemos muitos atendimentos no privado, muitas vezes depois das 20h, momento que os pais chegam em casa do trabalho e que podem emprestar o celular para os filhos acessarem os conteúdos.”

Silvana reclama do excesso de burocracia, uma grande quantidade de materiais que são acrescidos aos planejamentos e diários de classe. Essas atividades devem estar alinhadas à Base Nacional Curricular Comum, sendo necessário o conhecimento de uma série de códigos que dificulta a organização do trabalho.

Se no município de Cachoeirinha já está tomada a decisão de seguir no regime remoto, no estado, porém, ainda há uma grande incerteza sobre como será. As dificuldades são parecidas, porém, as turmas são muito diferentes e ainda não se sabe se haverão condições para o retorno presencial.

“Eu dou aula para o terceiro ano do ensino fundamental, tenho uma turma de 20 alunos que ainda estão em alfabetização, o que exige constantes chamadas de vídeo com eles”, explica. Ela relata ser necessário o diagnóstico de como eles estão aprendendo, exigindo uma grande variedade de tarefas, como ditados, perguntas diversas, operações matemáticas e formação de frases. Este trabalho é feito todo pelo próprio celular, com uma tela pequena.

Reduzido também é o tamanho do local onde trabalhava com esta turma. “A minha sala de aula é muito pequena, mesmo para esta turma de 20 alunos.” Relata que na sala há apenas espaço para um corredor, entre duas fileiras de classes duplas, não sendo possível separar essas classes, pois não haveria espaço para ela transitar e ir até os alunos.

“As escolas públicas não têm estrutura em tempos normais, imagina na pandemia. É vidro quebrado, falta de funcionários, sanitários que não funcionam. Nós mesmos que tínhamos que limpar as salas. Voltar às aulas agora seria genocídio”, denuncia. A fala chama atenção, pois, mesmo em um regime de sobrecarga de trabalho, sem os meios adequados, ela prefere não voltar ao regime presencial. A professora ressalta que não existe possibilidade de ensinar mantendo à distância dos alunos.

“A gente sabe como os jovens são. Como pedir para eles não abraçarem um ao outro? Não pedir lápis emprestado? Não mexer na máscara?”, questiona. Na sua concepção, o retorno às aulas beneficiaria “outra classe”, não os professores, alunos e familiares. Lembra que os alunos, ao irem para escola, entram em contato com muitas pessoas no caminho, além dos estudantes que necessitam do transporte escolar. “Eu mesma, preciso de ônibus para ir e voltar, entro em contato com muitas pessoas.” Lembra que esse estudante, após passar por todos esses contatos no caminho e na própria escola, depois retorna para casa, onde muitas vezes há idosos e pessoas do grupo de risco, contribuindo na transmissão do vírus.

Reclama que o governo não pensa em preservar essas vidas: “Ele [governador] quer nos fazer engolir um sistema híbrido que não vai dar certo, ele governa para os empresários, a partir de bandeiras que não se sabe direito como se pinta. Não existe condições para o retorno presencial, as escolas não tem estrutura”.

Lembra também que o governo Leite repetidamente atrasou os repasses de verbas para as escolas e questiona como isso vai ser resolvido para receber os alunos agora. Além disso, recorda os atrasos dos salários, além da desvalorização do mesmo. Tudo isso a leva a não acreditar que o governo dará as condições necessárias para o retorno seguro.

“Esse esforço de retorno às aulas faz parte de um jogo de interesses do governo que não se importa com os professores e alunos, não existe estrutura para isto agora e esse jogo está nos deixando doentes.” Relata que os professores têm muito medo, igualmente aos pais. Recebe muitas mensagens dos responsáveis dizendo que não mandarão os estudantes para as escolas, ao mesmo tempo que recebe contínua pressão do governo. Acredita que Leite deve estar sendo pressionado por empresários pelo retorno presencial e aconselha que se observe os exemplos de outros locais no mundo onde, mesmo havendo mais condições estruturais, houve grande aumento de contágios.

“Eu perdi uma colega, a professora que dava aula para a outra turma de terceiro ano do fundamental, isso me deixou muito angustiada. Perdi também um amigo muito próximo, da época do ensino médio. Perdemos também o pai de uma colega da escola”, revela.

O relato da morte dessas pessoas conhecidas, acrescido de toda situação de sobrecarga de trabalho, sem as condições, mais ainda sobre constante indecisão e pressão do governo é muito impactante, pois foi dado após o relato de que Silvana segue trabalhando, mesmo com toda carga emocional envolvida. Todos os problemas que já haviam antes da pandemia se somaram com os atuais, ainda havendo de lidar com a difamação promovida por alguns setores contra os professores. “Isso revolta muito, as pessoas não sabem o quanto estamos trabalhando. Eu me sinto muito oprimida, desvalorizada.”

“Essas medidas não serão barreiras, haverão mortes, essa volta é precipitada.” Para a professora teríamos que ter vacinas e medicamentos eficazes. É uma grande preocupação sobre as providências prometidas pelo governo para um retorno dito seguro. A medição de temperatura dos que entram nas escolas, por exemplo, só identifica os casos sintomáticos, visto que a febre é um sintoma de estado avançado da doença. O resultado imaginado pela professora é a aceleração da entrada do vírus nas casas da comunidade, expondo todos ao risco de morte, para terminar um ano letivo de forma não totalmente proveitosa.

Pais e responsáveis compartilham mesmo sentimento

Denise Silva tem 42 anos, trabalhadora do lar e estudante de Pedagogia. Mora em Caxias do Sul, sendo mãe de um filho que estuda na Escola Olga Maria Kayser, também em Caxias, com as aulas sendo acompanhadas de forma remota, através da plataforma Google classroom. Segundo Denise, a experiência está sendo terrível:

“No início entendi que ainda estavam todos em fase de adaptação, mas hoje, depois de 7 meses, as crianças continuam fazendo apenas as atividades impressas, sem contexto, nem estímulo, está uma vergonha. Meu filho não tem nem vontade de assistir, e eu estou muito decepcionada.”

Relata que além das atividades pela plataforma, existem ainda grupos de Whatsapp, onde os estudantes acompanham algumas atividades, mas sempre de forma insatisfatória. Considera que seja possível haver aprendizado de forma remota, mas com mais estímulo dos professores e com vídeo aulas. “Agora mais do que nunca precisamos de um trabalho conjunto dos professores com as famílias, tudo em benefício das crianças.”

Acredita ser esse formato o único possível no atual momento, mesmo com os problemas, pois não acredita que as escolas estejam preparadas para receber as crianças com segurança.

“Mesmo que meu filho estudasse em escola particular eu não enviaria. Uma estadual tem muito menos condições de receber as crianças. Nesse momento, eu sou totalmente contra a volta às aulas presenciais, já ouvi vários especialistas dizendo ainda não ser a hora de mandar as crianças.” Sua opinião é de que, depois de sete meses em casa, as crianças e professores não terão condições de recuperar o ano em dois meses e meio. Para Denise, esse ano letivo já está perdido, restando preservar as vidas.

Situação é a mesma em outras regiões

A professora Thays trabalha na Escola Estadual Marechal Osório, em Alvorada. Atualmente, está afastada do trabalho, em licença maternidade. Até se afastar do trabalho, em agosto, vivenciava as mesmas dificuldades relatadas por outros professores. Além de mandar material para a plataforma do Google, é necessário preparar material impresso e para o Whatsapp. Cada tipo de material exige um formato diferente, além disso, existe uma série de cobranças por parte da Secretaria de Educação, configurando uma carga excessiva de trabalho.

“[...] temos que mandar material para o Classroom, material para ser impresso e material via WhatsApp. Acontece que se você montar uma aula utilizando links, vídeos, etc., essa mesma aula tem que ser reformulada para ser entregue de maneira impressa. Além é claro de todos os relatórios que devem ser enviados semanalmente para a escola, as capacitações da Seduc, a correção do material entregue na escola e através da plataforma.”

Relata que os alunos também encontram muita dificuldade em manter o nível de aprendizado. A professora, mesmo em licença, mantém o contato com alguns deles. “A maioria não consegue acompanhar as aulas disponibilizadas pela plataforma. Alguns não têm internet, outros não têm celular ou apenas não conseguem realizar as atividades sozinhos. Eles têm se esforçado para conseguir entregar as tarefas, mas tem sido complicado.” Segundo a pesquisa realizada pelo Cpers, cerca de um terço dos professores não tem acesso à internet de qualidade suficiente para realizar de forma satisfatória as atividades online, para os estudantes esse número é ainda maior.

Thays também é contra o retorno às aulas presenciais, mesmo face à toda esta situação. Segundo contou à reportagem através de mensagens, na escola em que trabalha as salas são pequenas, as janelas são basculantes antigas, muitas vezes emperradas, os ventiladores não funcionam, nem mesmo as lâmpadas. O refeitório é pequeno, bem como as salas. Não há orientadores nem monitores que pudessem ajudar na conscientização dos estudantes. Conta que tem turmas com mais de 40 alunos de 9° ano. As outras, em média, têm cerca de 30 alunos. Ao todo, são 9 turmas. Sobre a possibilidade e tentativas do governo de retornar às aulas, ela afirma ser "um absurdo, uma falta de responsabilidade sem precedentes deste desgoverno. Contamos apenas com duas funcionárias para a limpeza de toda a escola, é impossível que se consiga cumprir os protocolos de segurança necessários.”

 

Edição: Katia Marko