A recente alta no preço dos alimentos básicos, que impacta principalmente as camadas mais pobres da população brasileira, não pode ser explicada apenas como um reflexo do auxílio emergencial ou da falta de patriotismo dos donos de supermercados. O discurso de Bolsonaro coloca o peso do aumento no colo do varejo e da população, mas oculta a política econômica voltada para a exportação e o agronegócio.
Além disso, na particularidade do Rio Grande do Sul, que costuma registrar uma das cestas básicas mais caras do país, as ondas de alta nos alimentos podem ficar ainda mais pesadas para a população. Isso porque a proposta de reforma tributária do governo Eduardo Leite (PSDB) prevê o aumento do ICMS nos itens básicos de alimentação.
Entre os principais fatores do aumento sentido no país estão os rumos da política econômica do governo federal. Em artigo publicado no Brasil de Fato RS, o frei franciscano e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores, Sérgio Antônio Görgen, aponta como uma das causas do aumento o abandono da agricultura familiar, que é responsável por 70% dos alimentos consumidos no país.
Tomando o arroz como exemplo, o frei fez a conta do peso no bolso dos brasileiros e brasileiras em meio à crise do novo coronavírus. “Em março, no início da pandemia no Brasil, com R$ 600,00 era possível comprar 57 pacotes de arroz contendo 5 Kg. Hoje compra apenas 24 pacotes. No arroz a inflação foi muito maior do que 20%.”
Situação confirmada por Zailde Silva da Silva, 64 anos, aposentada que vive com seu filho na Lomba do Pinheiro, na periferia de Porto Alegre. “Antes de tudo isso, em 2019, nós pagávamos o arroz de 5 kg em torno de R$ 9,00. Hoje o mesmo está em torno de R$ 22,00. O azeite, de R$ 2,49 passou para mais ou menos R$ 5,60 e a carne de R$ 12,00 para mais de R$ 20,00.”
No entendimento de Zailde, a crise já vinha se alastrando há mais tempo, só que com menor velocidade. “Desde a greve dos caminhoneiros começou a alta nos preços, daí por diante só aumentou o custo de vida da população, e pior ainda, diminuíram as quantidades nas embalagens dos produtos”, destaca.
Luana Corrêa de Farias, 35 anos, que vive com o esposo e seus cinco filhos na Vila Pedreira, em Porto Alegre, também sente no bolso a alta dos preços dos alimentos. “Vou ao mercado fazer rancho e o dinheiro que conseguíamos comprar diversos itens, hoje não consigo comprar nem a metade”, desabafa.
Agente comunitária de saúde do Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (Imesf), órgão em extinção pela prefeitura, Luana é liderança comunitária da Grande Cruzeiro e relata perceber a fome batendo na porta das famílias na vila. “Estamos bem a par da situação das famílias de baixa renda. Muitos estão dependendo de ajuda de órgãos não governamentais como sindicatos, União de Vilas, associações comunitárias e órgãos com trabalhos sociais. Pelo que vejo, o povo carente só não está pior por causa desses órgãos”, afirma.
Luana também demonstra preocupação com a redução do auxílio emergencial, confirmada pelo governo, para R$ 300,00. “Pelo que tenho acompanhado na minha comunidade, essa era a única fonte de renda de diversas famílias, com a diminuição de valor a situação vai ficar muito difícil.”
Beneficiada pelo auxílio emergencial, Janine Fernandes, 33 anos, vive com o marido em Novo Hamburgo. Perdeu o emprego de musicista contratada pela prefeitura em abril e faz pães e salgados para se manter no período de pandemia. “Está bem difícil pra nós dois, pois nosso orçamento está limitado. Ir ao mercado, mesmo que para o básico é sempre um grande gasto e também temos as contas de água e luz. Meu segmento está totalmente esquecido pelo poder público e não consigo emprego”, conta, manifestando também preocupação com a redução do auxílio.
“Eu costumava comprar um quilo de arroz, a marca geralmente era a mais barata, em torno de R$ 2,89. Hoje está por R$ 7,69. É um valor muito absurdo”, conta. Mas não é somente no bolso que Janine sente os impactos da alta no preço dos alimentos. Ela explica que criou uma campanha no início da pandemia para arrecadar alimentos para a classe artística da região e quem trabalha por trás dos eventos, além de artistas de rua. “A gente conseguiu auxiliar 210 artistas entre São Leopoldo e Parobé. Mas agora, nos últimos 15 dias, deu uma caída muito grande nas doações e não estamos conseguindo mais montar as cestas básicas devido à falta de alimentos.”
Inflação baixa com alimentos em alta
É curioso analisar que apesar da alta dos produtos básicos, a inflação nos últimos 12 meses ficou em 2,44%, abaixo do limite mínimo da meta de 4% determinada pelo Banco Central. Conforme a economista Anelise Manganelli, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), “a permanência do modelo agroexportador, em detrimento da agricultura familiar diversificada, por exemplo, contribui para o cenário que vivemos”.
“Enquanto em 12 meses a inflação (INPC/IBGE) foi de 2,94%, a cesta básica em Porto Alegre subiu 3,40%, passando a custar R$ 528,61”, explica Anelise, que compartilha a autoria do estudo com a economista Daniela Sandi. Na sexta-feira (4), o Dieese divulgou os dados revelando que 13 das 17 capitais pesquisadas registraram aumento no valor dos itens básicos.
O preço médio do arroz registrou alta em 15 capitais, tendo em Porto Alegre o maior aumento, de 17,91%. Segundo análise do Dieese, entre as razões está a retração dos produtores, que aguardam melhores preços para comercializar o cereal e efetivam apenas vendas pontuais. De acordo com levantamento do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-Esalq/USP), o arroz subiu 100% nos últimos 12 meses. Em setembro de 2020, a saca de 50kg do grão ultrapassou os R$ 100,00. Um ano antes, custava R$ 44,76.
Já o valor do óleo de soja subiu em todas as capitais no mês de agosto. Em Porto Alegre, o aumento foi 21,15%. Mesmo com o Brasil tendo alcançado o posto de maior produtor de soja do mundo neste ano, a maior parte é para exportação. As demandas interna e externa têm elevado as cotações da soja e derivados, explica o Dieese.
Dos 13 produtos que compõem o cálculo da cesta básica, oito registraram alta na Capital. Além do arroz e do óleo de soja, aumentou o preço do tomate (21,33%), da banana (9,76%), do feijão (5%), do leite (4,77%), da manteiga (3,21%) e do pão (3,05%). Teve queda nos preços em relação a julho a batata (-9,86%), o açúcar (-1,89%), a farinha de trigo (-1,35%), a carne (-0,55%) e o café (-0,10%).
Conforme Anelise, os preços finais ao consumidor são determinados por uma multiplicidade de fatores. Ela destaca o aumento da demanda externa, principalmente da China, e o aumento das exportações de grãos e proteínas como soja, arroz e carnes. “A exportação do agronegócio é recorde no ano até julho, alcançando 61,2 bilhões de dólares, um crescimento de 17% da quantidade e 9% em faturamento. Os principais produtos exportados de janeiro a julho foram a soja, carne bovina, celulose, açúcar”, explica. Além disso, também é reflexo da alta do dólar, restrição de oferta por conta de entressafra e demanda residencial maior em razão do isolamento social.
Reforma tributária vai aumentar o valor da cesta básica
A reforma tributária proposta pelo governador Eduardo Leite (PSDB) pode deixar ainda mais caros os alimentos básicos para os gaúchos. “Entre as 17 capitais que o Dieese faz a pesquisa da cesta básica, tradicionalmente Porto Alegre sempre está entre as mais caras, mesmo com itens isentos de ICMS. E uma das mudanças da reforma tributária é justamente a retirada de benefícios fiscais desses produtos”, afirma a economista.
A reformulação dos impostos cobrados no estado foi enviada à Assembleia em regime de urgência pelo governador Eduardo Leite (PSDB) em 10 de agosto e deve ser votada até a próxima semana. A celeridade visa a sanção ainda em setembro, para que as novas regras passem a valer em janeiro de 2021. A proposta reduz cinco faixas de alíquotas para duas (17% e 25%) e retira as reduções concedidas a itens como cesta básica de alimentos e cesta básica de medicamentos.
“Fizemos uma simulação a partir dos itens de consumo que compõem a nossa pesquisa, e, considerando que haja o repasse do aumento do ICMS para o preço ao consumidor, o aumento da cesta acrescida de ovos e gás de cozinha, que não compõem nossa pesquisa mensal, mas que terão aumento de alíquota, o reajuste seria de 13%, algo em torno de R$ 80,00 a mais”, avalia Anelise.
O governo do RS diz que haverá uma compensação desse aumento para as famílias com renda de até um salário mínimo com a devolução de ICMS, o que está chamando de Devolve-RS. De acordo com apresentação do governo, o valor máximo a ser resgatado seria de R$ 61,46. “Portanto, um valor máximo menor do que o aumento no preço da cesta”, analisa a economista, observando que “quem ganhou salário mínimo em agosto gastou mais da metade (50,6%) somente com a compra da cesta básica, sobrando muito pouco para os demais itens do orçamento”.
Na pandemia o impacto é preocupante
Anelise ressalta ainda que, de acordo com a PNAD-COVID19, disponibilizada pelo IBGE, pelo menos 30,1% da população ocupada está recebendo renda menor do que a habitualmente recebida. Para ela, em tempo de crise planetária por conta da pandemia e com o desemprego aumentando, “são preocupantes os impactos nos que menos ganham. A recuperação da economia será lenta e os esforços do Estado precisam estar em proteger aqueles com menores condições de enfrentar o presente e o futuro próximo”.
Em seu artigo, frei Sérgio acredita que a solução para os preços passa pelo aumento da oferta de alimentos com o aumento da produção. Porém, como recordou, Bolsonaro vetou integralmente todas as medidas de estímulo a agricultores familiares na pandemia. “Bolsonaro nega o pão, a mandioca, o leite, o feijão, e os demais alimentos da cesta básica à mesa do povo brasileiro ao vetar a lei da produção de alimentos através da agricultura familiar camponesa (PL 735) aprovado no Congresso”, cobrando dos parlamentares a derrubada do veto.
Edição: Katia Marko