No início do Século XX, o apartheid racial subsistia como sistema e o preconceito era regra
Início do Século XX, fim da escravatura, um período decisivo onde assentavam-se as bases da Nova República. O estado do Rio Grande do Sul investia pesado em sua “reforma agrária” européia, em parceria com a União através do Programa de Colonização coordenado pela Diretoria de Povoamento do Solo que remeteu para o estado grandes levas de imigrantes, com empréstimos para a construção de moradia, ferramentas e sementes (250$000 e 150$000 respectivamente) e distribuição de lotes de terras financiadas pelo Estado, doadas ou compradas a preços irrisórios.
Os colonos, quando aqui chegavam podiam escolher livremente o lote de sua preferência e não raro encontravam trabalho com o próprio Estado, prestavam serviços na abertura de estradas, construção dos diques, barracões, abertura de picadas que interligassem as comunidades, etc. Ou seja, o Estado lhes provia o trabalho assalariado que permitia a quitação dos empréstimos. E o negro liberto?
O negro permanecia nas estâncias ou empurrado para os corredores e arredores das cidades, para usar um termo gaúcho, vivendo de changa, prestando serviços sazonais aos estancieiros e plantando pequenas roças em cantos de terras desprezadas. A partir da vida de dois membros de minha família quero discorrer em breves parágrafos o que entrelaça-se com a vida da maioria das famílias negras gaúchas (e brasileiras), a própria história e o anedotário popular.
O ano era 1901, enquanto os colonos arremetiam para o Rio Grande do Sul e iniciavam sua jornada, acolhidos pelo Estado, em Encruzilhada do Sul nascia meu bisavô materno Lucídio Nascentes de Freitas, filho de agricultores libertos (descendentes diretos de escravos) que continuavam prestando serviços aos fazendeiros da região. Aos doze anos foi entregue a uma família branca de estancieiros da cidade de Tapes, quando o estancieiro passou por Encruzilhada do Sul buscando trabalhadores para atuar nas granjas de arroz.
Segundo consta, o estancieiro teria dito que procurava um negrinho e que o menino lhe servia, tendo o consentimento dos pais para que o levasse. Viveu desde então com esta família, até constituir sua própria e conseguir amealhar recursos para comprar um terreno onde pode se estabelecer com a família e que os filhos então pudessem estudar, migrando mais tarde para Porto Alegre. Não lhe agradava a vida de diarista, passou a trabalhar com empreitadas, ele e os filhos mais velhos, onde podia administrar melhor seu tempo e da família. Sua única mágoa era como a família o tinha “dado”, morreu com 102 anos.
Meu avô, Guiomar Godinho, nasceu e acabou seus dias em Cerro Grande do Sul. Nascido em 1930, com nove anos de idade ficou órfão, ele e mais sete irmãos, sem terra, foram todos criados pelo irmão mais velho, trabalhando como arrendatários em terras alheias e/ou prestando serviços para famílias mais abastadas da região. Assim como a família de meu bisavô, Tio Patrício, o irmão mais velho, também foi assediado para que “desse” os irmãos a outras famílias, porque, lhe diziam, não tinha condição de criá-los. Respondeu sempre negativamente, dizia, segundo meu avô, “não dou nenhum dos meus irmãos, se eu precisar comer só batata-doce, eles comerão junto comigo”.
Tio Patrício optou por não constituir família, doou a vida em prol da criação dos irmãos, conseguiram comprar uma pequena propriedade e morreu jovem, a propriedade ainda lá existe, ficou para a irmã mais nova e onde reside parte da família até hoje. Meu avô nunca aceitou a condição de empregado, constituiu família e junto com minha avó, Íris Freitas da Silva, viveram por onze anos na condição de arrendatários, cultivando a terra e arrendando olarias, vindo a adquirir sua primeira propriedade somente em 1980.
A trajetória desses homens anônimos tem muito em comum, uma infância cortada, falta de terra e de acesso à educação, fórmula completa para tornar-se um pária do campo. Poucas famílias negras conseguem contar sua história a mais de três gerações, as que conseguem são assim cheias de furos, em algum momento elas se perdem e torna-se praticamente impossível achar o fio da meada, são histórias de gente que se perdeu ou foi “perdida” no caminho, gente que o Estado menosprezou e passou a borracha, invisibilizou.
Vivendo em um rural cindido pela divisão de classe, as famílias conquistavam respeito pelo “fio do bigode” e não-raro pela violência, no fio da faca literalmente. O apartheid racial subsistia como sistema e o preconceito era regra. As festas eram separadas, até meados dos anos 1980, negro não dançava em baile de branco e branco não dançava em baile de negro. Negro bom não se mistura, música do Crioulo dos Pampas é sintoma desse período.
Quem não conhece a poesia de Jaime Caetano Braun. Nela o negro é figura constante, quase sempre como um sujeito carregado de sabedoria, que aprendeu com o tempo a filosofia e a dialética do cotidiano, note-se duas das mais conhecidas Tio Anástacio e Payda do Negro Lúcio. Mas, refletindo os costumes da sociedade, renega sempre que haja discriminação e preconceito, reflete um mundo perfeito onde todos têm as mesmas oportunidades, a mais emblemática a esse respeito é Payada ao Negro: “Aqui não há preconceitos, de cor nem religião. Aqui qualquer cidadão desfruta do mesmo direito”. Ainda sobre Tio Anastácio, quando a força se esvai o negro perde o valor e a sabedoria de nada adianta:
“E até parece mentira
Negro velho de valor!
Morreste no corredor
Como matungo sem dono
Não tendo neste abandono
Ao menos um companheiro
Que te estendesse o baixeiro
Para o derradeiro sono!”
Assim como a poesia de Jaime Caetano Braun, os causos, mitos e lendas populares trazem o negro como o maula, valente, destemido, corajoso ou violento, uma imagem do negro rural de outrora (que permanece até hoje). Escondem a face da falta de oportunidade a que fomos submetidos e o estratégico escanteamento no desenrolar da história gaúcha, o desenvolvimento político e econômico não nos incluiu, deliberadamente.
Culturalmente nossas comidas, ritmos musicais, muitas crenças e vestimentas, foram incorporadas ao patrimônio gaúcho, todavia, sua origem não é contada, como se ferisse o orgulho farroupilha dizer que a milonga, a vaneira e o tango, por exemplo, são ritmos de influência negra.
A participação do negro na Revolução Farroupilha, na Guerra do Paraguai, e em tantas outras escaramuças de menor relevância nunca teve outro sentido, senão a liberdade, sempre traída. E pra colocar essa história nos trilhos não há vela acesa pro Negrinho do Pastoreio que baste.
Cresci ouvindo histórias de assombração, de negros que pelearam com o diabo (e o diabo geralmente era branco), de negros mortos em escaramuças com patrões – quando lograva vitória passava a vida em fuga, de negros mortos e enterrados junto com tesouros de estancieiros e padres no pé de alguma figueira perdida no pampa, esperando uma alma boa e pura que possa desenterrar a “burra” e lhes libertar para o derradeiro descanso.
O imaginário popular ensinou que ali tem muito de verdade, e que enquanto existir um de nós passando fome, sem emprego, sem acesso à educação, sem terra, sem moradia digna, enquanto as cadeias forem um amontoado de jovens negros e enquanto a polícia continuar matando nossos filhos. Enquanto existir uma criança negra no semáforo pedindo esmola, enquanto o preconceito racial persistir como norma social, existirá um negro aprisionado ao pé de alguma figueira, esperando ser libertado.
Edição: Katia Marko