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Artigo | O cultivo de referências negras e a educação antirracista

A atriz Dedy Ricardo reflete sobre a presença de mulheres negras nos palcos de Porto Alegre

Porto Alegre | BdF RS |
Na performance 'Eu não sou macaco', a atriz Dedy Ricardo denuncia as diversas injustiças cometidas contra negros/as - Foto: Bruna Batista

Quantas atrizes negras você conhece? Faço essa pergunta com frequência durante as minhas falas. Percebo que as (os) ouvintes vasculham a memória e, depois de algum tempo, o máximo que já consegui arrecadar em uma plateia foram dez nomes. A maioria está ligada à teledramaturgia, o que não causa surpresa, se considerarmos que Porto Alegre é uma cidade na qual os habitantes não têm o costume de frequentar as salas de teatro, que são cada vez mais escassas.

Essa mesma pergunta, de certa forma, impulsionou meus estudos de mestrado. Lembro-me de que, no início do curso, no Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS, percebi que o número de atrizes negras atuantes na cena teatral porto-alegrense havia crescido consideravelmente. Em meados da década de 1990, quando comecei a teatrar, podíamos ser contadas nos dedos de uma mão. Hoje, somos mais de quarenta. Evidentemente, se fizermos uma comparação com o número de atrizes brancas, estamos em minoria, como em quase todos os espaços de evidência.

Mas como se deu essa progressão? Essa mudança se deu por meio de políticas públicas em educação e cultura. O sistema de cotas raciais facilitou o ingresso de estudantes negras no Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS, por exemplo. O falecido Projeto de Descentralização da Cultura, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, que tinha como objetivo levar oficinas de artes às periferias da cidade, possibilitou a iniciação teatral de várias mulheres que hoje ocupam nossos palcos, dentre as quais me incluo. E, devo dizer, essa possibilidade de iniciação artística proporcionada pelo referido projeto se estendia para diversos campos das artes. Nesse mesmo projeto, me iniciei como atriz e, anos mais tarde, como professora de teatro.

Não posso deixar de citar também a criação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, em 2002, com sua unidade de artes na FUNDARTE, em Montenegro, cidade para a qual se deslocavam diariamente profissionais de teatro em busca do título de graduação e, dentre essas, também me incluo. A UERGS não possuía cotas de caráter racial, mas já nasceu com cotas reservadas para pessoas “hipossuficientes economicamente”, ou seja, para pessoas pobres, o que, de alguma forma, vinha atender à demanda de muitas negras e negros ansiosos por portarem um diploma.

Entretanto, se essas políticas contribuíram para a formação profissional de atrizes negras e, consequentemente, para que individualmente alcançassem alguma emancipação social, os benefícios advindos de tais iniciativas não se limitam a esse campo. Ao conquistarem espaço no teatro porto-alegrense, essas mulheres atrizes negras lutam para escapar aos estereótipos decorrentes dos processos de escravização e de colonização reforçados pela dramaturgia, que, até bem pouco tempo, era produzida quase exclusivamente por homens brancos. Elas trazem aos palcos e ruas da cidade a cor de suas peles, mas também a cor de suas histórias, a força da cultura negra, a sua versão dos fatos e o seu olhar sobre o mundo.

Assim, elas atraem o público negro para as salas de espetáculo, colaboram para a consolidação dos traços identitários dessa plateia negra, promovem a empatia junto à branquitude e qualificam a cena teatral, ao acrescentar-lhe um sopro de diversidade relacionado à experiência feminina negra em diáspora. Ao observar que muitas dessas atrizes também atuam como professoras, é possível deduzir que esses proveitos também as acompanham no campo da Educação.

É com a intenção primeira de referenciar e reverenciar o trabalho dessas mulheres que surge o projeto de extensão O cultivo de referências negras para a criação teatral e para a vida, o qual coordeno com a colaboração da professora Débora Souto Allemand. A proposta inicial do projeto era promover encontros entre a comunidade do Colégio de Aplicação e artistas negras atuantes em Porto Alegre com o objetivo de propiciar uma aproximação dessa comunidade com as manifestações artístico-culturais afro-brasileiras. Ao considerar a impossibilidade de realizar encontros presenciais, em tempos pandêmicos, em conjunto com as professoras das áreas de teatro e dança, surgiu a ideia de utilizar as redes sociais.

Como um primeiro evento virtual, para celebrar o dia 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia de Tereza de Benguela, publicamos em nossas páginas, ao longo do mês, vídeos que mostram o trabalho de artistas negras, como forma de homenagear essas mulheres que semeiam diversidades nos palcos, ruas e galerias do Brasil e do mundo. Com esse movimento, pretendemos não apenas oferecer nossas páginas como espaços de visibilidade para essas artistas, mas torná-las referências para nossas(os) estudantes e registrar suas contribuições como expressões artísticas que dialogam com o nosso tempo.

Para a continuidade do projeto, as referências devem se espraiar para além da classe teatral e do gênero feminino, pois sei que tais políticas emancipatórias que impulsionaram a carreira das atrizes negras também serviram a outras(os) profissionais das mais diversas áreas. Ao abordar a atuação negra na construção de diferentes áreas do conhecimento, essa iniciativa pretende colocar-se em consonância com os propósitos da Lei 10639/03 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais.

Como professora da Educação Básica – mas também como uma mulher negra, que já foi uma criança negra –, percebo a importância de cultivar tais referências desde a mais tenra idade, ao oferecer possibilidades de espelhamento para adolescentes e crianças negras e de ampliação do universo cultural de adolescentes e crianças brancas. Parece-me que esse cultivo é um dos caminhos para uma educação antirracista. 

Essa é apenas uma das formas como professores e professoras, de diferentes pertencimentos étnico-raciais, podem contribuir para a colheita de uma geração na qual prevaleça o respeito à diversidade cultural que constitui o imaginário popular brasileiro.

* Edilaine (Dedy) Ricardo Machado é atriz da Usina do Trabalho do Ator, professora de teatro do Colégio da Aplicação da UFRGS, mestra em educação e integrante do Coletivo Atinuké. 

** Artigo publicado originalmente no Jornal da Universidade (UFRGS), de julho de 2020.

Edição: Jornal da Universidade UFRGS e Katia Marko