Quando seu filho nasceu, em 3 de agosto de 2018, Ágata Mostardeiro teve negado o pedido de registrá-lo como mãe biológica. Na época, o registro civil não reconheceu o seu direito, pois havia feito a transição de gênero durante a gravidez da companheira, sendo registrada apenas como mãe socioafetiva. Dois anos e quinze dias depois, contudo, ela teve o direito reconhecido pela Justiça. No dia de seu aniversário.
“Foi o presente perfeito. Foi um dos dias mais felizes da minha vida, porque foram uma série de violências que a gente sofreu”, diz Ágata, que é moradora de Canoas, município na Região Metropolitana de Porto Alegre. “É como se estivesse se encerrando uma etapa de coisas que a gente viveu, que foram muito difíceis, e que agora teve uma resposta positiva finalmente. Foi dia de comemorar, dia de rir, de também relembrar tudo que a gente passou, mas com o alívio de que terminou”, complementa.
O caso de Ágata foi retratado em reportagem publicada no Sul21 em agosto de 2018. Na época, a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS) afirmou tratar-se de um caso “extremamente peculiar”, por “envolver o registro de nascimento de um recém-nascido em que o pai biológico fez alteração de prenome e gênero para o feminino durante a gestação da criança”.
Após consulta ao Fórum da Comarca de Canoas, o Cartório de Registro Civil da 1ª Zona de Canoas aceitou que o registro da criança fosse feito no nome do casal mediante apresentação de documentação médica que comprovasse o vínculo biológico com Ágata, além do comparecimento da mãe biológica. As mães, no entanto, optaram por ir ao Registro Civil da 4ª Zona de Porto Alegre, onde foi declarada a “não indicação do suposto pai” e Ágata foi incluída como mãe socioafetiva.
Ágata, que retificou oficialmente o seu nome antes de o filho nascer, explica que o seu não reconhecimento como mãe biológica ocasionou uma série de transtornos para a família, como o fato de que, na época do nascimento da criança, não conseguiram que o menino acessasse o seu plano de saúde. A criança só teve acesso ao benefício mais tarde, quando Ágata a registrou como mãe socioafetiva, mas a demora fez com que perdesse o prazo para evitar a necessidade de carência de seis meses para adesão ao plano. “Eu não consegui fazer o registro e tive problemas no hospital porque não tinha o registro em mãos”, relata.
Em sua decisão, o juiz Nilton Tavares da Silva, da 5ª Vara de Família do Foto Central da Comarca de Porto Alegre, diz que, mesmo tratando-se de um “caso incomum por envolver registro civil de nascimento de filho concebido por pessoa transgênera”, não seria possível ignorar a ascendência biológica concreta de Ágata em relação ao filho. “A verdade biológica sempre que possível deve constar no assento de nascimento da criança, pois, como sabido, todo e qualquer ato registral deve primar sempre que possível por retratar a realidade dos fatos”, diz a decisão. O juiz decretou que o registro civil da criança seja reconhecido imediatamente, independentemente do trânsito em julgado da ação.
De acordo com a advogada do casal, Gabriela Souza, esse é um dos primeiros casos de reconhecimento de dupla maternidade biológica no Brasil. “A decisão, até onde a gente tem conhecimento, seria a primeira do Brasil a reconhecer uma dupla maternidade biológica, no sentido de que a criança foi concebida através do método convencional. Existe a maternidade de mães que fizeram inseminação e a criança tem o material genético das duas mães, mas, nesse caso, houve a transição de gênero durante a gestação. A criança foi concebida pelo método natural. Esse é o primeiro caso que temos conhecimento no Brasil e pode ser um dos primeiros o mundo”, diz.
Contudo, para ela, a decisão vem apenas corrigir uma falha do Estado em reconhecer essa possibilidade quando do nascimento da criança. “O processo foi resolvido dois anos e 15 dias depois do nascimento da criança. Isso prova uma violência estatal, a medida que qualquer cidadão brasileiro tem o direito de registrar o seu filho”, diz a advogada. “Essa decisão seria completamente desnecessária se o Estado tivesse atuado como deve atuar, porque lá, no momento em que a criança precisou do registro, ela teve os seus direitos negados. E essa decisão vem constatar o óbvio. Com certeza é um avanço, mas é um avanço que veio de um retrocesso e de um pensamento preconceituoso do Estado”.
Gabriela explica que a declaração de nascido vivo do Estado brasileiro ainda não estava adaptada para a realidade de pessoas trans com filhos. “Logo na sequência, a lei de registro público foi modificada e o Judiciário tornou possível o registro de filhos de pessoas trans”, diz.
Nesse sentido, ela avalia que o processo poderia ter sido resolvido de forma muito mais célere, mas acabou sendo passado de uma vara da Justiça para outra, com o Judiciário aparentando não saber como lidar com o caso. “Uma situação inusitada não deve ser surpresa para o Judiciário. Não é porque seria um caso inédito, que isso serve de pano de fundo para qualquer preconceito. A gente está falando de um direito fundamental que foi negado ao recém-nascido, que nasceu num momento que estava precisando de tratamento médico e do plano de saúde da mãe”, afirma.
Edição: Sul 21