A resistência da comunidade acadêmica frente a intervenção do presidente Jair Bolsonaro na escolha do novo reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ganhou as ruas, no início da tarde desta quinta-feira (17), com um protesto protagonizado por estudantes, professores e servidores técnico-administrativos da Universidade. Centenas de manifestantes se reuniram no pátio da Faculdade de Educação (FACED), repudiando a nomeação do professor Carlos Bulhões, que desrespeita o resultado das eleições para reitor realizada em julho na instituição
Com cartazes, faixas e acompanhados de bateria, os manifestantes se deslocaram pelas ruas do centro da Capital, reforçando o caráter antidemocrático do governo federal e os inúmeros ataques à população. Salientaram o perigo da privatização e do sucateamento da educação superior. Entre as palavras de ordem se ouvia: “até na pandemia o Bolsonaro quer intervir na reitoria". Durante o protesto, como forma de proteção ao novo coronavírus, todos usavam máscaras e alguns estudantes circulavam borrifando álcool em gel nas mãos dos manifestantes.
“Estamos aqui hoje para protestar contra a nomeação de Carlos Bulhões como reitor da Universidade. Ele é uma indicação ilegítima, último colocado da lista tríplice. Por mais que exista a prerrogativa em lei, é uma afronta à administração autônoma da universidade e à liberdade da produção de conhecimento. Os estudantes hoje, no país inteiro, estão mobilizados contra as intervenções nas universidades federais”, afirma Victor Martinez, estudante de Direito da UFRGS e integrante da União Estadual dos Estudantes do RS (UEE-RS), salientando que no dia 23 ocorre a Jornada Nacional em Defesa da Educação.
Presente à mobilização, o professor de Agronomia Paulo César do Nascimento também destacou a falta de legitimidade de Bulhões. “Representa para nós mais um ataque à Universidade e à educação, que já vem se expressando em outras coisas, como nos cortes de 20% que estão previstos no ano que vem, no ataque às áreas de ciências humanas que, por exemplo, também tem acontecido, nas aberrações que temos visto no Ministério da Educação. Não é só na UFRGS, várias universidades estão sofrendo esse mesmo problema. Estamos aqui nos articulando e dando uma resposta para isso”, explica.
Representando a categoria dos técnicos-administrativos, o coordenador da ASSUFRGS Sindicato, Rafael Berbigier de Bortoli, destacou que a entidade sempre defendeu consultas paritárias, em que os três segmentos tenham o mesmo peso na escolha da Reitoria. A chapa de Carlos André Bulhões e Patrícia Helena Lucas Pranke ficou na terceira posição na lista tríplice da consulta, atrás da chapa dos atuais reitor e vice-reitora, Rui Oppermann e Jane Tutikian, e da chapa de Karla Maria Müller e Cláudia Wasserman, que recebeu o maior número de votos.
“Não recebeu votos majoritários nem dos técnicos, nem dos estudantes e nem dos docentes. A chapa foi rechaçada pela comunidade universitária. Agora, infelizmente Bolsonaro e Bibo Nunes, que têm um projeto de privatização das universidades e da educação pública, tentam colocar a mão na UFRGS com uma intervenção externa. Estamos dizendo fortemente um não à intervenção e chamando Bulhões para recusar a assumir a Reitoria porque ele não tem legitimidade”, disse Rafael.
Bulhões chegou afirmar que respeitaria a escolha e não assumiria caso não ficasse na primeira colocação, conforme mostra um vídeo da época da eleição que circula nas redes sociais. Dias depois da eleição, o deputado federal Bibo Nunes (PSL) iniciou a interlocução junto a Bolsonaro para efetivar sua nomeação. Em coletiva de imprensa realizada nesta quinta-feira (17), o professor confirmou que aceita o cargo e disse que a transição entre sua gestão e da atual Reitoria começa na segunda-feira (21), quando deve ocorrer o ato de nomeação. O mandato vai até 2024.
Mesmo sendo prerrogativa do presidente a indicação do reitor das federais brasileiras a partir da lista tríplice encaminhada pelas universidades, desde o governo de Lula o resultado das eleições universitárias era respeitado. Sob o governo de Jair Bolsonaro, porém, está já é a 15ª nomeação de um reitor ou diretor de instituições federais de ensino que não encabeçava a lista ou sequer constavam entre os nomes indicados.
A Rede Soberania transmitiu a manifestação ao vivo e conversou com diversos estudantes, servidores, lideranças políticas e apoiadores. Confira:
A importância da autonomia universitária
O Brasil de Fato RS e a Rede Soberania estão acompanhando de perto a questão. Nesta quarta-feira (16), promoveu uma live com a participação de diversas entidades representativas.
A coordenadora-geral da Associação de Pós-graduandos (APG-UFRGS), Vanessa Dias, lembrou que a luta pela democracia e autonomia na universidade é histórica para o movimento estudantil. “Na UFRGS, em 1988, tivemos a última intervenção na Reitoria, na época do governo Sarney, e o movimento estudantil foi bem ativo, puxando greves e mobilizações. De lá pra cá, o modelo de lista tríplice das eleições não mudou, é um modelo bastante defasado. Temos que colocar em pauta esse modelo de eleição para avançar na democracia na universidade”, destacou.
Vanessa comentou ainda sobre as 14 outras intervenções feitas pelo governo em instituições de ensino federal. “É uma prática corriqueira em seu governo, que vem cortando orçamento das Universidades e Institutos Federais, que tem um projeto privatista como Future-se. Na pós-graduação temos o desmonte da ciência e tecnologia, o corte de bolsas”, exemplificou.
Representando os estudantes da graduação, o coordenador do DCE-UFRGS, Theo Dalla, destacou que a Universidade se transforma ao longo do tempo e está em disputa. “Ela também é luta de classe, não é uma estrutura estagnada. Isso se afirma com esse governo que vem com uma ofensiva na tentativa de reformar estruturalmente a Universidade de forma muito nítida”, avaliou. “Não é apenas Bulhões, é um projeto de universidade bolsonarista, a tentativa de impor esse projeto obscurantista anticiência, antinacional, privatista, por meio do Future-se, abrindo margem para conseguir colocar Organizações Sociais na administração das universidades, promovendo uma reforma administrativa e flexibilizando de forma absurda o serviço público”, afirmou.
Coordenadora da ASSUFRGS, Márcia Tavares frisou que a entidade tem feito luta permanente em defesa da autonomia universitária e da democracia e paridade dentro da Universidade. Ela lembrou que os embates vão além da intervenção. “Várias questões estão acontecendo. A Reitoria tem que defender a Universidade. Os cortes estão acontecendo, tem a questão dos terceirizados. Onde anda a resistência institucional?”, questionou.
Segundo ela, é preciso aprofundar formas de resistência. “Existe uma correlação de forças, o fascismo está no poder. E quando o fascismo está no poder, a gente precisa de muito mais resistência do que a gente teve até hoje. Não tem só a intervenção, mas também como vamos nos unir enquanto entidades junto com o institucional para fazer essa defesa da autonomia”, destacou.
O presidente da ADUFRGS Sindical, Lúcio Vieira, disse que a nomeação, apesar de lamentável, não surpreende a entidade. “É marca desse governo Bolsonaro, que entre outras coisas escolheu o serviço público, as instituições estatais, como inimigas do seu projeto de governo. Ao fazer esse tipo de ação dentro da UFRGS, está simplesmente reforçando sua tese de que há que se colocar dentro de cada Universidade Pública do país um nome que seja confiável. Assim, rejeita qualquer forma de democracia e autonomia, aquilo que consagra a característica do que deve ser uma Universidade Pública no país.”
Para Lúcio, o momento é de resistência. “É necessário que parlamentares, deputados e senadores que têm compromisso com a democracia, com a coisa pública, com o Estado de bem-estar social, com o Brasil, se coloquem contra esse tipo de postura. O governo está contra a sociedade. O que ele está fazendo é a destruição do modelo de Estado Público que nós estamos há muito tempo construindo. Então nós estamos frente a esse desafio”, finalizou.
Para a presidenta do ANDES-UFRGS, Rúbia Vogt, é muito importante o diálogo com a sociedade para entender o significado e a consequência dessa intervenção em uma Universidade “que presta um serviço público, uma casa do saber e lugar de formação dos futuros profissionais que vão nos atender em diversas áreas. O que pode sair desse ato, as consequências são muito graves”.
Ela também critica a lista tríplice. “Entendemos que essa é uma herança dos tempos ditatoriais que mesmo em tempos democráticos não se enfrentou. Era ponto de negociação na greve de 2015 o fim da lista tríplice, sempre foi uma bandeira nossa que esse processo de eleição se encerre dentro da Universidade”, salientou.
Assista ao debate completo:
* Com a colaboração de Ezequiela Scapini
Edição: Katia Marko