Após a confirmação das denúncias sobre o surto de covid-19 nos hospitais psiquiátricos administrados pelo Estado do Rio Grande do Sul - Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, e o Hospital Colônia de Itapuã, em Viamão - diversas entidades cobraram resposta e medidas urgentes do governo. Na negativa de uma posição concreta por parte da Secretaria Estadual da Saúde (SES), o Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM) protocolou uma medida cautelar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
É a quinta denuncia internacional relacionada à covid-19 contra o Brasil e a primeira a envolver o Rio Grande do Sul. A medida cautelar pede que a CIDH, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), exija do governo medidas para solucionar o problema, a exemplo da medida concedida em 17 de julho em favor dos povos indígenas Yanomami e Ye'kwana. Nesta, a Comissão considerou que as pessoas beneficiárias estão em situação grave e urgente, pois seus direitos correm risco de danos irreparáveis, cobrando proteção a esses povos por parte do governo brasileiro.
Após protocolar a medida, o FGSM participou de uma segunda live denúncia promovida pelo Brasil de Fato RS e pela Rede Soberania, na sexta-feira (7). Nela, representantes do Fórum e convidados reafirmaram os problemas diagnosticados por trabalhadores dos hospitais psiquiátricos, que levaram a dezenas de contaminações de trabalhadores e pacientes, com a morte de nove moradores. Entre as denúncias estão falta de equipamentos de proteção individual, de higiene e limpeza, falta de testes, ausência de protocolos sanitários, uso de medicamentos não reconhecidos cientificamente e, principalmente, falta de transparência do governo na prestação de contas à sociedade.
Os participantes destacaram o descumprimento da lei ao manter tais espaços em funcionamento, o que contraria a lei da Reforma Psiquiátrica, cobrando um plano de desinstitucionalização do governo. “Esses dois hospitais psiquiátricos, por serem da Saúde, deveriam ser aqueles que mais cumprem as próprias determinações dos órgãos sanitários. Isso novamente confirma o paradigma que hospitais psiquiátricos são espaços de violação de direitos”, disse Leonardo Pinho, vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).
Governo não vê sentido de urgência
“Infelizmente, o sentido de emergência e urgência às informações solicitadas, que são sobre coisas concretas para serem feitas, não é o sentido da SES, que trata isso como uma medida que precisa de mais tempo, então estamos novamente pedindo essas informações”, afirmou Leonardo. “O CNDH vem novamente cobrar o governo estadual e a SES para que se cumpra a lei. E que seja apresentada à sociedade gaúcha e brasileira um plano de desinstitucionalização, esse surto e essas mortes evidenciam o necessário cumprimento da lei em defesa da vida e em defesa dos usuários e trabalhadores."
A jornalista mineira Daniela Arbex, autora do best-seller "Holocausto Brasileiro", eleito melhor livro-reportagem do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (2013) e segundo melhor livro-reportagem no prêmio Jabuti (2014), criticou a naturalização das mortes no país e a invisibilização das pessoas que “ainda hoje são abandonadas” nessas instituições. “São mil mortes por dia no país, se a covid na população em geral já é assustadora, é ainda mais greve esses surtos dentro desses locais, que não comovem ninguém”, afirmou.
Tratamento sem liberdade não se sustenta mais
“A primeira violação já é a permanência dessas pessoas nos hospitais psiquiátricos”, criticou Daniela. “É impressionante estarmos em pleno século 21 falando de um surto de covid-19 dentro de um hospital psiquiátrico, que é uma instituição que não se sustenta mais. Hospital não é local de moradia, nunca foi e não deveria ser, com toda a luta histórica da saúde mental para uma mudança de olhar, e algumas situações ainda existem”, ressaltou.
Francisca Jesus, integrante do Coletivo de Mulheres Ouvidoras de Vozes e do Núcleo Maria Maria - Mães da favela da Central Única das Favelas (CUFA), afirmou que no Brasil e no Rio Grande do Sul, as políticas públicas são um “verdadeiro genocídio”. “Foi preciso a gente levar à última instância para se fazer ouvir, para que essas instituições cumpram as medidas básicas de Saúde. É uma banalização do mal o acostumar-se com essa higienização, o esconder essas pessoas”, criticou.
Ela destacou que as pessoas que recorrem a essas instituições são os periféricos, já marginalizados e esquecidos, e reforçou o caminho da desinstitucionalização, trazendo um exemplo familiar: “Assim como minha avó, que ficou 30 anos internada no Hospital São Pedro e quando saiu, de tanta emoção ao voltar para a família, quando voltou para Pelotas, ela teve um infarto, que não se deixe mais pessoas trancafiadas, que se priorize a liberdade e o atendimento em liberdade”.
Conforme lembrou Francisca, usuários da saúde mental são pessoas extremamente criativas e o exemplo do cuidado realizado nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) mostra que o atendimento em liberdade é viável. “Se as famílias ainda procuram essas instituições para internar seus entes é porque o governo não tem uma política pública que ofereça outra alternativa”, avaliou.
Um memorial
Após o relato pessoal de Francisca, a psicóloga, ex-coordenadora do projeto São Pedro Cidadão e integrante do FGSM, Fátima Fischer, propôs a criação de um memorial em homenagem a todas as pessoas que perderam suas vidas em hospitais psiquiátricos. “Um memorial que pode começar pelo nome dela, Maria de Conceição de Castro Moreira, que de visibilidade a todas essas pessoas, especialmente nesse momento, em que estão morrendo ou com risco de morte eminente, e por isso a razão de nossa denúncia”, afirmou.
Militante pela Reforma Psiquiátrica já há mais de 30 anos, Fátima destacou que a luta começou por Direitos Humanos. “Em um movimento dos trabalhadores de saúde mental junto com familiares, íamos a hospitais pelas condições desumanas. Não é crível que em 2020 a gente esteja trazendo isso”, criticou. Ela recordou que desde março o Fórum apontava que alguma coisa deveria ser feita e a única proposta da SES é que existiam propostas de privatização. “Mas não era essa a discussão. Temos que apelar para o sentido de humanidade de todos nós e garantir de forma rápida e urgente, não tem mais tempo de ficar esperando, não tem prazo para a vida. Que se tenha transparência e se deem respostas imediatas”, apelou.
Situação agravou após primeira denúncia
Também membro do FGSM, Rafael Wolski de Oliveira, ex-coordenador da desinstitucionalização do Hospital São Pedro, retomou as diversas denúncias feitas pelo Fórum, que deram origem ao pedido de medida cautelar junto à CIDH. Ele destacou ainda o papel das entidades que estão cobrando o poder público.
“A partir das denúncias do Fórum, junto ao Conselho Estadual de Direitos Humanos, Defensoria Pública, Conselho Estadual de Saúde, Sindsepe/RS, cobramos transparência e providências sobre o que vem acontecendo”, disse Rafael. “A gente viu que, a partir das primeiras denúncias, algumas medidas foram tomadas, mas a situação seguiu se agravando”, apontou, afirmando que novas denúncias continuaram chegando.
O advogado Marcelo Andrade de Azambuja, que representou o FGSM no pedido de medida cautelar junto à CIDH, destacou que a petição tem fundamento na precariedade desses hospitais, na hipervulnerabilidade de seus pacientes e no surto de covid-19. Conforme lembra, os estados possuem “obrigação primordial de respeitar e garantir os direitos humanos”. Quando existe violação ou até risco, se recorre a instituições do estado para fazer valer esses direitos, quando o estado é incapaz de respeitar ou garantir, pode-se recorrer a organismos internacionais, como foi o caso.
“Ante a omissão do Estado brasileiro, o FGSM decidiu levantar essa denúncia ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Protocolamos o pedido de medida cautelar para prevenir danos irreparáveis a pessoas que se encontram em sua jurisdição”, apontou. Destacou ainda a precariedade histórica dessas instituições. “São absolutamente estarrecedoras as informações levantadas pelo Conselho Federal de Psicologia, Ministério Público do Trabalho e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura sobre a situação dos hospitais psiquiátricos no Brasil.”
“Não são números, são pessoas”
Como lembrou o advogado, “não são números, são pessoas, como a Maria Conceição. São nove pessoas institucionalizadas que morreram em função da omissão do Estado brasileiro, nós não podemos aceitar”, concluiu o advogado.
Francisca fez a fala final da live, agradecendo a todos que estão se doando e colocando energia e força nessas vidas. “Faremos com que o Estado se responsabilize por essas pessoas, que realmente coloque em prática as medidas de saúde básicas e necessárias tanto para os trabalhadores quanto para as pessoas que lá estão. Não é possível que sejamos coniventes com essa violência toda e com esse genocídio que se está promovendo dentro dessas instituições. Essas pessoas têm nome, famílias e histórias, assim como a minha vó, Maria Conceição de Castro Moreira! Presente! Em nome de todos que lá estão e de todos os que morreram dentro dessas instituições, todos estarão presentes na nossa luta, nossa voz e nossa sede por justiça.”
Assista à live denúncia:
Edição: Katia Marko