Nesta semana o governo do estado do Rio Grande do Sul colocou todas as regiões em bandeira laranja, isso é, risco médio de contágio no modelo de distanciamento controlado. Com isso, o relaxamento do isolamento social, que já vinha acontecendo quando as regiões estavam sob bandeira vermelha, foi aprofundado. Exemplo disso pode ser visto pelas ruas de Porto Alegre. Mesmo em um dia de chuva, como registrado nesta sexta-feira (02), haviam estabelecimentos abertos, comércio nas calçadas e pessoas circulando sem máscara.
Além disso, no início do mês, o governo de Eduardo Leite (PSDB) autorizou o retorno das aulas presenciais para as regiões que apresentarem bandeira laranja por duas semanas consecutivas. Em Porto Alegre, as aulas estão programadas para iniciar nesta segunda-feira (05).
Com mais de seis meses de pandemia, o estado tem mais de 197 mil casos confirmados do novo coronavírus e de 4,8 mil vítimas fatais. A capital é a cidade com o maior número de casos confirmados e de óbitos, 34.291 infectados e 1.036 vítimas .
Na avaliação do infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia (SRGI), Ronaldo Hallal, o modelo de distanciamento social controlado estadual é uma ferramenta útil para monitorar a disponibilidade de leitos no sistema de saúde e evitar seu colapso, mas não permite monitorar a taxa de transmissão comunitária e de casos positivos. “O modelo que agora culmina com a cor laranja sofre marcada influência política de prefeitos, também uma pressão do empresariado e de parte da comunidade. Portanto, ele deixou de ser um modelo com capacidade técnica para tomada de decisão em relação ao reinício de atividades”, aponta.
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, ele comenta sobre o estado atual de vírus no estado e sobre o risco da crescente retomada, que aumenta a circulação de pessoas. “A perspectiva de retorno de atividades, de uma maneira geral, passa uma falsa impressão de que a epidemia já passou. Isso se soma e talvez se potencialize com o desejo humano que se volte à vida normal, ao contato com as pessoas, que se retorne as atividades, também considerando o desemprego, a diminuição de renda que ocorreu por conta da pandemia e das políticas que antecederam à covid-19”, destaca.
Veja abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato RS - O governo do RS, nesta segunda-feira, confirmou todo o estado em laranja no distanciamento controlado, isto é, risco médio em relação ao coronavírus. Na sua avaliação, como se encontra o estado em relação a pandemia?
Ronaldo Hallal - O modelo de distanciamento social controlado, proposto pelo governo do estado, particularmente após as modificações realizadas ao longo do tempo, assumiu o objetivo de monitorar a capacidade hospitalar, especialmente em relação à disponibilidade de leitos de UTI. Este modelo, ainda que tenha sido entendido como tal, não tem sensibilidade para monitorar a expansão da pandemia e sua taxa de transmissão, porque não se monitora diagnóstico, não se monitora a cobertura de testagem e o percentual de testes que são positivos. Não há informações robustas o suficiente a respeito das tendências de expansão e dos hotspots, que são as áreas de maior transmissão. Portanto, o modelo de distanciamento social controlado que está sendo proposto é uma ferramenta útil para monitorar a disponibilidade de leitos no sistema de saúde e evitar seu colapso. Mas não permite monitorar a taxa de transmissão comunitária e de casos positivos.
Nós temos uma epidemia que dá sinais de perda momentânea de sua aceleração, as razões para isso ainda são objeto de discussão. Por um lado é possível que nós tenhamos tido uma redução de pessoas suscetíveis à epidemia nesse primeiro momento da sua entrada aqui no Rio Grande do Sul. Então, pode ser que nós tenhamos tido um esgotamento momentâneo dos mais suscetíveis e vulneráveis. E como em outras epidemias, à medida que vai reduzindo a população mais vulnerável e mais exposta, também naturalmente vai caindo a curva de mortalidade e de novos casos. Embora nós não tenhamos taxas de contato, medido por anticorpos, tão elevados como foi verificado em Manaus.
Naquela capital, segundo estudo realizado em bancos de sangue, em torno de 65% da população já se expôs à covid-19 e, ainda assim, se registra neste momento novos casos de doença. Mas nós temos ainda uma taxa de transmissão comunitária que não é baixa, em torno de 10 a 20% dos testes que são realizados são positivos para covid-19. Ou seja, ainda há transmissão que é relevante do ponto de vista da transmissão comunitária da covid-19.
Também precisamos considerar que em torno de 60%, 70% dos casos, se utilizam testes rápidos, que são muito pouco sensíveis para identificar a presença da doença. Os testes que identificam o vírus estão sendo feitos em menor escala, isso reduz a capacidade de identificar a expansão da epidemia, identificar e isolar em tempo oportuno.
Além disso, o modelo que agora culmina com a cor laranja sofre marcada influência política de prefeitos, também uma pressão do empresariado e de parte da comunidade. Portanto, ele deixou de ser um modelo com capacidade técnica para tomada de decisão em relação ao reinício de atividades. O que se verificou na Europa é que, após uma primeira onda, de uma curva diferente da nossa, uma curva que há um pico rápido, agudo, elevado e depois uma queda de casos, aqui nós temos um certo platô que se estende desde junho até esse momento, com uma tendência agora de declínio. A redução do gradiente de risco refletido pelas cores que são propostas aumenta a circulação populacional, e ainda não sabemos como será o comportamento da epidemia com o retorno da circulação das pessoas em níveis quase normais.
BdFRS - Quais são os riscos do alaranjamento? E como tu vês a pressão pelo retorno de diversas atividades, como estabelecimentos comerciais como bares ou eventos?
Ronaldo - Os perigos de se ter um baixo gradiente de risco refletido pela cor laranja de bandeiras e com a própria pressão para o retorno das atividades comerciais e de lazer, como bares e eventos, isso tudo possivelmente vai aumentar a transmissão da covid-19. Se verificou, nas últimas semanas, com a reabertura de bares, muitas áreas na cidade de aglomeração, de quebra do distanciamento, de não utilização de máscaras, por exemplo. Por isso, apenas o jargão que ‘estamos seguindo todos os protocolos’ é insuficiente como estratégia de prevenção. As pessoas nem sempre vão aderir aos protocolos.
E ainda que tenha adesão aos protocolos, eles não são por si suficientes para eliminar a transmissão. Eles devem ser adotados, mas na presença de transmissão comunitária elevada, apenas adoção de protocolos talvez não permita desacelerar a pandemia.
O retorno de atividades pode acarretar na piora dos indicadores de transmissão. Já que a circulação do vírus vai se dar de pessoa a pessoa, pode afetar aqueles que são mais vulneráveis, os próprios trabalhadores desses locais, aqueles que habitam áreas com grande densidade populacional e a população que tem mais risco para doença mais grave e morte.
BdFRS - O estado, assim como a prefeitura de Porto Alegre, por exemplo, começaram a escalonar o retorno presencial das aulas. Como o senhor vê essa questão, é o momento do retorno?
Ronaldo - Em relação ao retorno às atividades escolares, eu diria que, assim como outras atividades, estabelece riscos. Mas em primeiro lugar, acho importante mencionar que há casos de doença mais grave em crianças e jovens. Aqui no estado mesmo, em torno de 30 mil casos envolveu jovens de até 19 anos de idade. Não é a população que tem mais risco de doença grave, mas existem alguns casos que isso ocorre, inclusive morte.
E as crianças e jovens têm um papel importante na transmissão, eles podem portar o vírus, com sintomas muito leves ou nenhum sintoma, portarem uma quantidade de vírus suficiente para transmitir para outras pessoas, como os professores, como a comunidade escolar envolvida nas atividades. Boa parte das crianças, especialmente aquelas de mais baixa renda, vivem com populações de risco, pessoas idosas, portadoras de doença. Com essas de baixa renda, que vivem em habitações com densidade demográfica elevada, corre-se o risco portanto de ocorrer transmissão para adultos, em maior risco, a partir das crianças. Além do risco de as crianças desenvolverem doença mais grave.
Vale lembrar que há toda uma população que é mobilizada para esse retorno, e essa população corre risco de transmissão.
Já há surtos bem documentados nos Estados Unidos, Israel, em alguns locais na França, surtos envolvendo crianças e a comunidade escolar. Nos Estados Unidos, por exemplo, as crianças de baixa renda tiveram quadros clínicos mais graves do que as crianças de mais alta renda. É preciso lembrar que, ao estabelecer uma circulação maior do vírus na comunidade escolar, aqueles que tem menos acesso a serviços de saúde, uma vez tendo a infecção, correm maior risco.
Outro ponto que eu acho importante mencionar é não me parece que o governo do estado e própria prefeitura tenham estruturado uma proposta de aumento da testagem para as comunidades que estão voltando para suas atividades. Isso vale para as escolas, isso para população como um todo.
A organização Mundial da Saúde recomenda que para o retorno de atividades presenciais exista baixa taxa de transmissão comunitária, inexistência de surtos, elevada capacidade de testagem e de isolamento. Não é o caso que nós estamos vivendo no estado e em Porto Alegre. Algumas semanas atrás nós observamos que houve uma mudança abrupta de discurso tanto do estado como do município de Porto Alegre. No caso do município, especificamente, considerava um isolamento mais rigoroso da população, incluindo lockdown e, de uma hora para outra, já estava flexibilizando a circulação.
Portanto, o aumento de atividade presencial deve estar relacionado com o aumento da capacidade diagnóstica e de isolamento. Isso não me parece que está sendo feito na mesma medida que o aumento da circulação de pessoas.
BdFRS - Há cada vez mais um afrouxamento maior no isolamento e a sensação de tudo está quase voltando ao normal. Qual a melhor precaução nesse cenário?
Ronaldo - Eu acho que é preciso tomar cuidado com o discurso transmitido para a população. Eu acho que há uma impressão, seja ela transmitida de uma maneira racional, objetiva, ou através de mensagens subliminares. Talvez o retorno do futebol tenha um papel também nisso, assim como essa discussão toda de reabertura de bares e restaurantes.
Temos um cenário também de um baixo nível de políticas efetivas de educação, comunicação, promoção de acesso a insumos como máscaras adequadas com uso correto, especialmente para as populações das periferias. A perspectiva de retorno de atividades de uma maneira geral, passa uma falsa impressão de que a epidemia já passou. Isso se soma e talvez se potencialize com o desejo humano que se volte à vida normal, ao contato com as pessoas, que se retorne as atividades, também considerando o desemprego, a diminuição de renda que ocorreu por conta da pandemia e das políticas que antecederam à covid-19.
Então esses fatores todos podem acabar aumentando a exposição e a condição de vulnerabilidade das populações. Esse afrouxamento maior e essa sensação de que tudo está voltando ao normal pode nos trazer problemas em relação ao comportamento das pessoas. Eu acho que seria preciso ter políticas mais efetivas de educação em saúde, políticas mais efetivas de prevenção e que se pudesse estabelecer essa mensagem, com promoção de recursos para que as pessoas reduzissem a circulação. Quem mora em Porto Alegre, por exemplo, já enfrenta há vários dias novamente trânsito bastante pesado, o que significa que a população está saindo.
Aí se verifica a falta de recursos, por exemplo, para utilizar transporte público, produção de aglomerações, falta de álcool gel, etc. Quer dizer, muitos problemas que eu acho que estamos enfrentando e que reflete a redução de recursos no campo da saúde, no campo da educação, de recursos sociais.
Acho que essa situação toda apenas reflete o que já estávamos vivenciando antes da pandemia, que é desfinanciamento para as áreas sociais, educação, saúde, emprego, renda, toda essa vulnerabilidade social aparece em um momento crítico como esse.
BdFRS - Há uma tendência de queda no número de internações de pessoas em estado grave no RS, que tem justificado as liberações. Essa queda significa que a pandemia está diminuindo? Na tua perspectiva, qual deveria ser o parâmetro para se fazer essa afirmação?
Ronaldo - Essa é uma boa notícia, pelos dados que nós temos acesso, efetivamente vem havendo uma redução de internações hospitalares e de ocupação de leitos de UTI. Isso significa que realmente há uma desaceleração, uma perda de força da epidemia nesse momento. O que não significa sua resolução. É bem provável inclusive, que a covid-19 permaneça em patamares ainda elevados, ou moderadamente elevados, com essa curva achatada que a gente chama de platô, por um tempo mais longo, com alguns momentos de inflexão, alguns momentos de redução dessa linha de platô, outros momentos de aumento novamente. Isso também está muito relacionado com as questões da vigilância epidemiológica.
Sabemos que tem períodos que os dados reduzem, por exemplo, no final de semana, e na terça-feira aumentam. Então ficamos muito sujeitos a essas oscilações momentâneas. Mas possivelmente nós teremos a permanência da epidemia até que tenhamos a vacina disponível. Possivelmente tenhamos o que eu chamo de bolhas de transmissão. Não dá para afirmar ainda quais são essas populações, mas é bem possível que alguns clusters, como presídios, como alguns aglomerados urbanos, hospitais, eventualmente frigoríficos, alguns locais que abrigariam o vírus e a circulação entre as populações que compartilham daquele espaço físico, que nós tenhamos essa situação e com momentos de transmissão para aquelas populações com mais risco de doença grave. Até mesmo, eventualmente, um caráter mais endêmico, até que tenhamos uma vacina efetiva e cobertura vacinal em altos níveis que permita a eliminação da covid-19.
Agora ainda é muito cedo para falar nisso. É possível que covid-19 permaneça entre nós durante alguns anos, durante um período mais longo, até que se tenha um mecanismo de eliminação completa do vírus.
Edição: Marcelo Ferreira