A pandemia de covid-19 agravou a crise econômica que já havia no Brasil. O desemprego e o aumento da pobreza indicam uma dramática realidade e os números são alarmantes. A verdade é que, para além de estatísticas, os dados acabam por revelar uma situação que afeta subjetivamente milhões de brasileiros e brasileiras, o que pode causar consequências para a sociabilidade a longo prazo, para além das questões objetivas, não menos importantes.
Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), desde 2017 há um crescimento na extrema pobreza e a hipótese é de que ela siga crescendo, isto é, que o ano de 2020 não termine com recuperações nesse sentido. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid (Pnad Covid-19), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fez um levantamento que aponta 41 milhões de desempregados no segundo semestre deste ano. Além disso, uma outra pesquisa realizada pelo Ibope e Unicef identifica que 9 milhões de pessoas deixaram de comer por algum período durante a pandemia.
Mas esses dados não são resultados apenas do fechamento dos postos de trabalho na tentativa de contenção da disseminação do vírus. Pelo contrário. São justamente as políticas fiscais feitas que permitem um acúmulo da riqueza mesmo em tempos de pandemia. Como mostra uma pesquisa da ONG Oxfam, entre março e junho deste ano, 42 bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em R$ 177 bilhões.
Alguns exemplos são a cobrança desequilibrada de impostos entre ricos e pobres, a isenção de dívidas dada aos bancos, o investimento público nos setores privados, e outros. Esses já são fatores de manutenção da desigualdade social. Contudo, com a crise agravada, as políticas de equilíbrio fiscal recaem sobre os mais pobres, com a diminuição do auxílio emergencial, com políticas de flexibilização trabalhista, com a redução do salário mínimo e com propostas de reforma política como a Reforma Administrativa, para citar alguns exemplos.
Mas, afinal, quais as consequências psicossociais e subjetivas da pobreza? Para Malu Mendes, psicóloga e pós-graduada em psicologia existencial sartriana, o trabalho é constituinte da nossa formação. Contudo, no contexto de desmonte dos direitos e de precarização do trabalho, há um movimento de falta de reconhecimento do sujeito de si. “Hoje a gente trabalha com muitas famílias que não têm garantias de um trabalho formal e aí ficam mais marginalizadas em condições de trabalhos autônomos em que não há garantia de retorno”.
Com auxílio menor, comida acaba antes
Além disso, Malu comenta que de sua experiência clínica tem sido muito comum famílias que possuem renda para apenas duas semanas, não tendo condições financeiras para subsidiar o restante do mês. Isso já acontecia quando o auxílio emergencial estava em R$600. Com a diminuição, é provável que o alimento dure menos tempo na casa de famílias em condição de pobreza.
A psicóloga afirma que há dimensões subjetivas diferentes entre pessoas em condição de desemprego e pessoas em condição de fome. Isso porque “se já está num cenário que está faltando o básico que seria o alimento, possivelmente essa pessoa ou esse núcleo familiar já foi exposto a outros tipos de violações. Subjetivamente falando é uma violação muito grande. E aí o campo de possibilidades é muito restrito. O desemprego deixa a pessoa em um quadro de vulnerabilidade, agora quando falamos de fome há um rompimento muito grande de direitos. A negligência do Estado é muito grande. A gente está lidando com uma pessoa que não se reconhece enquanto sujeito de direito, e isso é muito delicado”. E o que há em comum entre os perfis de vulnerabilidade social agravada com a pandemia está relacionado justamente aos recortes de gênero, raça e classe. “A pandemia apenas torna nítido o que já vinha acontecendo”, afirma Malu.
Alguns estudos apontam como consequências psicossociais da pobreza o déficit na memória, comportamento de desamparo e estresse fisiológico crônico. De acordo com a psicóloga, “cada pessoa pode responder de maneira variada. Mas, realmente, se a gente pega uma situação de uma pessoa que vem de uma miserabilidade muito grande, o seu espaço de sociabilidade, suas relações familiares, relações de rede de apoio, são tão restritas que isso inviabiliza o seu desenvolvimento. E isso vai afetar o seu desenvolvimento físico, seu desenvolvimento emocional e inclusive a forma como essa pessoa vai se perceber no mundo”.
Transformação vem com políticas públicas
Para romper com essa realidade que acompanha os sujeitos ao longo de toda sua trajetória de vida, algumas políticas públicas de moradia, de acesso à alimentação, políticas afirmativas, de inserção no mundo do trabalho com o fortalecimento da CLT e dos direitos trabalhistas, de fortalecimento da pesquisa, do esporte e da cultura, são mecanismos de transformação. Permitem uma vida saudável emocionalmente e possibilitam a construção de uma outra sociabilidade. É preciso “entender as desigualdades e criar subsídios para lidar e romper com ela”, afirma Malu.
Em sua tese de doutorado na Universidade Federal do Espírito Santo, Mônica Nogueira dos Santos apresenta alguns resultados relacionados à condição de pobreza a partir das seguintes perguntas: Qual(quais) sentimento(s) a pobreza te traz? Por que se sente assim?
Como demonstra sua pesquisa, os afetos negativos se sobrepõem aos afetos positivos, tais como tristeza, angústia, revolta, humilhação, incapacidade, fome e solidão. Nos afetos positivos aparecem felicidade, amor, solidariedade, humildade, esperança e vontade de estudar. Esses sentimentos estão relacionados à falta de habitação, falta de fornecimento de condições melhores de vida aos filhos, tentar e não conseguir transformar sua realidade e ter que pedir ajuda. A falta de emprego, como demonstra a pesquisa, é um fator determinante para o sentimento de humilhação que pode causar estresse crônico.
Em entrevista ao Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, o economista britânico Guy Standing, conhecido pela formulação do termo ‘precariado’, fala sobre os afetos gerados pela nova morfologia do mundo do trabalho. Em suas palavras, “é verdade que sempre houve raiva, ansiedade, alienação e anomia. O que é distintivo agora é que os membros do precariado tendem a sofrer agudamente de todos os quatro ao mesmo tempo. A anomia provém de uma baixa probabilidade de mobilidade ascendente. Alienação decorre de ter que fazer muitas atividades que não se quer fazer, mas é capaz de fazer. A ansiedade origina-se da incerteza econômica crônica, e a insegurança e a raiva derivam, em grande parte, do sentimento de que nenhum partido ou político no mainstream articula uma agenda voltada para o precariado”.
Precariedade é projeto da elite
Na capa da última edição da revista Veja, de setembro, intitulada “A dose certa”, a revista imprimiu uma imagem de uma caixa de medicamento escrita no canto superior esquerdo “Auxílio Emergencial” e uma tarja preta centralizada escrita “o uso continuado deste medicamento pode causar dependência”. Mesmo com os dados apontando o aumento da pobreza e da falta de acesso à comida, há quem diga que a Renda Básica Permanente seria um luxo que faria, inclusive, com que as pessoas não quisessem mais trabalhar. Quando, na verdade, o que pode ocorrer é que algumas pessoas, em pouquíssimas situações, tenham a opção de não se submeter a trabalhos superprecarizados. E isso seria um problema para a efetivação do projeto econômico que a elite pretende colocar em prática.
Setembro Amarelo
Esses estudos e dados apontam para uma realidade composta por pessoas frustradas, humilhadas e sem reconhecimento de si provenientes de políticas econômicas austeras como as já citadas. Além das implicações físicas relacionadas ao estresse e a outros problemas de saúde.
Neste mês de Setembro Amarelo, quando ocorre a campanha nacional de conscientização sobre a prevenção do suicídio, o tema ganha contornos ainda mais graves. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), são registrados anualmente 12 mil suicídios no país. Os atendimentos de urgência cresceram durante a pandemia.
As políticas econômicas são fatores determinantes para o tipo de sociabilidade de uma população e de percepção da realidade. Sem esquecer jamais das questões objetivas, de subsistência alimentar e de moradia, compreendidas por psicólogos/as como necessidades primárias para a sobrevivência e formação da cidadania.
Edição: Marcelo Ferreira