Rio Grande do Sul

TESTEMUNHO

O legado de Dom Pedro Casaldáliga: fé profética e espiritualidade que derruba cercas

Marcelo Barros e Ana Helena Tavares participaram de live em homenagem ao bispo que viveu em função dos oprimidos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Velório de Casaldáliga no Centro Comunitário Tia Irene da Prelazia de São Félix do Araguaia - CPT

Dom Pedro Casaldáliga dedicou sua vida à defesa dos mais pobres, peões, mulheres, povos indígenas como os Tapirapé, os Xavante e tantos outros. Nesta quarta-feira (12), dia em que foi sepultado, em uma cerimônia marcada por emoção e homenagens, à beira do Rio Araguaia, em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, 450 famílias do Quilombo Campo Grande, no Campo do Meio (MG), foram alvo de reintegração de posse.

Em plena pandemia, viaturas e policiais deram início ao despejo dos acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) que vivem desde 1998 na área, que passou de um terreno abandonado de uma usina falida para um espaço de referência na produção agroecológica. Impedir esse tipo de situação foi uma marca da caminhada do bispo e poeta, que viveu sua espiritualidade manifesta na prática da compaixão com os mais necessitados.

Foi esse o testemunho de Ana Helena Tavares, jornalista e autora do livro "Um Bispo Contra Todas as Cercas – A vida e as causas de Pedro Casaldáliga", e de Marcelo Barros, monge beneditino e escritor. Os convidados relembraram vivências e aprendizados no convívio com o bispo em uma live de homenagem promovida pelo Brasil de Fato RS e pela Rede Soberania.


Live homenagem no Brasil de Tato RS e na Rede Soberania / Reprodução

Ana Helena trouxe a memória de sua caminhada até conhecer Casaldáliga, que resultou na biografia que escreveu. Segundo ela, que teve um tio torturado na ditadura por ser confundido com um guerrilheiro, o encontro aconteceu a partir de sua motivação jornalística de entender porque os torturadores da ditadura no Brasil não eram punidos. Buscando entrevistados, em 2012, lhe foi sugerido entrevistar o Casaldáliga, que vivia na região do Araguaia, local de grandes conflitos de terras.

Mais que uma pessoa, a causa de muitos


Indígenas Xavante carregando o corpo de Dom Pedro Casaldáliga / Dagmar Talga / CPT

No percurso, ela conta que o ônibus foi parado por um grupo de posseiros que protestavam por não quererem devolver as terras aos indígenas e, ao falar o motivo de sua viagem a um deles, que usava “um chapéu estilo rei do gado”, este lhe falou: “esse bispo não vai para o céu”. Ali ela começou a perceber que Casaldáliga, mais que uma pessoa, era a causa de muitos oprimidos. Ao chegar na casa do bispo, Ana Helena descobriu “que a casa já era o próprio céu”, por sua simplicidade e energia. Chamou sua atenção um remo indígena na parede, que tinha sido usado no dia da sua sagração como bispo, em 1971.

“Nunca tinha visto isso na minha vida, uma coisa absolutamente revolucionária. Fiz a entrevista e, no final, Pedro colocou a mão no meu ombro e disse: ‘nunca se esqueça das causas da vida’”, recorda. Ao retornar ao Rio de Janeiro, após conversa com o cineasta Silvio Tendler, este lhe disse que “a revolução só persiste se houver quem aponte”. Foi quando ela resolvei “fazer revolução contando a história do revolucionado Dom Pedro Casaldáliga”, escrevendo sua biografia.

Marcelo Barros também recordou dos anos que conheceu Casaldáliga. Em 1976, já monge, deixou Olinda (PE) para ajudar um mosteiro beneditino inserido no meio dos lavradores no Paraná. Era quando começava no Brasil a construção da Pastoral da Terra, fundada por um grupo de bispos da Amazônia, entre os quais Dom Pedro Casaldáliga, que também contribuiu na fundação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em seguida, foi transferido para a Diocese de Goiás, quando trabalhou no secretariado nacional da Pastoral da Terra e teve um intenso convívio com o bispo.

Simplicidade e destemor


Cerimônia de despedida foi carregada de emoção / Dagmar Talga / CPT

“Conhecia o Pedro de nome e fama, textos, poemas e histórias, mas marcou a convivência cotidiana, a relação, o hospedar-se na mesma casa, ficar no mesmo dormitório em São Félix do Araguaia, de vê-lo à tardinha ou noite perguntando em qual cama iria dormir”, afirma, destacando sua simplicidade e destemor. “Fui formado na minha sensibilidade humana a partir da convivência com esse homem que dizia para ser aquilo que se crê, para crer naquilo que se prega e ir até consequências últimas dessa fé. Foi um aprendizado permanente.”

O monge recordou de uma das últimas vezes que esteve junto de Casaldáliga, em Luciara (MT), meados de 2003, quando dividiram o dormitório durante um encontro para defender as águas do Rio Araguaia. “Naquele dia, duas mulheres apareceram e disseram que seus maridos tinham recebido dinheiro para matar Pedro naquela noite.” Marcelo recorda que foi organizada uma vigilância noturna para defendê-lo.

“Conto a vocês que, em maio de 2003, eu dormi naquela cama e qualquer barulho fora eu ficava em pé, e o Pedro dormindo sereno ao meu lado. De madrugada, homens bateram na casa para forçá-lo a pegar um barco e ir em direção ao São Félix pelo Araguaia, e não voltar pela estrada. Saíram de madrugada e eu fique lá para acabar o encontro. Pedro convivia com isso todo o dia, o tempo todo, e com uma doçura no olhar. Pedro é o bispo de todas as cercas, com bem expressa o livro de Ana Helena”, testemunha.

Legado segue nas lutas


Casaldáliga foi enterrado no cemitério Karajá, à beira do Rio Araguaia, como havia pedido / Dagmar Talga / CPT

Na avaliação de Ana Helena, Casaldáliga conseguiu unir de forma brilhante a sacristia e a romaria. “Ele foi um homem de oração e ação ao mesmo tempo”, afirma, destacando as injustas acusações referentes à Teologia da Libertação, da qual o bispo foi um de seus expoentes. “Pedro vira e mexe encontrava-se em frente ao altíssimo, fazendo suas preces, era uma espiritualidade evoluída, ao mesmo tempo, ia para a linha de frente, para a romaria, a passeata.”

Já para a sociedade, a escritora defende que seus legados são muitos. “Ele derrubou tantas cercas, abraçou diversas causas dos Direitos Humanos”, afirma. Citou o poema de Pedro, “Canção da foice e o feixe”, que revela em palavras que antes de mudar o mundo é preciso queimar o próprio coração. “Antes de buscar a revolução, ele se revolucionou”, afirma.

Para Marcelo Barros, “Pedro nos ensinou que a fé é profética, o que significa para fora”. Diferente daquele estilo de religião “narcisista, em que a pessoa vive diante do espelho porque olha para si própria”. Casaldáliga defendia a descolonização da religião, libertar o evangelho da roupa imperial, “essa visão eurocêntrica que o evangelho ainda tem na América Latina. Ele criou a palavra macro-ecumenismo, que une todo mundo que quer um projeto no mundo de paz e justiça, independente de qual religião”.

O monge busca inspiração nesse legado de Casaldáliga para enfrentar os dias atuais, “esse desgoverno, essa situação de tanta intolerância”. Conforme relembra Marcelo, “todo dia alguma comunidade afrodescendente sendo invadida e perseguida, coisas de racismo impressionante, como uma juíza que condenou uma pessoa dizendo que a raça dele o levou a roubar. Todos os dias têm invasões e depredações de terreiros de candomblé e umbanda. Temos responsabilidade de se solidarizar com as religiões de tradições afroindígenas, que foram a melhor fonte de resistência e humanidade para o povo oprimido. Isso é o que Pedro, através de mim, pede a todos vocês”.

Assista à live em homenagem a Dom Pedro Casaldáliga:

Edição: Katia Marko