O prédio da Escola Estadual de Ensino Fundamental Estado do Rio Grande do Sul, que fica no Centro Histórico de Porto Alegre, está ocupado por estudantes, mães e pais de alunos e apoiadores desde o dia 4 de setembro. O ato de resistência contra o fechamento de escola foi realizado um dia após o governo estadual arrombar o cadeado da escola para remover equipamentos, materiais e documentação. Desde então, a comunidade tem se mobilizado e pressionado por uma abertura de diálogo com a Secretaria Estadual de Educação (Seduc), que já apresentou duas versões diferentes sobre o motivo da transferência dos alunos. Para o grupo, o encerramento da escola é mais um capítulo do desmonte que a educação vem sofrendo no estado.
O processo envolvendo a escola e o Executivo não é novo. Entre 2015 e 2016, o então governo de José Ivo Sartori (MDB) tentou transferir os alunos para a Escola Professora Leopolda Barnevitz, mas não obteve sucesso. Agora, o governo de Eduardo Leite (PSDB) retomou o projeto. No dia 10 de agosto, solicitou à direção a entrega das chaves no final daquele mês, alegando que o prédio seria usado para abrigar pessoas em situação de rua e que a estrutura seria transferida para a Escola Parobé. Comunidade e conselho escolar não aceitaram a proposta e as chaves não foram entregues.
Após o arrombamento, no último dia 3 de setembro, seguido da ocupação, audiências públicas foram realizadas, quando o governo mudou o discurso. A Seduc passou a alegar problemas estruturais e a informar que as atividades da instituição de ensino serão transferidas para a Escola Professora Leopolda Barnevitz, localizada nas proximidades, visando “garantir a segurança da comunidade escolar”. A direção afirma que esse problema estrutural é uma infiltração proveniente da caixa d’água que atinge algumas salas. A reforma, que a Seduc tem conhecimento há mais de ano e nada realizou, está sendo feita pelo grupo que ocupa o prédio.
Com cerca de 284 alunos, a Escola Estado do Rio Grande do Sul tem como diferencial sua cultura inclusiva, na avaliação da sua diretora, Elisa Santana Oliveira. “Temos um bom número de alunos com necessidades especiais justamente porque as turmas são pequenas. Os pais gostam disso porque é fácil adaptar as crianças nessas turmas menores. Temos duas professoras especializadas e a sala de recursos que presta um atendimento adequado a essas crianças. Outro fato é termos o EJA, que também presta um serviço importante, já que atende alunos-trabalhadores, que trabalham no Centro e que querem continuar os seus estudos”, afirma.
“A escola é acolhedora, uma escola pequena, tem de 20 a 25 alunos por turma no diurno, tem sala de recursos no dia”, complementa a professora Daniela Dutra Prates, docente na escola desde o ano passado na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). “À noite ela também é acolhedora, com o EJA, por se tratar de uma escola de fácil acesso para os trabalhadores que moram na periferia ou em outras cidades da região Metropolitana e trabalham em Porto Alegre, por ser uma região central em que passa ônibus de todas regiões.”
Para além do ensino um espaço de afetividade que passa por gerações
Uma mãe sai com sua filha pequena, com máscara, anda algumas quadras e para na calçada, olha para dentro do prédio laranja localizado na Rua Washington Luiz e adentra a escola ocupada. Esse ritual feito algumas vezes por semana é para lutar pela educação e tentar deixar a filha mais tranquila, aplacando a saudade do vínculo criado com a escola. Sentimento normal, não fosse o fato da escola estar sob risco de fechar sem levar em conta o pertencimento e a afetividade, como no caso de Rosângela de Cássia Barbosa, mãe de aluna da nona série e avó de aluna na segunda série.
“Tenho essa relação com a escola desde a segunda série da minha filha. Acho uma excelente escola pública, tem um ensino muito bom, nunca tive queixa. Os professores todos sempre ensinaram muito bem as crianças. É uma escola que dá segurança para a gente. Eu, que fico responsável pela minha filha e neta, quando vou trabalhar fico tranquila porque é uma escola com um portão sempre com um cadeado, sempre tem uma professora na entrada cuidando para que todos os alunos entrem. Até nós mães e pais temos que esperar um professor vir abrir”, relata Rosângela.
Para a diretora da escola, um dos pontos mais relevantes e importantes da escola é essa referência para várias gerações. “Muitas pessoas já estudaram na escola. Ela vai fazer 58 anos. Então para diversas gerações, diversas famílias, ela tem uma importância também territorial. Temos alguns alunos que não são moradores do Centro, mas que seus pais trabalham aqui e levam seus filhos para a escola porque fica fácil em relação ao trabalho”.
Outro ponto destacado pela diretora envolve os alunos que ficam no turno inverso no Instituto Providência e depois seguem para a escola. De acordo com Elisa, é um fator que facilita a rotina dos pais. O caso de Rosângela, que tem filha e neta na escola, mostra o exemplo de uma família que se tranquiliza com isso. “Eu pego uma de tarde e a outra de manhã e levo para outra escola, quando não posso a minha filha vai sozinha as três quadras, não precisa atravessar a rua”, pontua.
Elisa também destaca o risco para as crianças com a mudança para a escola Leopolda. “Os alunos teriam que atravessar a Perimetral, muitos dos nossos alunos, mesmo pequenos, segundo aninho, terceiro aninho, se deslocam sozinhos das suas casas até a escola, o que não vai ser possível no Leopolda”, afirma a diretora.
“Vai ser um desastre nas nossas vidas a gente imaginar que uma criança tenha que atravessar quatro ruas, sendo uma a Avenida Perimetral, caminhar pela República e ir até a Cidade Baixa para poder estudar. É mais de um quilômetro, não tem condições”, lamenta Rosangela.
Quando não está trabalhando, Rosângela é uma entre tantas mães e pais de alunos que estão na ocupação. “Ajudo na divulgação pela internet de tudo o que está acontecendo. A gente está pressionando o governo porque não queremos ir para outra escola em hipótese alguma. Primeiro por todas as qualidades da escola, da segurança... segundo porque a escola para mim e para muitas mães fica aqui na frente do serviço. Em qualquer situação que aconteça, tanto com minha filha quanto com minha neta, a professora me chama para resolver um problema e em cinco minutos estou ali na escola.”
O envolvimento da comunidade é outro ponto sobressalente, afirma a professora Daniela. “Sempre ocorrem pequenos reparos na escola por conta dos pais que se envolvem muito”, aponta, citando como exemplo o problema com a caixa d’água que ocorreu ano passado. Por ser uma estrutura antiga, ocorreu infiltração em duas salas da escola e no corredor do segundo piso. Diante do descaso do Poder Executivo, a comunidade escolar se mobilizou e fez os reparos nas salas atingidas. “Se a infraestrutura fosse uma prioridade do governo, eles teriam resolvido ano passado ou agora na quarentena, em que a escola não está sendo ocupada. Era fácil de resolver”, destaca Daniela.
Apoio da comunidade
Morador do Centro que apoia a ocupação, o militante do Levante Popular da Juventude Victor Frainer compara as políticas federal, estadual e municipal no que diz respeito à educação. “Fechar escolas é a política do governador Leite, é a política de Bolsonaro que corta verba das Universidades e dos Institutos Federais e é a política de Marchezan, que fecha postos de saúde e sucateia também nossa educação municipal”, afirma. Para ele, a ocupação da Escola Rio Grande do Sul é uma expressão da luta entre dois projetos, “o do governador que fecha escolas e coloca nossas famílias em risco ao decretar o retorno das aulas em plena pandemia e o projeto da comunidade, do povo, que luta pela escola, pela educação e pela vida”.
Ele explica que a ocupação vem se organizando por meio de reuniões com a comunidade e movimentos apoiadores. “Temos construído, enquanto movimento social, atividades para fortalecer a luta. São faixas, cartazes lambe-lambe, camisetas, muralismos pela escola para que a gente consiga envolver toda a cidade nessa luta.” Victor relata que as torcidas antifascistas rodaram a cidade com faixas contra o fechamento e a ocupação tem ido protestar em frente ao Palácio Piratini.
Ainda segundo ele, diversos moradores e empresários da região também fortalecem a ocupação. “A escola se tornou assunto em todo o Centro Histórico com lojas doando materiais e alimentos. Esses dias eu estava comprando tinta para um muralismo na ocupação e descobri que aquela ferragem havia nos doado um chuveiro, e ainda nos deu desconto para nossa compra.” Tudo sempre feito com muito cuidado. “Recebemos e higienizamos as doações, preparamos as refeições de forma a não expor ninguém e construir um ambiente de luta, mas de cuidado com a pandemia.”
Projeto de desmonte da educação
O ensino para jovens e adultos é um ponto relevante da escola, que é a única pública a oferecer a modalidade no Centro. “A nossa escola, junto com outras do EJA, está sofrendo ataques desde o ano passado para ser fechada. O entreguismo desse governo é que ele fecha o público para dar a boquinha para o privado. Com a Escola Rio Grande do Sul não é diferente, a gente sabe que aquele prédio ali tem uma especulação imobiliária grandíssima. Ao lado tem uma ampla garagem. Ela está sempre sendo visada por grandes empreendimentos, ainda mais com a vitalização no Largo dos Açorianos, da Orla”, destaca Daniela.
Rosângela comenta que tem amigas que foram para o EJA para aprender a escrever o nome, assinar seu próprio documento, e para poder ler o nome do ônibus sem ter que pedir para alguém na parada. “Diz o secretário que tem outras escolas no Centro com EJA. Mentira. As escolas do estado com EJA de graça que tinham aqui ao redor, inclusive uma delas era a Leopolda, ele mandou tirar. Então os EJAs que têm aqui no Centro são para os alunos que podem pagar R$ 200,00 ou R$ 300,00 para estudar. Os que se matam recebendo um salário de miséria e muitas vezes ainda pagam para poder estudar. A comunidade do Centro e todo mundo vai sair perdendo”, afirma.
O destino de servidores também é uma incerteza, aponta Daniela. “Segundo o secretário Faisal Karan, todo mundo ficará bem, ninguém será desabonado pela saída da escola, mas a gente sabe que não. Eu sou nomeada e eles terão que me mandar para outra escola, mas e os meus colegas que têm contrato, o que será feito deles? E a equipe diretiva que foi eleita em um processo democrático de pais, alunos e professores? Temos várias questões que perpassam essa gana do estado em querer especificamente esse prédio”, aponta.
Fechamentos das escolas já vem de longa data
De acordo com o 2º vice-presidente do CPERS Sindicato, Edson Garcia, o fechamento das escolas já vem acontecendo desde o governo Sartori e continua no governo Leite. “Entre 2015/2016 começou um tremendo levante de fechamento. Começou com alguns fechamentos de escola, outros fechamentos de turnos, que é por onde começa o processo”, expõe.
O dirigente exemplifica com o que aconteceu na Escola Infante Dom Henrique. “No momento que eliminaram o turno da noite, não abriram mais matrículas e a escola foi se reduzindo, na realidade eles queriam ter fechado a escola”, aponta acrescentando também outros descasos, como na Escola Alberto Bins. “Uma escola toda reformada, bonitinha. E de repente, agora ela tá lá aos cacos, sem janela, sem louça, porque as pessoas estão roubando tudo e o governo nunca mais fez nada”, acrescenta.
Edson destaca a campanha “Quem fecha escolas abre presídios” feita pelo CPERS em 2015. O sindicato vem fazendo um levantamento sobre a situação das escolas no estado. De acordo com a entidade, somente entre 2019 e 2020, mais de dez escolas foram fechadas, entre abandono, municipalização ou cedência para outros fins.
Arrombamento foi denunciado
A situação envolvendo a escola virou peça de uma denúncia criminal articulada por deputados da oposição. Foi através de duas comissões da Assembleia Legislativa, a de Educação e a de Segurança e Serviços Públicos, assinada pelos presidentes, deputada Sofia Cavedon (PT) e deputado Jeferson Fernandes (PT), respectivamente, e pela deputada Luciana Genro (PSol).
Nesta segunda-feira (14), foi realizada uma audiência pública solicitada pela Comissão de Educação da Assembleia Legislativa, com o Ministério Público do RS, onde foi levantada a questão da escola. Durante quase três horas a comunidade escolar expôs todo o processo. Na avaliação do dirigente do CPERS, o que aconteceu com a escola pode ser considerado um encaminhamento criminal. “O que houve foi na realidade um crime de arrombamento e também dos dados das pessoas. A equipe diretiva eleita é a responsável pelo patrimônio e pelas informações. Como é que eles entram na escola sem a diretora e sem nenhum membro da equipe diretiva?”, questiona.
Lutar até o fim
“Estamos com a ocupação desde a semana passada e o governo simplesmente faz de conta que não há nada acontecendo. E não trouxe de volta, por exemplo, toda a documentação das crianças e a documentação da escola. O governo levou todos os arquivos, levou os armários embora, arrombou todas as portas, arrombou o portão, a grade e foi entrando levando tudo, e não disse para onde, um tremendo desrespeito. O pessoal continua e continuará ocupando”, afirma Edson.
Conforme salienta a diretora Elisa, o arrombamento foi uma violência total e inviabilizou o trabalho da equipe escolar. “Continuamos atendendo os alunos normalmente como a gente já vinha fazendo. Por conta da pandemia a gente já estava em um sistema de plantão, em que atendemos a comunidade às quartas-feiras. A gente mantém isso, ainda que tenhamos que imprimir os documentos e atividades para os alunos em casa e levar para escola, porque foi retirada a internet e os computadores”, expõe.
Para a professora Daniela, o fechamento da escola significa uma afronta do estado. “Parece que o que realmente importa não é a educação, me sinto triste. Parece um grande plano, tanto do âmbito federal, quanto estadual e municipal, eles parecem cientes que não
vai dar nada e que podem fazer qualquer coisa”, pontua.
“Hoje estamos numa luta muito grande pela educação. Aqui no RS nem estão dando bola, na realidade. O governo se preocupa mais com a economia do que com a educação. Está mais preocupado em ter dinheiro, e não é para pagar os trabalhadores, porque eu sou funcionária pública", desabafa Rosangela, que promete lutar até o fim pela permanência da escola.
Edição: Katia Marko