No diálogo e amorosidade freireanos, sendo mais movimento e menos instituição, gesta-se o novo tempo
Na maioria dos meus sonhos recentes, ou pesadelos, estou/estamos enredado/as/os/emaranhado/as/os nalgum beco sem saída, rodando em ruas diferentes ou iguais, sem saída, não conseguindo chegar a lugar algum. Acordo exausto.
E me pedem, entidades e articulações variadas, para fazer análises de conjuntura, o que faz parte da minha ação política há décadas. A dificuldade de entender os fatos e explicar o contexto é cada vez maior, quanto mais dizer ou apontar o que vai ser do Brasil amanhã ou daqui há alguns anos, ou qual vai ser o resultado das eleições de novembro. A complexidade dos tempos que vivemos, em que estamos: tempos imprevisíveis, quase insondáveis. Tempos absolutamente obscuros.
Vejo ao meu redor quase todo mundo na mesma perplexidade que eu. Leio, leio, leio, busco informações em todas as fontes confiáveis, aproveito o confinamento, os dias e as horas disponíveis, mas as luzes são poucas.
Onde estará a luz no fim do túnel? Haverá luz no fim do túnel?
A crise política mundial se aprofunda. Trump ameaça romper a ordem democrática, se perder as eleições americanas. Só o fato de se levantar essa possibilidade inédita deixa o mundo em sobressalto e perigo. Somado aos golpes e ameaças à democracia em diferentes países, em especial na América Latina e Brasil, deixa tudo perigoso e incerto.
A crise econômico-social se aprofunda no Brasil: fome, miséria e desemprego. O próprio presidente da República, em vez de propor e buscar soluções, fica se lamentando e ‘atirando pra tudo que é lado’, enquanto sua política econômica só beneficia o mercado, os rentistas e o grande capital. O Brasil está prestes a voltar ao Mapa da Fome da FAO/ONU. A inflação está voltando, os produtos da cesta básica e dos alimentos estão nas alturas, trabalhadores e trabalhadoras de salário mínimo, os mais pobres entre os pobres e os sem renda sofrendo as consequências imediatas.
O neofascismo aliado ao ultraneoliberalismo toma conta da sociedade. O ódio e a intolerância levam a assassinatos em número crescente de jovens negros, indígenas e do povo LGBTT, aos feminicídios e à violência social. O presidente da República, sem nenhuma base na realidade e na história, fala que o Brasil é um país cristão e conservador, uma contradição em termos, fala de cristofobia, o que só fortalece o ódio e a intolerância já reinantes.
O descrédito da política se aprofunda, e, tudo indica, ficará visível nas eleições municipais de novembro, com o crescimento das abstenções, dos votos brancos e nulos, estímulo à compra de votos. E um mal-estar geral na sociedade em relação à política como ação em favor da pólis e do cuidado com a Casa Comum. Fake News, mentiras, que já decidiram uma eleição presidencial, continuam a todo vapor.
O Poder Judiciário e o Sistema de Justiça estão sob comando do poder dominante, aliás, não pela primeira vez história - vide 1964 -, preocupados em manter, e até ampliar, seus privilégios.
A boiada está passando impune, nas palavras do ministro do Meio Ambiente, as queimadas vão aumentando assustadoramente, colocando em risco não só a ‘Querida Amazônia’, na feliz expressão do Papa Francisco, mas a própria humanidade e seu futuro, como vivem denunciando, entre outros, Noam Chomski e Leonardo Boff.
Quase 150 mil mortes no Brasil, mais de 1 milhão no mundo, por causa da pandemia do coronavírus, sem perspectiva de quando a tragédia, com uma vacina, vá acabar. Sem esquecer a irresponsabilidade e descompromisso de governos, como o brasileiro, e a incapacidade de grande parte da sociedade de se proteger coletivamente.
Felizmente há também boas notícias, que podem/devem servir de referência do novo, do futuro, da utopia e do Bem Viver.
Cartas de bispos, padres, leigos, as Declarações da CNBB sobre a Amazônia, a ecologia integral, a nova Economia e o Pacto global pela Educação propostos pelo Papa Francisco acordaram a Igreja católica. São alento, junto com o forte Grito das Excluídas e dos Excluídos acontecido em 7 de setembro, e com a Sexta Semana Social Brasileira, em curso até 2022, com o tema MUTIRÃO PELA VIDA: TERRA, TRABALHO E TETO. A Sexta Semana está sendo assumida pela sociedade - movimentos sociais, ONGs, movimento sindical -, pelas mulheres e homens de boa vontade, pelas forças democráticas e progressistas, com o poder de forjar uma grande unidade popular.
Os Comitês Populares contra a Fome e o Coronavírus acontecem na base da sociedade, grito e gesto de solidariedade. De baixo para cima, a transformação vai sendo gestada e construída, com formação na ação e a construção de um projeto alternativo de sociedade e de futuro.
O Movimento SUS nas Ruas é um exemplo, entre outros, do que precisamos na conjuntura: solidariedade em primeiro lugar; práticas e saberes populares na ponta e na base popular; formação na ação; articulação e unidade com as forças populares e democráticas; defesa de políticas públicas como o SUS; projeto de sociedade, o Bem Viver.
As eleições de novembro, se forem programáticas, debaterem valores e práticas da boa política e projetos de sociedade, podem ser um bom momento de acordar eleitoras/es, e mudar espaços de governo e de poder. O engajamento político e eleitoral é fundamental.
A Campanha Latino-americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Freire e a celebração de seu centenário – ESPERANÇAR AMÉRICA LATINA –, coordenadas pelo CEAAL (Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe) e um conjunto de entidades e movimentos sociais, e o ‘Freirear o PT’, lançado pela Secretaria Nacional de Formação do Partido dos Trabalhadores, são luzes no horizonte a aquecer o coração e encher o espírito de esperança. Não é repetir, como sempre falou Paulo Freire, mas sim superar e reinventar sua pedagogia libertadora no contexto e conjuntura atuais.
No diálogo e amorosidade freireanos, sendo mais movimento e menos instituição, ninguém soltando a mão de ninguém, gesta-se um novo tempo: com unidade do campo democrático-popular nas lutas e mobilizações, no trabalho de base e na formação. São as urgências urgentíssimas do tempo e da conjuntura.
Não sei para onde vamos no médio e longo prazos, que dirá no curto. Há uma longa luta e caminhada pela frente. Mas com unidade, coragem revolucionária, no esperançar freireano, mais cedo ou mais tarde, como em outros momentos da história, a luz no fim do túnel vai aparecer e brilhar.
Edição: Katia Marko