No esquife simples, sem qualquer pompa, jazia o corpo mirrado do grande pastor, bispo, poeta Pedro Casaldáliga. Ali aguardava o momento de ser levado até sua amada São Félix do Araguaia, no norte do MT, terra que o recebeu em 1968 e à qual dedicou mais de 50 anos de vida, luta, defesa dos mais pobres, peões, mulheres, povos indígenas como os Tapirapé, os Xavante e tantos outros. Jamais teve medo de colocar sua vida em risco. Por isto foi perseguido, caluniado, ameaçado de morte inúmeras vezes, retido em sua casa pela repressão militar, sem nunca aderir. Firme como uma rocha, fé inabalável no Cristo da Cruz, ele se entregou à caminhada do evangelho e suas consequências vivendo coerentemente o que pregava e por aquilo que julgava justo e libertador. E lembrava sempre em suas orações da comadre Maria, dos santos, das poetisas e poetas de ontem e de hoje.
Tive o privilégio de me encontrar com Pedro várias vezes. Desde a primeira vez que o vi num retiro de jovens no interior da Paraíba, eu com 21 anos e estudante de teologia, jamais pude me desligar de seus escritos, de sua caminhada, de seu ministério lá no sertão. Pedro, como fazia com tantos outros jovens, escrevia cartas que hoje são relíquias de inspiração para quem vai continuar a luta por suas causas na Causa, como ele costumava dizer. Quando nasceram nossa filha, nossos filhos, Pedro ao receber a notícia não demorava em enviar mensagem e sua palavra cheia de amor pelas crianças.
Fico a imaginar agora a nova caminhada de Pedro, livre das nossas limitações, mas firme na luta pelos pequenos que jamais haverá de abandonar. Ele irá repousar às margens do seu amado Araguaia, lá perto de São Félix, mas seu espírito caminhará de pés descalços rumo à Terra da Liberdade, ao encontro do Pai. Um poema que Leonardo Boff resgatou no texto que segue nos afiançará que Pedro nos leva junto no coração e continuará a interceder por nós e todo o povo pobre e vulnerável deste país desde sua nova morada.
Leonardo escreveu assim no seu blog (10/08/2020):
Vivia num “palácio” de madeira de terceira qualidade, totalmente desnudado. Era tão identificado com os indígenas e os peões assassinados, que quis ser enterrado no “Cemitério do Sertão” onde eles, anônimos, jazem:
'Para descansar/ quero só esta cruz de pau/ como chuva e sol;/ estes sete palmos e a Ressurreição'.
E assim imaginou o Grande Encontro com o Amado que serviu nos condenados da terra:
'Ao final do caminho me dirá/
E tu, viveste? Amaste?
E eu, sem dizer nada,
Abrirei o coração cheio de nomes'
O clamor de sua profecia, a total entrega de Pastor aos mais oprimidos, a poesia que nutre nossa beleza e sua mística de olhos abertos e das mãos operosas, permanecerão como um legado perene às comunidades cristãs, ao nosso país índio e caboclo que ele tanto amou e à humanidade inteira.
Escrevi a um amigo que perdemos um profeta, mas que seguirá conosco de uma forma inusitada, inspiradora. Ele me respondeu:
Não estamos de luto devido a uma perda. Nosso luto é de gratidão que não tem fim. Sabemos que ele vive. E a gratidão é de uma dimensão enorme, porque tudo o que Dom Pedro viveu e fez permanece. E mais: Continua! Pois muitas pessoas continuam fazendo o que ele começou. Soli Deo Gloria!
* Roberto E. Zwetsch é teólogo, professor associado de Faculdades EST, em São Leopoldo (RS) e pastor luterano.
Edição: Marcelo Ferreira