Que o teatro de rua seja, de novo, motivo de celebração libertária e de grandes reflexões
Qual é a natureza específica do teatro de rua? Qual a sua singularidade? De que forma ele se apropria do espaço público urbano? Enquanto tudo caminha para a privatização, o controle e a segregação, o teatro de rua vai na contramão, devolvendo à arte seu sentido público original.
Quem atua na rua certamente sonha um outro futuro, no qual essa possibilidade pública, generosa, realmente democrática, possa existir, e no qual a produção cultural – que é o melhor que o ser humano pode fazer – não seja transformado em um produto de mercado.
Segundo Amir Haddad, do Grupo Tá Na Rua, aqueles que fazem teatro de rua podem: “(...) ser uma possibilidade para um mundo melhor! Para uma redenção. Eu acredito no teatro de rua como esta possibilidade! Porque é uma arte que se faz publicamente, desinteressadamente, por necessidade absoluta de cada um de nós. (…) Sair dos espaços fechados e se exercitar no espaço público, isto já significa um compromisso com a utopia. Todos nós temos isto, e todos nós queremos oferecer o melhor de nós mesmos para melhorar o mundo onde a gente vive.”
Com o teatro de rua, o lugar cênico liberta-se, torna-se móvel, desafia-se num percurso traçado nas artérias da vida cotidiana das cidades. Vemos de novo cortejo, a manifestação, a parada, a festa carnavalesca, a máscara, a “commedia dell'arte”. Uma vez eliminados os assentos fixos e a divisão rígida do espaço, novas relações entre o público e o espetáculo começam a desenhar-se.
Antes de mais nada, o teatro vai surpreender um público novo, com grandes probabilidades de envolver aquele que nunca vai ao teatro. Mas a mobilidade da área de representação implica a mobilidade do público. A representação pode envolver os espectadores, ser rodeada por eles, dilatar-se, contrair-se, parar ou avançar: desloca-se livremente através do espaço.
Dentre os grupos teatrais de rua mais antigos do país estão o grupo Imbuaça da cidade de Aracajú no Sergipe, criado em 1977, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz de Porto Alegre, de 1978, e o grupo Tá Na Rua, do Rio de janeiro, fundado em 1980. Todos estes coletivos seguem atuantes até hoje, e no país existem mais de uma centena de grupos que elegeram a rua para as suas encenações.
Porto Alegre se destacou com mais de uma dezena de coletivos teatrais atuando sistematicamente em praças e parques da nossa cidade. Nos anos noventa e dois mil a cidade foi palco de mostras e festivais de teatro de rua. Mesmo hoje em condições adversas vários grupos continuam atuando no nosso estado, como a Cooperativa de Artistas Teatrais Oigalê, Povo da Rua Teatro de Grupo e o Grupo De Pernas Pro Ár, entre outros.
Estamos vivendo um grande retrocesso social no Brasil, em todas as áreas, e na cultura não é diferente. As instituições culturais estão sendo desmanteladas, e vemos a volta de ações autoritárias de censura e de perseguição aos artistas. Neste momento de intolerância, medo e desesperança, o Teatro de Rua tem um papel importante para enfrentar esses dias que nos apontam para um futuro temerário.
Os coletivos teatrais, e principalmente aqueles que levam a cena para as ruas e praças, precisam de coragem e perseverança para através de um teatro divertido e lúcido, compartilhar com o público a indignação e a esperança de um mundo mais solidário. Enfrentando as ruínas do nosso país com a crença da importância da arte como processo libertador.
Nesses dias difíceis onde a ideia de “normalidade” está distante como um horizonte e a natureza coletiva de nossa arte ameaçada, nos alivia sonhar que os tempos que virão serão tempos de celebrações e manifestações no espaço público. De novo estar no espaço público defendendo nosso direito e ocupá-lo ampla e democraticamente.
Que o teatro de rua seja, de novo, motivo de celebração libertária e de grandes reflexões que, quiçá, nos ajudará a encontrar um caminho novo, distante desse projeto fascista que não quer que dancemos em praça pública e façamos uso da diversidade que configuram nossas vozes, afirmando uma cidade para todas e todos.
Que a potência poética de nossos abraços possa devolver ao espaço público sua verdadeira vocação. O espaço público assim como a arte pública tem o encontro como ponte de partida e chegada.
Em breve, muito em breve...
Este texto tem como único intuito compartilhar o amor pelo teatro de rua, a liberdade, o encontro e pra dizer que estamos com saudade.
Escrito em parceria com Paulo Flores.
Edição: Katia Marko