Rio Grande do Sul

DEFESA DA EDUCAÇÃO

Artigo | A encruzilhada da Universidade Brasileira: soberania ou submissão

Diante da intervenção de Bolsnaro na UFRGS, é fundamental a mobilização e o fortalecimento da democracia interna

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Um dos grandes problemas em interromper a autonomia universitária é que todos projetos que são estudados seriam do interesse de quem está no poder" - Levante Popular da Juventude

A autonomia universitária não surge, apenas, como um ideal de independência pelo isolamento. Ela aparece como uma força sociocultural e política que se erguia contra o monopólio do saber.

Florestan Fernandes

O debate sobre autonomia faz parte da universidade desde sua criação. Esse conceito complexo vem promovendo várias discussões e interpretações diferentes ao longo da história. Para uns, a autonomia é a negação de qualquer vínculo com o Estado, a universidade teria o poder de se autogovernar; para outros, essa autonomia é relativa e se modifica em pontos específicos na medida que a universidade apresenta um crescimento na qualidade do ensino. Esse debate se origina ainda na Idade Média, quando surgiram as primeiras universidades e a intervenções da Igreja e do Estado fazia impossível produzir conhecimento válido. Mais tarde, quando a universidade chega na América Latina, esse debate volta com força: em 1918, na Argentina, a Reforma de Córdoba pauta a transformação da universidade, que ainda se submetia ao modelo colonial. O movimento de Córdoba inaugurou uma identidade moderna para a universidade, que passou a ser exemplo para todo o continente. No Brasil, a autonomia universitária só foi conquistada plenamente a partir da Constituição de 1988, cujo Artigo 207 garante que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Nos últimos tempos, três acontecimentos no país trouxeram o tema da autonomia das universidades públicas à tona, abrindo espaço para o debate sobre sua importância e mostrando sua atualidade na conjuntura.

O primeiro ocorreu entre 2016 e 2017, no qual, diante da crise financeira do estado do Rio de Janeiro, o governo do estado parou de repassar recursos para a universidade estadual, deixando-a vários meses sem o pagamento das suas despesas. Esse cenário levou ao fechamento da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) por vários meses, com prejuízo não só para toda a comunidade acadêmica, mas também para o desenvolvimento das pesquisas realizadas pela universidade e o atendimento à população prestado em suas unidades de saúde.

O segundo aconteceu em outubro de 2018, durante campanha para as eleições presidenciais, quando várias universidades públicas foram alvo de operações de fiscalização da Justiça Eleitoral e das autoridades policiais, que reprimiram manifestações estudantis antifascistas, sob a justificativa de evitar propaganda eleitoral, em violação à liberdade de expressão e à autonomia universitária.

Por último, em abril de 2019, o governo federal, que já manifestava o descompromisso com a democracia na escolha de reitores, anunciou, com intensa campanha difamatória contra professores, estudantes e instituições, a proibição do uso de recursos públicos para os cursos de Filosofia e Ciências Sociais. Além de ter executado contingenciamento de recursos na ordem de 30% do orçamento para as universidades que, segundo palavras do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, promovessem “balbúrdia” nos campi.

A importância da autonomia das universidades é vista também na formação integral dos seus estudantes, na antecipação de cenários futuros. Isso se dá em diversos tópicos da sociedade, como, por exemplo, no exercício de pensar as cidades, captação e aplicação de recursos hídricos, energia, melhoras na educação, saúde e epidemiologia etc. Todas essas formas de construção de conhecimento e investimento social, que ocorrem através dos estudantes, são realizadas com a oportunidade de bolsas de pesquisas e extensões que a universidade oferece e que são propagadas para melhorar o bem-estar da população. A partir de 2016, as bolsas de pesquisa das universidades se destacaram ao verem o intenso crescimento da presença de agrotóxicos nos alimentos, análises que percorreram o Brasil e que tiveram início no RS, por meio de extensão do trabalho da UFRGS em parceria com o DMAE (Departamento de Municipal de Água e Esgoto).

Um dos grandes problemas em interromper a autonomia universitária é que todos projetos que são estudados seriam do interesse de quem está no poder. A autogovernança da universidade serve, inclusive, para garantir que os espaços públicos estejam livres de gerências de governo, igrejas e apurações particulares. Caso uma dessas administrações invada o comando da universidade, o objetivo de converter a academia em agências do sistema de acumulação do capital é concreto. Este propósito escancara um predomínio das relevâncias das corporações acima do que é fundamental para o povo brasileiro. Essas e outras contradições entre o Estado e a emancipação universitária decorre de correlações entre o bloco no poder e o valor da ciência para o bem viver dos povos. É essencial a compreensão da universidade enquanto vanguarda da defesa dos direitos sociais e soberania do país, e que tem um papel a cumprir ao lado do povo, principalmente em momentos da conjuntura como o que vivemos.

Esta semana o debate sobre autonomia volta à tona. Dessa vez, a UFRGS se torna palco de uma intervenção por parte do governo federal na indicação de Carlos Bulhões para a reitoria da universidade. A escolha do reitor acontece a cada quatro anos, e se dá por meio da consulta pública à comunidade universitária, que vota e determina uma lista tríplice. A partir desta lista tríplice, o presidente da república nomeia o novo reitor. Tradicionalmente, o nomeado, independente de sua cancha ideológica, é o primeiro da lista tríplice. Ou seja, a nomeação do terceiro colocado da lista tem respaldo legal, no entanto a consulta pública não é apenas um processo burocrático para a eleição da reitoria, mas sim a validação por parte da comunidade acadêmica para determinar a gestão dos interesses da universidade.

Indo na contramão da democracia, colocando em risco a autonomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o presidente Jair Messias Bolsonaro nomeou um reitor sem respaldo ou respeito na comunidade acadêmica, tornando a melhor universidade federal do país, segundo o Inep, refém de um projeto de desmonte e privatização, um projeto que partidariza a universidade e cerceia a liberdade de cátedra. Carlos Bulhões jamais será legitimado reitor, será sempre um impostor escorraçado que tentará desempenhar o papel de algoz da UFRGS.

Diante dessa perigosa realidade, a mobilização em torno da pauta e o fortalecimento da democracia interna é fundamental. Buscar referência nos diretórios e centro acadêmicos, participar dos fóruns de decisão do movimento estudantil e dos espaços de representação discente da universidade é dever dos estudantes que defendem a democracia e autonomia universitária. Ao mesmo tempo, estabelecer uma relação enraizada entre universidade e sociedade também é essencial para fortalecer e ressignificar a UFRGS diante do Rio Grande do Sul. Construir vínculos de solidariedade entre as categorias que compõe a comunidade acadêmica – estudantes, técnicos, professores e terceirizados – e entre a universidade e povo, principalmente diante da emergência sanitária do Brasil, fortalecem a consolidação de uma universidade com verdadeiro interesse no desenvolvimento de um país soberano e amplamente democrático.

* Isabela Pavan Garda é estudante em licenciatura Letras na UFRGS e professora na Rede de Cursinhos Podemos Mais.

* Laura Barreras é estudante de Administração Pública e Social na UFRGS e diretora de Políticas Públicas para a Juventude da UEE-RS.

* Luana Marques é estudante de Odontologia da UFRGS e coordenadora do Diretório Acadêmico de Odontologia da universidade.

Edição: Marcelo Ferreira