O mês de agosto deixou marcas indeléveis na minha memória. Não é por acaso que os povos originários da região onde nasci e me criei, as missões orientais, lembram sempre que os anciãos que conseguirem sobreviver a este mês terão mais um de vida. Para isso, os guaranis tinham até mesmo uma simpatia: colocavam três galhos de arruda em uma garrafa de canha, ainda em julho. Durante o mês de agosto tomavam três goles por dia da infusão para evitar doenças que quase sempre aconteciam no pior mês do inverno sulino podendo levar a morte aos mais velhos. Ainda hoje este costume existe nas províncias argentinas de Missiones e Corrientes e na área da fronteira do Brasil com aquelas regiões.
Existe até um ditado: agosto é o mês do desgosto, para caracterizar aquele período do ano marcado por tragédias familiares e políticas. A primeira delas de que tenho lembrança foi a morte do presidente Getúlio Vargas. Nasci e me criei em São Borja, a terra dos presidentes, Getúlio e Jango também haviam nascido por lá, e os dois foram marcados por acontecimentos ocorridos naquele mês.
Getúlio foi pressionado a suicidar-se em 1954. João Goulart (Jango), sete anos depois, em 1961, quando era vice-presidente e estava em visita à China, teve sua posse barrada por militares logo após a renúncia de Jânio Quadros, o Homem da Vassoura, que renunciara com a perspectiva de em seguida dar um golpe apoiado pelos militares. Ele só assumiu depois de uma heroica resistência do povo, na época liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola e sindicalistas que organizaram o Movimento da Legalidade.
Em 1954, eu tinha sete anos e cursava o primeiro ano do curso primário na Escola Sagrado Coração de Jesus, o colégio das freiras como era mais conhecido pela população. Na manhã daquele dia 24 de agosto, eu e meu irmão, o Chico, estávamos na aula quando um dos empregados do nosso pai, o Júlio, foi até o colégio para nos buscar. “Faleceu o doutor Getúlio e seu Délcio mandou levar vocês dois para casa”, explicou ele para nós que não entendíamos porque estávamos saindo da escola. Em casa nosso pai não desgrudava do rádio ouvindo as notícias nas ondas curtas da Rádio Nacional, entremeadas de músicas clássicas. Todos estavam ansiosos com o que poderia acontecer.
Doutor Getúlio se matara, e deixara uma Carta Testamento ao povo brasileiro. Quatro anos antes lembro que ele fora eleito numa campanha com pessoas gritando de caminhões “queremos Gegê!”
Em nossa casa se ouvia todos os dias o programa “A Voz do Brasil” que relatava os feitos do governo dos trabalhadores brasileiros. A criação da Companhia Siderúrgica Nacional, a consolidação das leis trabalhistas e o aumento do salário mínimo; a criação da Petrobrás, a campanha do Petróleo é Nosso. A oposição era liderada pelo “Corvo”, jornalista Carlos Lacerda que, segundo nosso pai, comandava as “aves de rapina” que revoavam em torno do Palácio do Catete.
Dois ou três dias depois a cidade se encheu de gente que vinha do Rio de Janeiro e Porto Alegre para acompanhar o enterro do presidente morto. Notícias contavam que o povo saíra para as ruas nas capitais do país e as rádios liam quase que de hora em hora a “Carta Testamento” que o presidente escrevera pouco antes de dar-se um tiro no coração, acabando com a sua vida. Um dos documentos que mais me impressionou e continua impressionando por sua atualidade.
A Carta Testamento de Vargas
Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci.
Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo.
A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios.
Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre, não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo e renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos.
Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação.
Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotam respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém.
Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.
(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)
Edição: Katia Marko