Lideranças indígenas, caciques e o Conselho Estadual dos Povos Indígenas do Rio Grande do Sul (CEPI), realizaram diversas manifestações, na última semana, em repúdio ao relatório da Fundação Nacional do Índio (Funai) acerca das barreiras sanitárias em terras indígenas. Segundo as lideranças, a Funai tem divulgado uma série de ações que estariam sendo desenvolvidas pelo órgão para o enfrentamento da pandemia, conforme consta na própria determinação do STF para a Funai.
Na carta de repúdio elaborada pelo Conselho Estadual dos Povos Indígenas, as informações são de que as comunidades é que estão na linha de frente da montagem de barreiras sanitárias por exemplo, sem qualquer incentivo da Funai.
As contradições da Funai
Em entrevista ao Portal Desacato, o conselheiro Leandro Scalabrin, que integra o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), exemplificou as motivações que levaram as lideranças indígenas a publicar a nota de repúdio contra a Funai. Ele citou o caso do estado do Rio Grande do Sul, onde no relatório divulgado pelo órgão, consta a implantação de 21 barreiras sanitárias nas áreas indígenas. Um levantamento feito pelo CNDH, juntamente com membros da Equipe Frederico Westphalen, do CIMI Regional Sul, verificou, segundo Scalabrin, que a maioria dessas barreiras não possuem qualquer participação da Funai, sendo construídas pelas próprias lideranças indígenas.
“Nem todas as barreiras indicadas no plano existem. Como exemplo podemos analisar o caso do RS, no qual é indicada a existência de 21 barreiras abrangendo todos os povos daquele estado. Primeiramente verifica-se que todas localidades indicadas são aldeias do Povo Kaingang, ficando nítido que não existem barreiras para o Povo Guarani e Charrua. Menos da metade das barreiras indicadas como existentes (10) possuem composição com pessoas efetivamente atuando na barreira. Em contato com entidades e os povos indígenas, foi informado que o número de pessoas nas barreiras é insuficiente, não há fornecimento de EPIs e alimentação. Essas barreiras só existem efetivamente porque os próprios indígenas estão atuando nelas sozinhos ou com ajuda dos servidores da SESAI. Muitas barreiras previstas referem-se a aldeias situadas em contextos urbanos, acampamentos ou áreas cedidas, nas quais outras medidas são necessárias, especialmente a ampliação do território e retomada dos estudos. Segundo dados da Emater-RS existem 158 aldeias no RS, 103 Kaingang, uma Charrua e 54 Guarani, nas quais vivem 6.135 famílias (24.400 indígenas aproximadamente), dados que revelam a insuficiência do plano apresentado (21 barreiras)”, destacou Scalabrin, seguindo a manifestação do Conselho Nacional dos Direitos Humanos nos autos da ADPF nº 709.
Scalabrin disse também que, além do problema relacionado com as barreiras sanitárias, está a falta de assistência da Funai no cumprimento das ações de enfrentamento à pandemia, como a garantia de água potável, alimentação para as comunidades e a disponibilização de EPIs – equipamentos de proteção individual.
Recomendações do CNDH para o Plano de Enfrentamento à Covid-19 da Funai
Diante da falta de cumprimento das ações de combate à pandemia pela Funai, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) enviou ao Supremo Tribunal Federal algumas recomendações ao plano de enfrentamento da covid-19 para povos indígenas, ainda no dia 17 de agosto. Na nota, o CNDH explica:
“O Conselho Nacional dos Direitos Humanos – CNDH apresentou ontem (17) sua manifestação nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. 709, ajuizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB e por partidos políticos. O documento apresentado segue a determinação do ministro Luís Roberto Barroso, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que solicitou a participação do CNDH na elaboração de um plano, por parte do governo federal, de enfrentamento à mortalidade por covid-19 em povos indígenas brasileiros. Assim, logo após a homologação do plano pelo governo federal, o CNDH elaborou uma análise e listou uma série de recomendações ao plano apresentado pela União. Os trabalhos foram realizados por um grupo de trabalho composto por diversos atores que atuam na área de proteção de direitos indígenas. Participam do grupo o presidente do CNDH, Renan Sotto Mayor, o conselheiro Leandro Scalabrin, o conselheiro Marcelo Chalréo, a conselheira Luísa de Marillac, a conselheira Eneida Guimarães e a conselheira Camila Asano. Também estiveram presentes representantes da Defensoria Pública da União, do Ministério Público Federal, do Instituto Socioambiental (ISA), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, da Terra de Direitos (Maira de Souza Moreira) e do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, bem como as consultoras e consultores da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz e do próprio CNDH. As recomendações apresentadas ao STF trataram da assistência integral e diferenciada; execução orçamentária; participação social e controle social; terras para a saúde indígena, demarcação dos territórios e barreiras sanitárias, moratória aos grandes projetos (mineração e energia); proteção social; e desintrusão de invasores de terras indígenas. Para o presidente do CNDH, o conselho cumpre um papel fundamental ao auxiliar na efetividade do direito à saúde dos povos indígenas, que tanto tem sofrido com a covid-19. ‘Espera-se que as recomendações elaboradas na manifestação, construídas coletivamente pelo Grupo de Trabalho criado no âmbito do conselho, sejam acolhidas pela União’, afirma Sotto Mayor.”
Situação
No Rio Grande do Sul, 0,98% da população foi contagiada pela covid-19. No entanto, a situação dos povos indígenas envolve um número superior de infectados, em razão das vulnerabilidades que se apresentam com a falta de água potável, alimentação saudável e condições dignas de proteção e acesso aos itens necessários para prevenção da pandemia, o que leva a um diagnóstico de 2% da população indígena do mesmo estado estar contaminada.
O membro da Equipe Frederico Westphalen, do CIMI Regional Sul, Ivan Cesar Cima, destacou que as barreiras sanitárias são um instrumento importante para evitar que pessoas estranhas acessem as comunidades indígenas e levem o vírus para dentro das aldeias. Os povos indígenas, conforme Cima, são mais vulneráveis ao vírus e, associado as condições de desassistência, faz com que o contágio e propagação sejam mais letais a esses povos. Segundo ele, em âmbito nacional, a situação se apresenta ainda mais grave em relação as questões envolvendo as invasões dos territórios (garimpeiros, madeireiros e outros) pois além de invadirem os territórios com objetivos específicos de exploração das riquezas, acabam contaminando o povo com o novo coronavírus.
“Especialmente no Norte do país temos observado a quantidade de mortes que essa invasão incentivada e avalizada pelos discursos de ódio de Bolsonaro e do governo federal provocam. Ao invés do governo providenciar a retirada dos invasores, os discursos e as práticas caminham de lado oposto da proteção à vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais. As barreiras sanitárias nesse sentido, carregam a importância de se evitar a invasão dos territórios, no entanto, elas estão sendo garantidas, com as mínimas condições, pelos próprios povos indígenas e não pela Funai”, contextualizou.
Cima disse que o Conselho Indigenista Missionário teve acesso a um documento utilizado pela Funai onde o órgão comunica ao Supremo Tribunal Federal que está trabalhando na criação de barreiras sanitárias nas comunidades indígenas. “Consideramos em um primeiro momento muito estranha a colocação de tais dados, especialmente em áreas no norte do Rio Grande do Sul, onde conhecemos a realidade, referindo-se as comunidades Kaingang, porém, nesses locais foram as próprias comunidades que instalaram as barreiras, sem qualquer auxílio da Funai. As comunidades continuam fragilizadas e sem assistência da Funai, destacamos aqui principalmente a situação dos acampamentos que são locais que enfrentam péssima moradia, falta de saneamento, água, precárias condições de alimentação e junto com isso vem o perigo do acesso de pessoas às comunidades que podem levar a covid-19 para dentro das aldeias”.
Isso que a Funai está dizendo é uma afronta, estão brincando com as nossas comunidades, essa é a realidade
- Cacique Jocemar Mariano
Por meio de depoimentos e conversas realizadas entre as lideranças indígenas, caciques e o Conselho Estadual dos Povos Indígenas do Rio Grande do Sul (CEPI), surgiram várias manifestações contra os dados divulgados pela Funai.
O cacique Jocemar Mariano, da aldeia Goj-jur, do município de Passo Fundo (RS) enfatizou que as comunidades continuam desassistidas e sem uma contribuição efetiva da Funai. “Essa informação quando a gente soube tivemos um baque, sobre o absurdo que a Funai está comentando, de estar fazendo as barreiras nas comunidades, sendo que isso é uma baita mentira. A gente fica triste que vem de um órgão que vem espalhando só mentiras, ajudar que é bom nada. Essas barreiras que eles comentaram que fizeram somos nós mesmo como lideranças e comunidade que nos organizamos e fizemos as próprias barreiras, mesmo com poucos recursos que a comunidade tem, sem receber máscara, álcool gel principalmente dessa Funai, que hoje só nome de Funai, porque na realidade não estão fazendo nada pelo nosso povo, estamos desassistidos, agora vem dizer que estão fazendo as barreiras, isso é uma afronta, estão brincando com as nossas comunidades, essa é a realidade”.
Com a mesma indignação, o cacique Isaías Kaigo da Rosa, do povo Kaingang, da comunidade indígena Goj Veso, de Iraí (RS), disse que nenhuma das ações ditas pela Funai no relatório foram executadas na comunidade. “Aqui não tivemos nada dessas ações que a Funai está divulgando. Acredito que está usando de má fé dizendo que fez essas ações em algumas comunidades. Penso que em nenhuma dessas comunidades que ela cita ela fez essas ações”.
Algumas lideranças indígenas mencionaram que a Funai chegou a fazer contato para perguntar se as comunidades haviam feito as barreiras e após a confirmação da informação, não realizou novo contato, como relata o cacique Claudio Kaingang, do acampamento Tijuco Preto, da terra indígena Mato Castelhano (RS). “O que a Funai fez, ela só pediu se tínhamos trancado as entradas. Aquele dia que me perguntaram eu tinha trancado. Mas eles não entraram com nenhuma ajuda. Isso que estão falando das aldeias é tudo mentira. É momento de nos unirmos para rebater”.
Em Vicente Dutra (RS), o contexto não é diferente. “Aqui em Vicente Dutra foram os próprios indígenas que fizeram a prevenção da covid-19 junto com a equipe de saúde da aldeia, mas a Funai nunca esteve aqui”, destacou o cacique Luis Salvador, da Terra Indígena Rio dos Índios.
Edição: Portal Desacato