Rio Grande do Sul

COVID-19

“O Brasil está na contramão da ciência, isso ficará para a história”

A afirmação é de Ronaldo Hallal, médico infectologista e consultor da SRGI em entrevista ao Brasil de Fato RS 

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O Brasil está entre os países com menor cobertura de testagem, na contramão da evidência científica, e um forte estímulo à 'ruptura' do isolamento" - Arquivo Pessoal

“No Brasil, setores da economia pressionam pela retomada de atividades em uma situação epidemiológica desfavorável, seja no pico ou no platô em elevados patamares. É uma situação paradoxal: justamente quando o vírus está mais circulando, maior é a reabertura das atividades. As taxas atuais de isolamento social não atingem 40%, portanto são muito baixas para desacelerar a velocidade atual da epidemia”, afirma Ronaldo Hallal sobre a questão econômica em relação ao contexto da pandemia.

Ao avaliar o retorno das aulas afirma ser simplista imaginar que o impacto potencial se limita à sala de aula, sem considerar a estrutura que o retorno à atividades escolares representa. “Afirmar que as escolas, futebol e outras atividades adotam protocolos, não é suficiente para controlar a epidemia, não é uma influência 'tudo ou nada'”, destaca. 

Na semana que o Rio Grande do Sul (RS) ultrapassa os 100 mil infectados por covid-19 e o Brasil está prestes a chegar a 110 mil perdas de vida, o Brasil de Fato RS entrevista o infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia (SRGI) sobre os equívocos do país e do estado ao combater a propagação do vírus entre outros pontos.

“O fracasso da resposta brasileira à covid-19 antecede o aparecimento da pandemia e vem ocorrendo ao longo de alguns anos. Um sistema de saúde público e universal é estratégico para enfrentar as condições endêmicas e os agravos à saúde de uma forma geral. O SUS é conquista e patrimônio da sociedade brasileira, é um sistema que possui uma visão generosa, humanista, inclusiva e participativa. Ocorre que ao longo do tempo, o SUS tem sido subfinanciado e o governo federal sinalizava o fim da universalidade”, ressalta. 

Veja abaixo a entrevista na íntegra. 

Brasil de Fato RS - O Brasil ultrapassou a marca dos 100 mil mortos pela covid-19 e sem sinais de uma mudança mais efetiva no combate à doença. No Rio Grande do Sul, a realidade é de dezenas de mortes por dia, e os números aumentando. No atual estágio da pandemia, quais seriam as medidas mais eficazes a serem tomadas pelos governos e pelas pessoas?

Ronaldo Hallal - A marca de 3 milhões de casos - estimativas sugerem até 8 vezes a mais devido à baixa cobertura de testagem - e 100 mil mortes são emblemáticas. Demonstram as escolhas que o Brasil fez, optando por não desenvolver uma política de enfrentamento da pandemia. E não irá desenvolvê-la, pois foi uma escolha do governo federal, por esta razão não promoveu políticas de proteção dos mais vulneráveis. Somente é possível permanecer em isolamento quando existem recursos materiais.

Na minha opinião é preciso desenvolver estratégias mais eficazes de contenção da epidemia e a mais importante seria promover políticas acordadas com estados, municípios e sociedade civil, construindo uma política nacional por consenso

Na realidade, o fracasso da resposta brasileira à covid-19 antecede o aparecimento da pandemia e vem ocorrendo ao longo de alguns anos. Um sistema de saúde público e universal é estratégico para enfrentar as condições endêmicas e os agravos à saúde de uma forma geral. O SUS é conquista e patrimônio da sociedade brasileira, é um sistema que possui uma visão generosa, humanista, inclusiva e participativa. Ocorre que ao longo do tempo, o SUS tem sido subfinanciado e o governo federal sinalizava o fim da universalidade, proposta defendida pelo então ministro Mandetta antes da chegada da pandemia. O governo federal também obstaculizou o desenvolvimento científico e tecnológico e desencadeou ataques às universidades públicas, à Organização Mundial de Saúde (OMS) e à comunidade científica. Também escolheu comprometer a laicidade das políticas públicas.

Especificamente na resposta à covid-19, o Brasil está entre os países com menor cobertura de testagem, na contramão da evidência científica, e um forte estímulo à “ruptura” do isolamento. Na minha opinião é preciso desenvolver estratégias mais eficazes de contenção da epidemia e a mais importante seria promover políticas acordadas com estados, municípios e sociedade civil, construindo uma política nacional por consenso. Algumas estratégias têm sido amplamente debatidas, como fornecimento de insumos e renda para os mais vulneráveis, capilarizar comunicação e educação em saúde, priorizar resposta por saúde da família e programa de agentes comunitários, ampla testagem de casos suspeitos e seus contatos, estruturas de saúde com complexidade intermediária para quarentena de pessoas infectadas e que não conseguem praticá-lo, ampliação de leitos e recursos hospitalares.


O RS deveria retornar ao isolamento / Foto: Cesar Lopes/PMPA

Em relação ao RS, não existe justificativa epidemiológica e científica para o reinício de atividades não essenciais no momento de expansão da epidemia e manutenção de elevados patamares de transmissão e baixa capacidade de disponibilidade de leitos. A OMS recomenda reinício de atividades quando a transmissão estiver em declínio, inexistência de surtos e ampla testagem. O RS não preenche nenhum destes critérios. 

Observamos uma mudança súbita de discurso em São Paulo, Rio de Janeiro, do isolamento para a flexibilização, e o mesmo ocorreu em relação ao governo do estado e prefeitura de Porto Alegre. Uma mudança de discurso, embora a situação epidemiológica tenha se agravado, os fatores que parecem ter influenciado a decisão foram políticos e econômicos. O RS deveria retornar ao isolamento, a SRGI emitiu um alerta a cerca de 20 a 30 dias atrás recomendando que os diferentes setores sociais se preparassem para adotar medidas mais rígidas de isolamento: ocorreu o oposto disso. 

BdFRS - O Distanciamento Social Controlado (DSC) do governo estadual, que constantemente passa por revisão após pressão do setor empresarial e prefeituras, não parece dar conta de manter um isolamento social adequado. Como você avalia esta tentativa de controle da pandemia? 

Ronaldo - O DSC não é uma estratégia que tenha sido pesquisada. É apenas retórica argumentar que se trata de uma estratégia baseada em evidências. Não é, tanto que o governo o caracteriza como uma “inovação”, não havia sido avaliado e demonstrou que foi ineficiente para conter a expansão da epidemia. O fato de se adotar “protocolos”, por si, não o define como “científico”, mas racional. 

Desde seu início foi uma proposta política, optou-se por retirar o diagnóstico da doença dos indicadores sob alegação que prejudicaria municípios que mais faziam diagnóstico. Ao invés de criar condições de aumento da cobertura de testagem, apenas foi decidido retirar o indicador, acarretando perda ainda maior da sua sensibilidade para detectar modificações na expansão da epidemia.

Do ponto de vista matemático, a progressão do risco epidemiológico não é refletida adequadamente na progressão do gradiente de risco do DSC e que seria quase impossível progressão para “bandeira preta” que indica restrição profunda da circulação, semelhante ao lockdown. Nunca se atingiu bandeira preta.

O mais triste foi a negociação para recuo no gradiente de risco, mediante abertura de leitos de UTI – muitas vezes sem equipes aptas para atendimento – e finalmente a transferência da decisão para municípios, que sofrem pressões locais mais intensas e possuem menor capacidade técnica. Estado e municípios acabaram desacreditando a proposta, que já era carente de evidências científicas conduzindo-a ao naufrágio.

BdFRS - Parece haver um conflito entre economia e saúde no Brasil impedindo que se tomem medidas mais severas de isolamento. Existe essa dicotomia? E qual a posição a respeito da necessidade de um lockdown e da testagem em massa?

Ronaldo - A experiência dos países do hemisfério Norte mostrou que a crise sanitária teve um grande impacto na economia e foi ainda maior naqueles países que não adotaram medidas que permitissem menor circulação de pessoas. O caso da Suécia é emblemático, ainda que tenha características próprias, como grandes casas para idosos que foram acometidas por surtos - embora isso tenha ocorrido porque o vírus circulou entre a população em geral acarretando em “pontes de transmissão” para idosos – não houve ênfase na redução da circulação da população em geral, ocorreu o chamado “isolamento vertical”. Quando confrontamos os dados da Suécia com os demais países escandinavos, os indicadores sanitários e econômicos são piores, o que levou autoridades suecas à autocrítica em relação a não ter adotado medidas mais rigorosas de distanciamento. 

No Brasil, setores da economia pressionam pela retomada de atividades em uma situação epidemiológica desfavorável, seja no pico ou no platô em elevados patamares. É uma situação paradoxal: justamente quando o vírus está mais circulando, maior é a reabertura das atividades. As taxas atuais de isolamento social não atingem 40%, portanto são muito baixas para desacelerar a velocidade atual da epidemia. Em Porto Alegre os gestores deveriam preparar estratégias de adesão ao isolamento que alcancem níveis mais elevados, possivelmente redução na circulação de pessoas de pelo menos 70%, para impacto na progressão da epidemia. Mas para isso seria preciso promover recursos e condições para que a maioria da população permaneça em casa até que se observe queda consistente em mortes e casos e políticas direcionadas para evitar desemprego e falência de empresas.

Existe resistência a isso também por parte de grupos políticos que se filiaram a perspectiva negacionista, atribuem de maneira equivocada os problemas econômicos ao isolamento social, ignorando que é efeito da pandemia. Países europeus e asiáticos adotaram lockdown justamente para desacelerar a progressão da epidemia e isso foi observado nas semanas que sucederam esta medida.


"Mesmo que crianças não representem grande risco de doença grave, quanto maior o grupo exposto, maior será a visibilidade de formas graves da doença nesta população" / Foto: Feliphe Schiarolli/Unsplash.

BdFRS - Com relação ao anúncio da retomada das aulas, anunciada para ocorrer no final de agosto do RS, não seria uma estratégia errada? Trago como exemplo os Estados Unidos, que em duas semanas de retorno de aulas teve 97 mil crianças infectadas pelo coronavírus.
    
Ronaldo - De forma geral, atividades não devem ser reiniciadas com elevados patamares de transmissão e ocupação de leitos. O caso do futebol é um exemplo da superficialidade com que o tema tem sido tratado, como se houvesse risco apenas “dentro das quatro linhas”, desconsiderando seu impacto direto e indireto e mesmo como “mensagem equivocada de normalidade”.    

Em relação às escolas é ainda mais grave considerar o contexto dos países que já tiveram sua “primeira onda” e que estão com a epidemia em declínio, portanto menos circulação viral. Ainda assim espera-se aparecimento de novos casos com a retomada de atividades escolares presenciais. Mesmo que crianças não representem grande risco de doença grave, quanto maior o grupo exposto, maior será a visibilidade de formas graves da doença nesta população. 

Mas provavelmente as crianças têm papel importante na epidemia na condição de assintomáticos e transmissores do vírus para adultos e para populações de risco, já que muitas crianças vivem com idosos e portadores de doenças crônicas, especialmente entre populações de baixa renda. 

É simplista imaginar que o impacto potencial se limita à sala de aula, sem considerar a estrutura que o retorno à atividades escolares representa. Afirmar que as escolas, futebol e outras atividades adotam protocolos, não é suficiente para controlar a epidemia, não é uma influência “tudo ou nada”.

BdFRS-  Em uma live recente, do Sul 21, o senhor falou que um dos fatores que contribuiu para a propagação do coronavírus no mundo foi a degradação ambiental e a forma como a humanidade tem se relacionado com o meio ambiente. Gostaria que nos falasse mais a respeito.

Ronaldo - As epidemias, assim como os agravos em saúde de forma geral, possuem determinação social. Na América e Europa as doenças não transmissíveis como diabetes e doenças cardiovasculares emergiram como importantes problemas de saúde pública e muitas vezes associadas ao sedentarismo e obesidade. No hemisfério Norte, as doenças não transmissíveis são muito prevalentes, por outro lado, o hemisfério Sul não resolveu sua carga de doenças infecciosas. 

Analisar epidemias somente pelo prisma de vetor e hospedeiro, nos dá compreensão estreita, restritamente biológica. As epidemias refletem o equilíbrio social e ambiental. O aedes aegypt, mosquito transmissor da Dengue e Febre Amarela, foi inicialmente descrito no Egito, seu ambiente natural. Possivelmente tenha se espalhado pelo mundo e chegado nas Américas pela navegação, trazido com maior força no transporte de escravos vindos da África e à partir daí surtos de Febre Amarela descritos no Brasil. O desmatamento tem relação com a maior circulação do mosquito e amplia o contato com as pessoas. Isso é facilmente percebido na exposição de garimpeiros à Malária na Amazônia.

Análises filogenéticas mostraram a elevada homologia genética entre HIV e o Vírus da Imunodeficiência Símia (SIV). O hábito e a necessidade de consumir carne de primatas em regiões da África, provavelmente gerou a transmissão humana acidental e sua disseminação pela transmissão sexual. A desorganização geopolítica enfrentada pelas comunidades africanas, influenciada pela exploração européia das riquezas africanas gerou condição propícia para a conformação da epidemia de Aids e à partir daí sua disseminação para outros continentes. No cinema, o filme “Paciente Zero” descreve o que seria o início da propagação da epidemia de Aids para os EUA, obviamente tendo como referencial o próprio EUA.


"É uma epidemia própria desta etapa da globalização. Como os demais agravos e epidemias, não é ocasionada apenas por um vírus, mas pela sociedade e nesse sentido é uma produção da própria humanidade" / Foto: Ibama/ Flickr

O SARS-COV-2 surge como uma recombinação envolvendo coronavírus de humanos e de morcegos, possivelmente promovido pelo “encontro” no ambiente ou em grandes feiras com proximidade entre diversos animais e seres humanos. À partir disso se dissemina de forma muito eficaz pelo contato social e via respiratória eficazmente promovido pelos grandes aglomerados urbanos em domicílios e no ambiente de trabalho. Se espalha pela movimentação das pessoas, desta vez não com a velocidade de navios, mas de aviões. É portanto, uma epidemia própria desta etapa da globalização. Como os demais agravos e epidemias, não é ocasionada apenas por um vírus, mas pela sociedade e nesse sentido é uma produção da própria humanidade.

BdFRS - É inevitável, no contexto que estamos vivendo, concentrar as atenções em relação ao coronavírus, mas os demais problemas de saúde seguem ocorrendo. Aids e tuberculose, por exemplo, no campo da infectologia. Como essas infecções e outras ficam no contexto do novo coronavírus?
    
Ronaldo -
Alguns problemas de saúde pública até reduziram com as medidas de isolamento, como por exemplo acidentes de trânsito e refletiram no número de mortes. Curiosamente, negacionistas e banalizadores da pandemia tem utilizado estas tendências para concluir que não existe pandemia. Entretanto, o medo da população e a “porta fechada” dos serviços, restringiram o atendimento da própria covid-19. A Estratégia da Saúde da Família não foi devidamente mobilizada para identificar e isolar casos e suspeitos, gerando uma lacuna entre a população e a rede de saúde.

Os movimentos sociais no campo da Aids e da Tuberculose realizaram uma coleta de dados no final de abril e início de maio, mostrando redução nas equipes técnicas, redução de consultas em HIV (35%) e tuberculose (20%), assim como na capacidade de diagnóstico da tuberculose. O sistema de saúde não foi bem planejado para enfrentar a nova situação. A ausência de política articulada entre os níveis de gestão refletiu no acesso. O Ministério da Saúde não induziu a política de diagnóstico e quarentena de casos e contribuiu com o tamanho da epidemia no Brasil.

Portanto, certamente teremos na segunda metade de 2020 a carga adicional das outras doenças que acabaram negligenciadas devido ao isolamento e às restrições de atendimento da rede. Pouco diagnóstico e provavelmente muitos abandonos de tratamento em HIV, tuberculose, neoplasias e outras doenças não transmissíveis.


"O mais triste é que mesmo que sejam publicados estudos adequadamente planejados, não serão considerados por estes grupos, pois a discussão já foi encerrada e tornou-se um debate político e ideológico" / Divulgação

BdFRS - Como avalia a questão do tratamento e do uso de cloroquina e afins e a aquisição de medicamentos pelas prefeituras que mesmo reconhecendo que não há comprovação seguem usando e recomendando o uso? 

Ronaldo - Alguns prefeitos implantaram uma combinação de medicamentos e vitaminas que constituíram o que se chamou “kits COVID” para o tratamento. Diversos medicamentos demonstram algum nível de atividade “in vitro” contra o vírus. Cloroquina, por exemplo, demonstrou atividade contra Zika, Chikungunya ou Epstein-Bar, mas não foi validada como opção terapêutica para estas doenças em estudos em seres humanos. Menos de 10% dos medicamentos que demonstram atividade “in vitro” tiveram sua eficácia confirmada quando foram testados em seres humanos. 

Então a discussão iniciou com testes “in vitro”, ou seja, em ambiente laboratorial, mostrarem potencial efeito de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e antirretrovirais usados para o HIV. Os antirretrovirais foram abandonados em seguida porque não foram diferentes de placebo quando testados. 

Isso gerou o comentário do presidente norte-americano que hidroxicloroquina seria promissora, seguido pelo presidente brasileiro que decidiu ampliar a compra de matéria prima para potencializar a produção pela indústria nacional. Entretanto, a atividade associada à cloroquina não foi reproduzida em células de pulmão humano e a ivermectina, do mesmo modo, não teve o efeito “in vitro” comprovada em estudo mais recente conduzido pela USP. Esta por exemplo, para reproduzir um presumido efeito “in vitro”, necessitaria doses 50 a 100 vezes superiores em relação ao seu limite para toxicidade em seres humanos. 

Logo no início da pandemia, autores de um estudo francês com amostra pequena de pacientes afirmaram que hidroxicloroquina teria eliminado o vírus da via respiratória de pacientes com covid-19. Poucas semanas depois, uma análise de dados (“big data”) de pacientes internados com covid-19 teria encontrado uma associação entre sua utilização e maior mortalidade. Mas ambos os estudos foram fortemente criticados pela comunidade científica, o primeiro devido a exclusão da análise de pacientes que evoluíram com piora clínica usando hidroxicloroquina e o segundo por possível manipulação grosseira dos dados. Ambos devem ser desconsiderados como evidência científica. Mas acabaram influenciando o imaginário.

Na sequência, foram publicados estudos observacionais e retrospectivos, cujo desenho é frágil para investigar eficácia terapêutica. Estabeleceram associações entre hidroxicloroquina e benefício clínico, mas com limitações por exemplo para excluir resultados que teriam ocorrido ao acaso. Neste momento a crença estava constituída, agregando posicionamento político de grupos que apoiam o presidente à resultados de estudos pouco apropriados, portanto com pouca força científica. 

Neste contexto, alguns médicos de estados do Norte, Nordeste e de cidades do interior do Brasil, começaram a associar uso destes medicamentos com queda nos indicadores da epidemia, na minha opinião, uma associação primária no atual momento de desenvolvimento científico. Curioso, mas um estudo recente observou mais baixa mortalidade pela covid-19 em países que consomem dietas ricas em repolho e pepino. Parte da argumentação se embasa neste tipo de dado grosseiro que ignora os fatores que interferem na incidência e mortalidade, como por exemplo subnotificação, testagem e qualidade da atenção à saúde.

A experiência do médico é influenciada pela sua crença no tratamento, pelo desejo de recuperação do doente ou mesmo pelo acaso, já que a doença evolui espontaneamente para cura em cerca de 85% dos casos, portanto relatos de experiência têm pouco valor científico. E observamos diversos casos tratados com hidroxicloroquina, vitaminas e ivermectina apresentarem piora clínica e até morrerem, mas estes acabam não sendo mencionados. 

Estudos prospectivos conduzidos com grupos comparáveis de pacientes tratados e não tratados e com controle da interferência de outros fatores nos resultados – os ensaios clínicos randomizados – são os mais apropriados para estabelecer eficácia de tratamentos em uma doença. Nas últimas 2 semanas, três ensaios clínicos (um deles realizado no Brasil) mostraram que não há eficácia no tratamento da covid-19, utilizando-se hidroxicloroquina, mesmo quando iniciada precocemente (mesmo no 1º dia de sintomas). Além disso, os efeitos adversos foram significativamente maiores com uso de hidroxicloroquina, quando comparado aos controles não tratados.

O Brasil estava avançando no tema de incorporação de tecnologias em saúde no SUS, com a implantação da Comissão Nacional de Tecnologias (Conitec). A pandemia revelou um problema grave na formação médica e na falta da adoção de critérios técnicos rigorosos para subsidiar a tomada de decisão na política pública da própria alocação de recursos.

O mais triste é que mesmo que sejam publicados estudos adequadamente planejados, não serão considerados por estes grupos, pois a discussão já foi encerrada e tornou-se um debate político e ideológico. Não é mais técnico ou científico. O mais duro é que faz sentido com o “todo” da mensagem da política federal, de que é possível romper o isolamento, porque a doença teria medicamentos para profilaxia e tratamento. Logo, em uma pandemia deveríamos priorizar as medidas baseadas na ciência, infelizmente o Brasil está na contramão da ciência. Isso ficará para a história.

Edição: Katia Marko