No último dia 14, a Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr) do Rio Grande do Sul afastou seus servidores Ignácio Kunkel e Márcia Londero da Divisão Indígena e Quilombola do Departamento de Desenvolvimento Agrário, Pesqueiro, Aquícola, Indígena e Quilombola (DDAPA). Servidores com décadas de envolvimento e interlocução junto às populações indígenas.
Preocupadas com as consequências da desestruturação do setor, entidades encaminharam uma carta ao secretário de Agricultura do estado, Covatti Filho. Para as organizações, tal medida é desacompanhada da imediata substituição por agentes indigenistas especializados, o que pode caracterizar a dissolução da equipe técnica responsável pelas políticas públicas voltadas aos povos indígenas a nível estadual.
“O RS talvez seja um dos únicos estados que tem uma política estadual de etnodesenvolvimento que atende todas as aldeias do estado. São raros os estados no país que tinham essa estrutura, e que era um grande avanço democrático no sentido de garantir os direitos humanos específicos dos povos indígenas”, ressalta o integrante da Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas Minoritários (AEPIM), Guilherme Dal Sasso.
De acordo com Guilherme e com o texto da carta, essa política começou a ser desempenhada na década de 90, com a criação do programa Pró-Rural, iniciada no governo Britto (MDB). Tornou-se RS Rural no governo Olívio (PT), adquirindo caráter de política de Estado. Foi mantida e aprimorada nos governos de Rigotto (MDB), Yeda (PSDB), Tarso (PT) e Sartori (MDB).
“É a primeira política pública estruturada que vai atender povos indígenas, quilombolas, a agricultura familiar, pescadores artesanais, enfim, esse grupo diverso do mundo rural, e que não estava contemplado naquelas políticas que focam muito mais no setor de exportação e no agronegócio em geral”, afirma, destacando a continuidade das políticas voltadas para essas populações nos governos anteriores. “Ao nosso ver é isso que está sendo desmantelado agora. É a volta de uma visão da agricultura e do rural gaúcho excludente, injusta e voltada unicamente apara o agronegócio e a monocultura”, complementa.
Conforme pontua Guilherme, há tempos as entidades acompanham a situação difícil das comunidades indígenas. Há um entendimento coletivo de que o meio ambiente e os povos indígenas estão sob ataque do governo federal, o que também se reproduz em outros níveis. “O afastamento sumário foi percebido com o desmantelamento da equipe técnica que estava à frente desse trabalho há décadas. Talvez não fique explicita essa orientação anti-indigenista, mas o grupo político ligado ao PP (Partido Progressista) e que está à frente da Secretaria de agricultura do estado compõe um grande reduto da bancada ruralista federal, que também está encabeçando essas políticas anti-indigenistas em nível federal”.
Veja abaixo a carta completa
Secretário Covatti Filho, C.c para o Sr. Diretor Carlos Remi da Silva Pacheco
Vimos por meio deste manifestar nossa preocupação com a notícia de afastamento dos técnicos Ignácio Kunkel e Márcia Londero, da Divisão Indígena e Quilombola do Departamento de Desenvolvimento Agrário, Pesqueiro, Aquícola, Indígena e Quilombola (DDAPA) dessa Secretaria, medida que desacompanhada da imediata substituição por agentes indigenistas especializados, pode caracterizar a dissolução da equipe técnica responsável pelas políticas públicas voltadas aos povos indígenas a nível estadual.
O Rio Grande do Sul desenvolve políticas específicas para as diversas populações que habitam o meio rural pelo menos desde a criação do programa Pró-Rural, na década de 1990. Iniciativa do governo Britto (MDB), tornou-se RS Rural no governo Olívio (PT), adquirindo caráter de política de Estado e sendo mantida e aprimorada nos governos de Rigotto (MDB), Yeda (PSDB), Tarso (PT) e Sartori (MDB). A concepção, desenvolvimento e execução dessas políticas são decorrentes do aprendizado democrático a respeito da diversidade econômica, social e cultural que caracteriza o meio rural gaúcho. A interrupção dos trabalhos de uma equipe que foi responsável pela elaboração e execução da política estadual de etnodesenvolvimento nas últimas décadas, sem que esteja prevista sua substituição por um corpo técnico especializado na questão indígena, gera sérias preocupações a respeito da continuidade das políticas para os povos indígenas do estado.
A atuação de Ignácio Kunkel como servidor se confunde com a própria história das políticas de etnodesenvolvimento do RS, à qual se somou a técnica Márcia Londero em 2011, quando da criação da Divisão Indígena com equipe técnica especializada. Ambos desenvolveram políticas públicas com demais técnicos que passaram pela equipe no decorrer dos anos. Ainda que a esses outros profissionais faltassem conhecimentos específicos com relação às particularidades culturais dos povos indígenas, a continuidade do trabalho de Ignácio e Márcia foi fundamental na capacitação de uma equipe multidisciplinar e também na orientação de outras divisões e departamentos que acabaram por desenvolver ações junto aos povos indígenas do estado.
Os povos guarani, kaingang e charrua são parte da história de nosso estado, prestando inestimável contribuição à cultura gaúcha, ao meio ambiente equilibrado, à diversidade e também à agricultura, de que se ocupa a secretaria em questão. Além disso, são também sujeitos de direitos previstos na Constituição Federal, bem como na Estadual. Como povos que sobreviveram a processos de genocídio, ainda buscam se recuperar e restabelecer do trauma colonial. Nesse sentido, as políticas públicas que caracterizam o período democrático foram fundamentais na recuperação demográfica, nos índices de qualidade e expectativa de vida, no fortalecimento da cultura, tradições e organização social, bem como na dignidade desses povos.
A desestruturação da Divisão Indígena e uma possível interrupção das políticas de etnodesenvolvimento traria graves consequências às comunidades indígenas de todo estado, e manifestaria a opção inequívoca por um modelo de desenvolvimento injusto, desigual e excludente para o meio rural gaúcho.
Dessa forma, reafirmamos nossa preocupação e aguardamos sinalização por parte do governo no sentido da manutenção, continuidade e primoramento das políticas específicas para os povos indígenas do nosso estado.
Assinam esta carta:
Acesso, Cidadania E Direitos Humanos
Ação Nascente Maquiné - ANAMA
Amigos da Terra Brasil
Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente no RS
Associação Amigos do Meio Ambiente - AMA Guaíba
Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários - AEPIM
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural - AGAPAN
Associação para Grandeza e União de Palmas - Bagé/RS
Centro de Estudos Ambientais - CEA
Comissão Guarani Yvyrupa
Conselho de Missão Entre Povos Indígenas - COMIN
Conselho Indigenista Missionário - CIMI
Gt-Indígenas na História RS, da Associação Nacional de Historiadores Instituto Curicaca
Instituto Econsciência
Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais - INGÁ
Instituto Mira-Serra
Movimento Justiça e Direitos Humanos
Movimento Roessler para Defesa Ambiental
Observatório Indigenista
Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares - RENAP
União Protetora do Ambiente Natural - UPAN
Edição: Marcelo Ferreira