Rio Grande do Sul

MULHERES NA POLÍTICA

“Não há democracia sem a participação das mulheres na política”, afirma Ana Affonso

Vereadora defende que os partidos precisam evoluir e incentivar, de fato, as mulheres a serem protagonistas das lutas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Ana Affonso se destaca na defesa das mulheres e nas campanhas contra a violência doméstica e de gênero - Cláudio Fachel

Professora da rede Municipal em São Leopoldo, desde 1992, Ana Affonso assumiu o primeiro concurso quando tinha 19 anos. Foi lecionar em uma escola pública, grande e de periferia. Desde então, essa é uma das bandeiras em que ela mais acredita: a defesa da escola pública de qualidade.

Já foi diretora de escola e presidenta do Sindicato dos Professores do município (Ceprol), de 2001 a 2003, onde fez uma importante luta pela volta do processo eleitoral nas escolas. Um ano depois foi a primeira mulher do Partido dos Trabalhadores (PT) eleita para a Câmara de Vereadores. “Uma das questões mais gratificantes é que o primeiro Projeto de Lei de Vereador que eu votei, em janeiro de 2005, foi a retomada da eleição de diretores da cidade, uma proposta elaborada pelo Ceprol, que virou lei e até hoje garante o processo eleitoral nas escolas”, recorda.

Em 2008 foi reeleita como a vereadora mais votada na cidade para o segundo mandato. Em 2010 se elegeu deputada estadual com 38.525 votos. Foi a única mulher eleita na região do Vales do Sinos, Caí, Paranhana e Taquari). Na Assembleia Legislativa se destacou na defesa das mulheres e nas campanhas contra a violência doméstica e de gênero. Também buscou incentivar a valorização dos professores e questões ligadas às políticas públicas na área da Cultura.

Para Ana, não há democracia sem a participação das mulheres na política. “Infelizmente, o modelo de sociedade patriarcal estabeleceu que os homens cuidariam da vida pública e as mulheres da vida doméstica, e isso trouxe muitos atrasos no processo da democracia e participação das mulheres. Ainda é muito baixa a nossa representação nos espaços de poder”, lamenta.

A vereadora defende que os partidos precisam evoluir e incentivar, de fato, as mulheres a serem protagonistas das lutas, a ocuparem os espaços de poder, e isso ainda não é uma realidade. “As mulheres enfrentam muitas barreiras dentro dos partidos, porque, nos bastidores, elas organizam as lutas sociais, constroem os movimentos, lado a lado com os homens. Mas, raramente, as mulheres têm a oportunidade de ocupar espaços de visibilidade. Esse destaque para as mulheres, para a construção partidária e a defesa ideológica que ajudamos a fazer, precisa acontecer dentro dos partidos e não apenas para cumprir com determinações ou cotas.”

Confira a íntegra da entrevista para o Especial Mulheres na Política.

Brasil de Fato RS - Gostaria de começar com um pouco da tua trajetória? Quando despertou o interesse pela política?

Ana Affonso - Sou professora da rede Municipal em São Leopoldo, desde 1992. Assumi o primeiro concurso quando tinha 19 anos, e comecei a lecionar em uma escola pública, grande e de periferia. Essa é uma das bandeiras em que eu mais acredito: a defesa da escola pública de qualidade. Passei a ser diretora, fui eleita presidenta do Sindicato dos Professores, o Ceprol. E foi uma batalha muito grande esse período, porque houve a derrubada da eleição de diretores na cidade, a partir de uma proposta do governo do PMDB na época. Nós fizemos toda a luta e resistência pela volta do processo eleitoral nas escolas, criamos um comitê em defesa da escola pública, democrática e de qualidade, construímos mobilização nas ruas, com abaixo-assinados, participação da comunidade.

Todo esse processo de luta em defesa da democracia também sempre marcou muito a minha trajetória. Meu interesse pela política e a identificação com o PT começou desde jovem. E a minha mãe é uma referência fundamental, por ser uma liderança política que viveu a ditadura, sempre me incentivou a lutar, a participar dos movimentos. Foi mais ou menos assim que começou essa caminhada.

Em 2004, havia a necessidade de termos alguém que defendesse a educação na Câmara, então concorri e fui a primeira vereadora mulher eleita pelo PT de São Leopoldo. No mesmo ano, o perfeito Ary Vanazzi também se elegeu. E uma das questões mais gratificantes é que o primeiro Projeto de Lei de Vereador que eu votei, em janeiro de 2005, foi a retomada da eleição de diretores da cidade, uma proposta elaborada pelo Ceprol, que virou lei e até hoje garante o processo eleitoral nas escolas. Então, eu fiz a luta enquanto movimento sindical e participei do processo político como vereadora. E o que mais me incentivou foi acreditar que a luta política transforma, que é muito importante ocuparmos os espaços de decisão para, realmente, fazer a diferença e transformar as realidades em que vivemos.   


Em 2008, após ter que brigar na Justiça para provar que é brasileira, Ana Affonso pôde assumir o seu segundo mandato, quando foi a vereadora mais votada de São Leopoldo / Divulgação

BdFRS - Como tu analisa a participação das mulheres na política? A importância do envolvimento e o papel dos partidos políticos para uma evolução nessa participação?

Ana - Não há democracia sem a participação das mulheres na política. Infelizmente, o modelo de sociedade patriarcal estabeleceu que os homens cuidariam da vida pública e as mulheres da vida doméstica, e isso trouxe muitos atrasos no processo da democracia e participação das mulheres. Ainda é muito baixa a nossa representação nos espaços de poder. Além da questão cultural que é muito forte, tem as inúmeras tarefas que as mulheres assumem, sendo responsáveis pelos cuidados com a casa, filhos, família. É muito desgastante conciliar as atividades do âmbito familiar, com as atribuições da atuação política, também porque o ambiente da política não acolhe as mulheres, menos ainda as mães. É um espaço totalmente tradicional e, no último período, a violência política tem sido um elemento muito potente que expulsa as mulheres do processo.

Os partidos também precisam evoluir e incentivar, de fato, as mulheres a serem protagonistas das lutas, a ocuparem os espaços de poder, e isso ainda não é uma realidade. As mulheres enfrentam muitas barreiras dentro dos partidos, porque, nos bastidores, elas organizam as lutas sociais, constroem os movimentos, lado a lado com os homens. Mas, raramente, as mulheres têm a oportunidade de ocupar espaços de visibilidade. Esse destaque para as mulheres, para a construção partidária e a defesa ideológica que ajudamos a fazer, precisa acontecer dentro dos partidos e não apenas para cumprir com determinações ou cotas.

BdFRS - Além do teu envolvimento com a política, tu és professora da rede pública. Como tu enxergas a educação no contexto atual? Como melhorá-la?

Ana - Em termos de política pública, vivemos um grande avanço com os governos Lula e Dilma. A educação vinha se constituindo como um direito de fato, com a ampliação de investimentos e do acesso de pessoas que nunca pensaram poder estudar. Hoje, vemos um retrocesso brutal, não só no sentido do congelamento dos investimentos na área, mas também pelo tratamento com a comunidade escolar. A realidade é que os governos federal e estadual fecharam os ouvidos para o clamor de estudantes e professores, por exemplo, com relação à elaboração da proposta pedagógica e da política para a educação.

Temos um modelo político autoritário que reduz investimentos, criminaliza as lutas, nega a importância das mobilizações estudantis e da juventude, como os tsunamis pela Educação, a ocupação das escolas, entre outros, e reprime de forma violenta quem estiver posicionado de maneira que não agrade seus interesses capitalistas e neoliberais.

A situação é dramática e muito preocupante! Há uma determinação ideológica dos governos de tentar reduzir a importância da educação, transformar em um espaço limitado no sentido da cidadania e da democracia. Todo esse avanço do conservadorismo, a proposta de escola sem partido, a pressão por escolas militares, vem desse pensamento de que é necessário reprimir a “rebeldia”, a vontade dos estudantes e da juventude, da tentativa de destituir o papel da escola de crescimento, ampliação de olhares, pluralidade de ideias, autonomia e liberdade.

Acredito que, para melhorar a educação, é preciso inverter a lógica vigente, que é a da precarização, da entrega para o setor privado e do cerceamento da liberdade de pensamento. Isso passa por uma mudança de governos, buscando aqueles que entendem a centralidade da educação para o desenvolvimento de qualquer país ou estado, invistam recursos na área, e sejam capazes de radicalizar no processo democrático de construção de conteúdos para transformar a sociedade, enfrentando o machismo, racismo, homofobia, através do processo educacional.


"Em termos de política pública, vivemos um grande avanço com os governos Lula e Dilma. A educação vinha se constituindo como um direito de fato" / Divulgação

BdFRS - Gostaria que tu nos falasse sobre o teu projeto de lei para combater informações falsas em São Leopoldo? Como é essa rede de informações falsas na cidade? Qual a importância de se combater?

Ana - O nosso projeto de combate às informações falsas tem dois objetivos principais. O de penalizar as pessoas que, de forma intencional, produzem as informações falsas com o intuito de prejudicar o que diz respeito ao interesse público, à coletividade. Não se pode conceber que, no âmbito da cidade, haja produção de informações falsas com o intuito de enganar a população, trazer dano à cidadania. A rede de informações falsas em São Leopoldo é muito potente. Inclusive, há bastante proximidade com a rede do gabinete do ódio e desta política federal de produção de fake news. É necessário que se construa um regramento e uma responsabilização com relação a essas atitudes, a uma ação que é criminosa, não é fruto do acaso, ela tem o objetivo evidente de confundir, desinformar.

E o outro, ainda mais significativo pela proposta de sensibilização e mudança de cultura, é levantar o debate sobre o acesso à comunicação e à informação como um direito humano. É urgente falarmos com a população sobre informações falsas, passarmos a ideia de que esse processo é muito prejudicial à democracia, e que precisamos enfrentar de maneira conjunta. A ideia é termos palestras, seminários, campanhas de conscientização, envolvendo jovens, educadores, meios de comunicação, universidades, a sociedade como um todo. Uma questão fundamental é que devemos ter políticas públicas para a democratização dos meios de comunicação, de acesso à internet. Durante as discussões sobre o projeto de lei, também surgiu a proposta para que São Leopoldo realize uma Conferência de Comunicação e crie um Conselho Municipal de Comunicação para tratar desse e de outras temas relacionados à área.

BdFRS - Além das notícias falsas impulsionadas pelas redes sociais, vemos também ataques virtuais, que durante a pandemia, podemos dizer que estão crescendo exponencialmente. Em sua maioria são ataques racistas, machistas, misóginos, enfim. Como romper esse círculo vicioso?

Ana - No âmbito local, também temos percebido esse avanço. Aqui, já circularam informações falsas atribuindo determinadas falas ao prefeito, outras distorcendo dados técnicos sobre o novo coronavírus e a saúde pública, também aconteceram alguns atos de invasão a reuniões. Mesmo antes da pandemia, tivemos algumas experiências muito tristes e pesadas de lidar. Ano passado, foi criada uma situação de pânico na população a partir de informações falsas sobre um surto de meningite. E são formas de comunicar distorcidas e muito agressivas, violentas, que também incitam a população a esse sentimento contra o poder público, contra os órgãos de saúde.

São momentos dramáticos, preocupantes, e acredito que a única maneira de romper com isso é enfrentando o problema, através da educação e da comunicação, aliando ambas, levando para as pessoas a compreensão de como funcionam esses processos, quais os interesses de construir essas mentiras e quem está por trás disso tudo. E, é evidente, também identificando e responsabilizando quem está envolvido nessas redes de mentiras, ódio e violência.


Ao lado das filhas Bruna e Sophia, quando assumiu a Procuradoria Especial da Mulher da Câmara Municipal de São Leopoldo, em março de 2019 / Divulgação

BdFRS - Como Procuradora Especial da Mulher na Câmara de Vereadores de São Leopoldo, qual tua análise das políticas públicas para mulheres? Gargalos, desafios e o que avançar nesse sentido?

Ana - A experiência à frente da Procuradoria, nesse um ano e meio, tem sido muito rica, com ações importantes para compreender a realidade das mulheres. Realizamos uma pesquisa de opinião com as leopoldenses para verificar se conhecem as políticas públicas ofertadas pelo município, se acessam os serviços e compreendem os direitos e deveres do poder público, dos organismos e da cidade. A primeira constatação de desafio já começa aí, pois percebemos uma grande dificuldade para as mulheres acessarem as políticas públicas e terem a compreensão da garantia dos seus direitos. As políticas públicas para as mulheres precisam ser cada vez mais popularizadas, descentralizadas, chegar até as periferias, ouvir as mulheres que estão em todas as regiões da cidade com relação aos mais variados temas, saúde, violência, educação, emprego, renda.

Outra questão que é muito preocupante é a violência contra as mulheres. Os dados são alarmantes, e tem aumentado ainda mais, em virtude da crise econômica. Os temas da geração de emprego e renda dialogam diretamente com as mulheres e no enfrentamento às violências. Infelizmente, vamos viver uma crise muito grande, o processo está se aprofundando cada vez mais, com empobrecimento da população, dificuldade de acesso ao alimento, ao emprego e à renda. E essa situação também resulta em mais violência dentro do ambiente doméstico. Precisamos enxergar o tema da violência contra as mulheres com a relevância e urgência que exige, porque ele afeta todo o ambiente da casa, as crianças, as relações do entorno, e isso constrói a sociedade.


"As políticas públicas para as mulheres precisam ser cada vez mais popularizadas, descentralizadas, chegar até as periferias" / Divulgação

BdFRS - Estamos indo para o sexto mês da pandemia. E de um isolamento social cada vez mais relaxado. O que virá pós pandemia?

Ana - A sociedade praticamente abandonou o tema do isolamento social, pela ausência de políticas que pudessem garantir a permanência dos trabalhadores em isolamento, sem prejuízos econômicos e financeiros. Não houve uma preocupação do governo federal, e foi proposital, pelo discurso da normalidade, isso acabou produzindo efeitos irreparáveis. Algumas pessoas estão nas ruas também amparadas por essa negação. A crise econômica se aprofunda cada vez mais, e o período de pandemia no Brasil deve se arrastar por muito tempo, diferente de outros países que conseguiram construir regramentos mais rígidos e já passaram pelo pior da situação. Ainda é difícil mensurar determinadas questões do pós-pandemia, mas sabemos que vão ficar prejuízos muito fortes à economia, com um aprofundamento brutal da pobreza e das desigualdades sociais.

O desafio do emprego e da renda também vai ficar. As nossas cidades vão precisar construir frentes de trabalho e planos de médio e longo prazos para suprir a fragilidade da economia. O fortalecimento da economia local é uma alternativa no horizonte dos gestores e precisa ser incluído e debatido nas plataformas do processo eleitoral. A saída para o tema do acesso ao alimento também precisa aparecer, com programas de responsabilidade alimentar que enfrentem a vulnerabilidade e a desigualdade, iniciativas sustentáveis, hortas comunitárias, organizações de setores em redes de cooperativismo, experiências que já acontecem, têm trazido resultados positivos, e vão ser muito necessárias no próximo período enquanto política pública.

Além desses temas, a pandemia trouxe a necessidade de reinventarmos as nossas formas de produção e acesso ao conhecimento. E escancarou os inúmeros desafios que a educação tem. A inclusão digital é um exemplo. Ficou ainda mais evidente o abismo entre escola pública e privada em relação a esses instrumentos. Enquanto algumas realidades trabalham com aporte tecnológico, muitas escolas seguem com quadro e giz – e isso quando há recurso para adquirir os materiais.

E a questão da saúde que se tornou central com a pandemia, reforçando o que nós já sabíamos quanto à importância do nosso Sistema Único de Saúde, o SUS, que garantiu a recuperação de muitas pessoas contaminadas pelo vírus. Fica o recado de que o neoliberalismo não dá conta das necessidades que nós temos enquanto população. A solução não está no Estado mínimo, muito pelo contrário. O que vai resolver as questões é sim um Estado forte, com investimentos na área da saúde, fortalecimento de políticas sociais, recursos em educação, pesquisa, ciência e tecnologia. Estamos vivendo um momento importante para confrontar o projeto de sociedade que temos com o neoliberalismo, e o que defendemos que é um projeto do socialismo, da defesa do serviço público e do investimento nas áreas mais importantes que podem estruturar a sociedade.


"Defendo um projeto do socialismo, da defesa do serviço público e do investimento nas áreas mais importantes que podem estruturar a sociedade" / Divulgação

Edição: Katia Marko