Rio Grande do Sul

Fotografia

"Neste mundo patriarcal, a fotografia se impôs pelo olhar masculino"

Para a fotógrafa Suzana Pires, que há trés décadas se dedica à fotografia, é preciso enfrentar e mudar essa realidade

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Hoje estou envolvida com projetos voltados para a crise climática, como meus pensamentos e minhas ações também" - Arquivo Pessoal

"A fotografia é uma lição de amor e ódio ao mesmo tempo. É uma metralhadora, mas também é o divã do analista. Uma interrogação e uma afirmação, um sim e um não ao mesmo tempo. Mas é sobretudo um beijo muito cálido", assim definiu Henri Cartier Bresson. Para a fotógrafa Suzana Pires, que há 30 anos se dedica a essa forma de arte, de traduzir o mundo, a fotografia sempre foi um insubstituível instrumento de denúncia. "A fotografia pode ser arte, pode ser instrumento de comunicação, de denúncia ou a simples e necessária recordação de momentos familiares", afirma. 

Da primeira fotografia reconhecida, feita em 1826, pelo francês Joseph Nicéphore Niépce, até os dias atuais, a forma de captar a realidade mudou. Do uso dos sais de prata, a influência no surgimento do cinema, do vídeo da televisão, até chegarmos no uso de celulares. Não importa. Como destaca Suzana, pode mudar o formato do instrumento de captura de imagens, os pixels, os instrumentos de tratamento da imagem, a forma de divulgação, a fotografia permanecerá para sempre. 

Apesar de nomes como Anna Atkins (nascida em 1779 e tida como primeira fotógrafa), Ruth Orkin, Annie Leibovitz, Dorothea Lange, a fotografia é dominada por homens. "Na fotografia como nos outros diversos setores, a relação é profundamente desigual, em termos de oportunidade, salários (ou comissões) e destaque para publicações. Neste mundo patriarcal, a fotografia se impôs pelo olhar masculino e não tenho dúvida de que só mudará na medida que enfrentarmos o desafio político de mudar isto junto com toda a sociedade", frisa.

No Dia Mundial da Fotografia, em entrevista ao Brasil de Fato RS, Suzana fala de sua carreira, dos desafios impostos pela pandemia, e do projeto Pixel.Ladies, coletivo de fotógrafas brasileiras, que está com um projeto de financiamento coletivo no Catarse, para financiar a criação e manutenção de um website internacional e multilíngue. 


"É bem óbvio que, como em todos os setores da vida, as mulheres têm experiência e olhares diferentes dos homens... Na fotografia também" / Suzana Pires / Acervo

Veja abaixo a entrevista na íntegra

Brasil de Fato RS - Quanto tempo tu tens de profissão? Nos conte tua trajetória na fotografia.

Suzana Pires - Tenho 30 anos de exercício da profissão, mas houve interrupções, pequenos períodos em que exerci outras atividades.
Lembro que por uma intensa pressão da família para que eu tivesse uma profissão, tentei lá pelos 25 anos ser costureira (eu queria muito), ganhei uma máquina de costura top de linha na época, da Dona Cila. Uma mulher maravilhosa. Depois de uns dois cursos percebi que não tinha a menor habilidade e vendi a máquina de costura para comprar minha primeira câmera. Estudei fotografia quando morava em SP, e comecei no fotojornalismo nesta época. Eu era militante de esquerda e até aquele momento minha relação com o mundo era de "agitadora", segundo definição do DOPS. 

A partir desta definição profissional, minha relação com o mundo passou a ser através de minhas lentes. Mas o meu lugar no mundo não mudou. Passei a fotografar os movimentos sindicais, comunitários, feministas... Publicava no Jornal Em Tempo e outros jornais de esquerda de SP. 

E foi por aí que segui minha vida profissional, por onde morava ou passava trabalhava sempre para estes movimentos. Ajudei a fundar veículos de imprensa como O Jornal do Bairros de Caxias do Sul (da UAB - União das Associações Comunitárias de Caxias do Sul), que existe ainda hoje e muito me orgulha. No movimento de mulheres também participei de tentativas de criação de veículos de comunicação impressos que em geral não passavam da segunda edição.

Fiz trabalhos pontuais na área do turismo para prefeituras e agências de comunicação e publicidade. Me embrenhei também no mundo das artes, fiz exposições individuais, participei de coletivas e documentei o trabalho de artistas visuais contemporâneos, uma das atividades que mais me encanta.

Tem de tudo, histórias tristes, comoventes e engraçadas como na vida de todos. Hoje estou envolvida com projetos voltados para a crise climática, como meus pensamentos e minhas ações também. Pensar no papel que minhas imagens têm neste novo momento da humanidade, passou a ser um desafio. Estou andando neste caminho e construindo possibilidades.

 


Cobertura movimento feminista / Suzana Pires / Acervo

 

BdFRS – Quais foram os trabalhos que mais marcaram tua experiência como fotógrafa?

Suzana - Três momentos me marcaram especialmente. Um deles foi quando trabalhava para a oposição numa eleição do Sindicato dos Metalúrgicos de Canoas. As duas chapas eram um racha da diretoria anterior, portanto conhecia e me relacionava pessoalmente com os dois "lados". A campanha eleitoral foi toda muito tensa, inclusive com um episódio de tiroteio, dizem...

Eu estava grávida, já no sétimo mês, e os companheiros tentavam me convencer a não estar presente no dia da eleição, inclusive com argumento de que me dariam um tiro na barriga. Neste dia houve um momento bem tenso de empurra/empurra entre os dois lados, e eu claro ali por perto, quando percebo alguém me retirando do meio da briga, e veja que era alguém da situação, aqueles que me dariam um tiro na barriga (riso).

Outro momento especial foi quando era ativista da Sea Sheperd. Fui com dois advogados a Pelotas, era tempo de campanha contra a morte de tubarões para retirar suas barbatanas e vender para a China. O assunto era pesado, pois eles faziam parte de uma máfia. Um lugar de corte de barbatana e embalagem para "exportação" havia sido condenado a fechar, mas suspeitávamos que continuavam trabalhando. Minha tarefa era provar isto com uma foto. Chegamos ao local e havia um muro alto, apenas uma pequena fenda num portão, e era a única possibilidade de fazer a foto. Desci olhei por aquele buraco vi pessoas, e fotografei sem ter ideia do resultado. Eles ouviram que havia alguém no portão e saímos muito rapidamente do local, rumo a Porto Alegre. A foto deu resultado apesar de ser péssima, provou que continuavam trabalhando e serviu de prova no processo judicial. Aprendi neste dia muito mais sobre a importância do fotojornalismo. Tua foto não precisa nem mesmo ser boa tecnicamente, precisa ter um sentido sobre os fatos e no caso denúncia.


Cobertura do aniversário de 40 anos das Abuelas na Argentina / Suzana Pires / Acervo

Outro momento especial foi ter decidido ir à Argentina para cobrir a votação da lei do direito ao aborto no Senado. Naquela noite/dia valeu toda minha experiência de anos, pois estava num país que não conhecia, fazia dois graus de temperatura, chovia e eu estava no meio de dois milhões de pessoas. Foi incrível, guardo cada imagem na minha memória. Apesar de gostar da ideia de viajar, faço isto pouco. Mas aquele momento era emblemático para mim, por admiração e um pouco por inveja daquele potente movimento autônomo que as mulheres argentinas criaram, decidi ir por minha conta e paguei todas as despesas de viagem e doei as fotos para publicação.

Enfim são centenas de histórias. Mas como todos que não trabalham na mídia "não hegemônica" quem lembra é quem viveu comigo estes acontecimentos.

BdFRS – E como surgiu o projeto Pixel Ladies, um coletivo internacional de fotógrafas brasileiras?

Suzana - A Pixel.Ladies foi uma ideia que nasceu com a crise provocada pela pandemia. Os dois projetos em que eu estava envolvida foram adiados, quem sabe cancelados.

Comecei a vender fotos de arquivo para meus amigos através das redes sociais. Mas isto se esgota rapidamente, então propus a amigas fotógrafas que fizéssemos isto em grupo, e criamos o coletivo. O propósito é fazer um site onde venderemos imagens a preço justo e convidaremos outras fotógrafas para publicarem seus ensaios.

Não temos condições de criar um banco de imagens para todas as fotógrafas que desejassem participar, como era nosso propósito inicial, pois não temos como arcar com o trabalho humano que isso acarretaria.

A Pixel.Ladies é composta hoje por sete fotógrafas brasileiras, três das quais moram no exterior, em Novara na Itália, em Londres UK e em Toronto, Canadá. As outras quatro moram no RS. Nossa fotografia é muito diversa, o que dá muita riqueza ao grupo.

Temos um projeto de financiamento coletivo no Catarse, mas está difícil arrecadar nestes tempos. É compreensível, quem pode contribuir está escolhendo outros assuntos prioritários como ajudar quem tem fome. Mas seguimos.


"Lamento que tenhamos poucos espaços próprios para publicação de ensaios, a maioria será publicado apenas em perfis nas redes sociais" / Suzana Pires / Acervo

BdFRS - Como é o mercado brasileiro para as mulheres na fotografia?

Suzana - Na fotografia como nos outros diversos setores, a relação é profundamente desigual, em termos de oportunidade, salários (ou comissões) e destaque para publicações.

Dados gerais da Women Photograph publicados em 2019 "mostram que, entre abril e junho de 2019, oito dos principais jornais do mundo imprimiram muito menos fotos de destaque de mulheres do que de homens. Os números variaram de apenas 4,2% (três das 72 fotos publicadas) no Le Monde a 47% (44/92) no San Francisco Chronicle.

No último relatório global do The State of News Photography (publicado em dezembro de 2018), 69% das mulheres fotógrafas disseram que enfrentavam discriminação no local de trabalho. Quando questionados sobre os obstáculos ao sucesso, eles citaram sexismo (54%), estereótipos ou práticas da indústria (53%) e falta de oportunidades para as mulheres (49%)."

A fotografia comercial também contém desigualdades e preconceitos preocupantes. Estudos descobriram desequilíbrios de gênero em projetos encomendados, associação e representação profissional. Enquanto a pesquisa da Equal Lens, iniciativa para a igualdade no setor de publicidade, descobriu que menos de 25% dos fotógrafos comerciais representados por 70 dos principais agentes do setor, são mulheres.

Não consegui dados do Brasil (temo que sejam ainda piores), as entidades não me responderam então não sei se foi desinteresse ou se estes dados não existem.

Posso falar de minha própria experiência e do que vejo à minha volta. Percebo que na fotografia de eventos, por exemplo, em setores onde a disputa é mais forte, com o ramo de formaturas, a presença das mulheres é ainda menor, e a relação muito brutal, percebi nas poucas vezes que fui contratada para fotografar para particulares.


"Raro encontrar com uma mulher mais velha neste setor, enquanto os homens parecem até mais confortáveis na profissão quando começam a envelhecer" / Suzana Pires / Acervo

No fotojornalismo também é menor o número, e interessante perceber que as mulheres largam a profissão muito antes dos homens. Raro encontrar com uma mulher mais velha neste setor, enquanto os homens parecem até mais confortáveis na profissão quando começam a envelhecer.

Com o passar do tempo fui me impondo, mas quando era jovem a disputa chegava a ser física em muitos momentos. Cansei de levar empurrões de brutamontes quando estava bem colocada para fazer alguma cobertura.

Vale citar aqui também a relação dos fotógrafos homens da mídia corporativa, que além de impor seu tamanho, sua "masculinidade", se comportavam como se fossem os donos dos jornais para os quais trabalhavam.

É bem óbvio que, como em todos os setores da vida, as mulheres têm experiência e olhares diferentes dos homens... Na fotografia também. Mas o mundo tanto da mídia como da fotografia comercial não incorpora isto.

Neste mundo patriarcal, a fotografia se impôs pelo olhar masculino e não tenho dúvida de que só mudará na medida que enfrentarmos o desafio político de mudar isto junto com toda a sociedade.

BdFRS - Como construir narrativas visuais em tempos de pandemia?

Suzana - É o que as fotógrafas/os que conheço se perguntam e estão todos tentando, cada uma a sua maneira, resolver.

Algumas registrando a mudança no cotidiano de pessoas e cidades do mundo frente a este novo momento, outras produzindo imagens mais reflexivas, contemplando o seu novo e reduzido espaço físico para dele tirar algo que possa mostrar a nossa perplexidade e dar um significado a tudo isso. Eu já produzi um refletindo a respeito do meu espaço reduzido para fotografar, pois estou em isolamento desde março. As outras fotógrafas da Pixel.Ladies também estão produzindo documentários, alguns já publicados.

O importante é que tem muita gente trabalhando nisso. Acho que o resultado disso será extraordinário. 

Lamento que tenhamos poucos espaços próprios para publicação de ensaios, a maioria será publicado apenas em perfis nas redes sociais. Lamentavelmente. Mas tenho esperança ainda que no futuro possamos construir espaços específicos para isso. Se o site da Pixel.Ladies realmente se efetivar, pode ser um "lugar" para estas publicações.

BdFRS – Quais projetos tu estavas envolvida antes da pandemia?

Suzana - Um deles desenvolvo faz dois anos, produzo bolsas com minhas fotos - tem tiragem limitada. É um trabalho que envolve projetos ambientais, pois as imagens capturadas são em geral em locais ainda preservados da destruição humana e parte da verba arrecadada irá para projetos de proteção do meio ambiente e ou recuperação de locais já muito degradados. Tínhamos um contato com um museu que se interessou pela venda, mas a negociação acabou não se realizando porque o museu fechou em março por conta da pandemia. Vamos ver quando reabrir.

Outro é um projeto do artista Marcelo Chardosim. Antes do distanciamento social eu estava desenvolvendo um ensaio fotográfico sobre as voçorocas localizadas em um terreno muito grande em Alvorada, no Rio Grande do Sul.

Essas voçorocas começaram a se formar na década de 1980, num terreno da grupo Habitasul, onde as árvores foram cortadas num local com no mínimo 12 nascentes, para construção de loteamento habitacional. Por cerca de 40 anos o lugar foi sendo rasgado pela água da chuva e das nascentes por falta da vegetação que mantém a terra.


Parque da Solidariedade - Alvorada, RS / Suzana Pires / Acervo

Em 2015 o artista Marcelo Chardosim decidiu nomear o local como Parque da Solidariedade e cria a proposta de chamar a comunidade para assumir a "obra" como construção coletiva, amplia a apropriação dos sujeitos da cidade sobre o destino da recuperar aquela área devastada, preservar o local, replantar a mata, retirar o lixo e pesquisar as nascentes.

A arte de Marcelo é revolucionária, ela leva em conta o novo e grave momento que vivemos da urgência climática, ela propõe a comunidade que assuma o local como possível geoparque, como espaço para arte, lazer e aprendizado, para preservação e observação.

O artista propõe o uso da terra, a água, as árvores e a biodiversidade como bem comum da cidade e da humanidade. Atualmente acompanho o trabalho através do Blog. A preservação e construção de relações com a comunidade segue mesmo durante a pandemia, estão pesquisando como reflorestar (plantas nativas), plantando e estabelecendo contatos com diversos setores da sociedade organizada.

O projeto segue forte e em breve pretendo dar prosseguimento ao meu trabalho lá.

BdFRS – Qual o significado da fotografia para ti?

Suzana - A fotografia foi e continua sendo um instrumento poderoso. Foi a partir da fotografia (imagem impressa) que nasce também o cinema, o vídeo e a televisão. Uma imagem pode ser compreendida do Oriente ao Ocidente, qualquer tipo de pessoa sabe entender uma imagem. Sabemos rapidamente decodificar a diferença e as semelhanças entre povos, características físicas, jeito de viver, geografia. Uma pessoa pode nem saber onde localizar a foto que vê, mas guardará estas informações que podem se tornar identificação e aprendizado, solidariedade ou distanciamento.

A câmera fotográfica/celular é apenas um instrumento, portanto pode ser usada para qualquer fim, desde denunciar a realidade até construir notícias ou abordagens falsas. Enquanto a câmera era usada apenas por profissionais, em geral da grande mídia, a versão de mundo era dada por estes.


"A fotografia sempre foi um insubstituível instrumento de denúncia e a profusão da fotografia digital pelo celular, aumenta radicalmente isto" / Suzana Pires / Acervo

A fotografia sempre foi um insubstituível instrumento de denúncia e a profusão da fotografia digital pelo celular, aumenta radicalmente isto. Todos os grandes eventos de protestos mundo afora nos últimos tempos, foram popularizados por vídeos e fotos de pessoas que na maioria não são profissionais. Mesmo que este novo universo de democratização ao direito de produzir imagens, traga desafios aos profissionais da fotografia, acho muitíssimo positivo, e ele mudou para sempre o mundo da captura e propagação de imagens. Nem sei como a fotografia realmente muda e que nome daremos e estes novos processos no futuro.

Já ouvi polêmicas em relação ao fato de que hoje se usa mais a câmera voltada para si mesmo, a famosa self... Não vejo problema nisso, as gerações passadas só viam fotos de famosos estampadas em jornais e revistas. O advento da internet e do celular faz com que todas as pessoas tenham o direito de fazer e propagar imagens suas. 

Já tive projetos (que não chegaram a se realizar) onde tínhamos o propósito de empoderar e reintegrar jovens meninas que tiveram gravidez ainda adolescentes, a partir de imagens que fariam de si mesmas e das suas mães. A intenção era promover algum tipo de reencontro e dar valor a "linhagem" feminina nas famílias.

A fotografia pode ser arte, pode ser instrumento de comunicação, de denúncia ou a simples e necessária recordação de momentos familiares.
Pode-se ter polêmicas se o que se faz hoje com o celular é fotografia ou não... Pode mudar o formato do instrumento de captura de imagens, os pixels, os instrumentos de tratamento da imagem, a forma de divulgação, mas a fotografia permanecerá para sempre.
 

Edição: Katia Marko