O povo brasileiro sabe: ONG é solidariedade, igualdade, paz. ONGs não são câncer
Estou com câncer há muito tempo e não sabia. Ainda não morri não sei como nem porque.
O Sr. Presidente da República baixou Decreto confirmando meu câncer terminal. Como ele sabe tudo, controla tudo através da ABIN, da Polícia Federal e das milícias, cura tudo, inclusive o coronavírus com a cloroquina, e dizendo que não se precisa usar máscaras, é, pois, em sendo declaração presidencial, indesmentível e verdadeiro. Ou seja, estou, muitas e muitos mais, com um câncer que o Sr. Presidente da República não consegue matar ou curar.
O Sr. Presidente afirmou no dia 04 de setembro de 2020: “Você pode criticar. Você que está em uma ‘ONGzinha’ aí, pegando grana de fora. Vocês sabem que as ONGs, em grande parte, não têm vez comigo. A gente bota para quebrar em cima desse pessoal de lá. Eu não consigo matar esse câncer em grande parte, chamado ONG. Tem na Amazônia, lá no sertão do cabra da peste morrendo de sede, esse pessoal não pinta na área” (Diário do Centro do Mundo, 04.09.2020).
Estou, pois, cancerígeno desde o final dos anos 1970. Há mais de quatro décadas! Naqueles tempos, em Caxias do Sul, eu participava do COM, Centro de Orientação Missionária, e do CECA, Centro de Evangelização, Capacitação e Assessoria, uma ONG. O COM e o CECA eram tão cancerígenos que infectaram gente de todo Brasil e América Latina, que vinha participar de suas atividades, dos cursos de formação, a Teologia da Libertação nascendo. Resultado: todo mundo ia envolver-se nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), Pastorais Sociais, nas lutas populares por direitos e pela redemocratização do Brasil. Câncer e mais câncer se espalhando.
Nos anos 1980, companheiras e companheiros das CEBs, Pastorais sociais, movimento estudantil resolveram/resolvemos criar ONGs de apoio aos movimentos sociais nascentes, às Oposições Sindicais, às ocupações urbanas e rurais, ao sindicalismo combativo: formação de lideranças, história das lutas das trabalhadoras e trabalhadores, cidadania, democracia e direitos humanos. Eram/são ONGs a serviço da vida, na luta por terra, trabalho, teto e participação, na linha do Papa Francisco, celebrado no Grito das Excluídas e dos Excluídos, e na Sexta Semana Social Brasileira, até 2022. O câncer chegou a lugares jamais vistos, cada vez mais incurável.
O câncer espalhou-se definitivamente. Houve a redemocratização, a Constituinte, governos populares e, finalmente, eleições diretas para Presidente da República. E como o câncer pegou todas e todos de vez, foi criada, na metade dos anos 1980, a ABONG, Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais, congregando ONGs de todo Brasil, na luta por políticas públicas com participação social, por direitos humanos e democracia, na defesa do meio ambiente, da Amazônia, do cuidado com a Casa Comum.
Já nos anos 2000, juntaram-se ONGs, militantes sociais, educadoras e educadores populares de todo Brasil para, dentro do Programa Fome Zero, ‘matar a fome de pão, sim, em primeiro lugar, mas também, e ao mesmo tempo, saciar a sede de beleza’, na feliz expressão e síntese de Frei Betto. Foi criada, a partir da equipe cancerígena do TALHER, a Rede de Educação Cidadã, RECID. Câncer ao quadrado.
O câncer foi tão forte que um educador popular chamado Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, preso e exilado na ditadura, entrou em meu/nosso sangue, minhas/nossas veias, com sua Pedagogia do Oprimido, sua Educação como Prática da Liberdade, sua Pedagogia da Autonomia, seu esperançar. Corroeu definitivamente nossa sanidade mental e psicológica, individual e coletiva. Paulo Freire e sua pedagogia libertadora tornaram-se nosso câncer maior, ele que completaria 100 anos em 2021 e cujo centenário começará a ser comemorado a partir de 19 de setembro de 2020.
A mesma sanha cancerígena e a mesma lógica destruidora do atual Presidente da República aconteceram em relação à participação social e popular e à construção democrática de políticas públicas. Foram extintos, por serem câncer, quase todos Conselhos e Comitês Gestores. Extinguiu-se, por exemplo, o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), a CNAPO (Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica). O CONSEA, na sua origem, teve a participação de lideranças como Betinho, e na sua presidência, ao longo do tempo, personalidades como Dom Mauro Morelli, Luiz Marinho, Francisco Menezes, Maria Emília Pacheco.
Quanto câncer em nosso sangue e em nossas veias! Definitivamente, não tenho/não temos mais cura. E, pior, infecto/infectamos quem nos rodeia, quem convive comigo/conosco. Mas, felizmente, o meu/o nosso câncer não mata, não leva ao hospital, não é pandemia. Ao contrário, faz bem às pessoas e à sociedade. Planta solidariedade, cidadania, justiça social, soberania, garante vez e voz a quem está oprimido, defende direitos como comida, saúde, educação a todas e todos, especialmente para os mais fracos e mais pobres.
O povo brasileiro sabe: ONG é solidariedade, igualdade, paz. ONGs não são câncer. ONGs são pessoas que se unem e se organizam, solidárias, para deixar a sociedade mais equilibrada, justa e inclusiva, ajudar os governos a implementar políticas públicas, promover a vida. Diz a ABONG: “Às vezes somos chamadas de ONGs, outras, de organização da sociedade civil, de movimento social e até de ativistas. Seja como for, somos pessoas que estamos juntas trabalhando por um mundo melhor e assim queremos continuar: sendo povo, fazendo para o povo e com o povo.
Desse câncer não preciso/precisamos ser curado/s, para minha/nossa sorte. Viva as ONGs!
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Edição: Katia Marko